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MST promete ações no Abril Vermelho: 'Movimento popular que não faz luta é pelego', diz Gilmar Mauro

Convidado do BdF Entrevista desta semana, coordenador do MST faz análises sobre governo e reforma agrária no Brasil

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Gilmar Mauro ingressou no MST em 1985 e hoje é uma das principais lideranças do maior movimento popular da América Latina.
Gilmar Mauro ingressou no MST em 1985 e hoje é uma das principais lideranças do maior movimento popular da América Latina. - José Eduardo Bernardes
A gente luta não é porque a gente acha bonito, ninguém gosta de ficar embaixo de barraca de lona

Às vésperas do Abril Vermelho, tradicional período de luta pela terra, o MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra) prepara uma série de ações em todo o país. O mês foi escolhido por conta do dia 17 de abril, o Dia Nacional de Luta pela Reforma Agrária, que relembra as vítimas do massacre de Eldorado do Carajás, em 1996.

A data está no calendário oficial do país e, para o coordenador nacional do MST, Gilmar Mauro, "quem não fizer luta está fora da lei". "Nós vamos fazer luta, vamos fazer mobilizações. É isso que a nossa base quer, precisa, porque não recebeu absolutamente nada ainda nesse governo", explica Mauro.

O dirigente sem-terra é o convidado desta semana do BdF Entrevista e explica que são as ocupações e as mobilizações constantes na luta pela terra que movimentam a base do MST, um dos maiores movimentos populares da América Latina

Apesar de o movimento ter atuado para garantir a eleição de Lula em 2022, Gilmar Mauro aponta que é imprescindível que o movimento mantenha sua autonomia em relação ao governo.

"Espero que eles [do governo federal] tenham aprendido que movimento popular que não faz luta é pelego. Não faz sentido de ser, aí vira qualquer outra coisa. Nós vamos fazer luta, é nossa responsabilidade. A gente luta não é porque a gente acha bonito, ninguém gosta de ficar embaixo de barracas de lona", comenta Mauro. 

"Eu fui acampar eu tinha 18 anos, em 1985. Tem ludicidade, tem beleza? Claro que tem, é óbvio, mas a luta é a única linguagem que as classes dominantes brasileiras entenderam, ao longo da história, e foi através da luta que nós conseguimos assentar mais de 400 mil famílias de sem-terra nesse país", completa o dirigente.

Na entrevista, Gilmar Mauro também aponta que o agronegócio como conhecemos, baseado em monoculturas e ancorado no capital especulativo, está próximo de um colapso. 

"Não tenho dúvida em afirmar que, em 10 anos, essa agricultura irá colapsar, fruto de toda a lógica de produção que envolve o capital financeiro, que envolve o agronegócio para exportação, que envolve a destruição ambiental de vários biomas brasileiros, em função desse tipo de agricultura".

Confira no vídeo acima a entrevista na íntegra. Abaixo, separamos alguns trechos do bate papo: 

Brasil de Fato: Estamos às vésperas do mês de abril, um mês histórico para o Brasil, onde a gente relembra os 60 anos da ditadura militar e o golpe de 1964. Muito se fala das perseguições e prisões no meio urbano, das batalhas que aconteceram nas cidades brasileiras. Mas não se fala tanto sobre o que aconteceu no campo. Ao todo, a ditadura brasileira matou 1.654 camponeses. Qual é o tamanho do impacto desse golpe de 1964 para os trabalhadores rurais? 

Gilmar Mauro: Ele impacta de diferentes formas, e é uma boa questão. Eu vou pegar pelo tema da reforma agrária. Quem primeiro colocou o tema da reforma agrária no debate político brasileiro foram as ligas camponesas, ligadas ao Partido Comunista Brasileiro, já que a reforma agrária é uma bandeira burguesa, que vem lá da Revolução Francesa. 

Mas aqui houve muitas lutas pela terra, muita resistência indígena, quilombola e lutas em geral. Esse tema vem em pauta lá pela década de 1950, especialmente no início da década de 1960, inclusive com as promessas de desapropriações de terra feitas pelo governo João Goulart. Bom, essa é uma das razões do golpe, a questão da reforma agrária. 

Entretanto, veja, é durante o período da ditadura militar que se cria uma legislação bem interessante em relação à reforma agrária, o Estatuto da Terra, que talvez seja mais avançado do que a própria Constituição. Então, você tem uma legislação relativamente avançada para o campo, mas, ao mesmo tempo, a ditadura militar aniquila as organizações populares do campo com esse monte de assassinatos e desaparecidos. 

Todo esse desenho para chegar aos 60 anos da ditadura militar: vamos às ruas, vamos à luta. Não podemos admitir que essa data seja colocada no esquecimento, como alguns dizem: "bola para frente", e "olhar para o futuro". Uma sociedade que não olha para o seu passado, para sua história, vai ter enormes dificuldades de construir um futuro diferente. 

Até porque há um ano houve uma tentativa de golpe no Brasil, novamente arquitetada com a presença de militares, possivelmente junto com o ex-presidente da República…
 
Exatamente. E também, historicamente, alguns países da América Latina conseguiram fazer uma Comissão da Verdade de verdade, com as punições necessárias às atrocidades que foram cometidas. Mas a nossa história não permitiu isso. Ou seja, não dá para jogar para frente, porque essas experiências, como diria [Karl] Marx, se renovam e acontecem de novo, como farsa ou como tragédia. 

Ainda sobre a reforma agrária, ela não é um projeto necessariamente de esquerda. Foi feita por países de direita, economias liberais, ainda um século antes do que a gente começou a pensar aqui. Quando o João Goulart foi vítima de um golpe por conta disso, os Estados Unidos já tinha feito isso de maneira intensiva... 

O que ocorre na atualidade é que aquela reforma agrária clássica talvez não se aplique mais ao momento atual. E na nossa formulação, como MST, nós avançamos. Aqui, para acontecer uma reforma agrária, é fundamental acrescentar o ingrediente popular. Porquê? Porque é uma reforma agrária sim, tem que distribuir terra, tem que assentar gente, tem que desapropriar o latifúndio. Entretanto, ela precisa colocar novos ingredientes, inclusive porque esse modelo de agricultura aplicado no Brasil e no mundo está entrando em colapso. 

Não tenho dúvida em afirmar que, em 10 anos, essa agricultura vai colapsar, fruto de toda a lógica de produção que envolve o capital financeiro, que envolve o agronegócio para exportação, que envolve a destruição ambiental de vários biomas brasileiros, em função desse tipo de agricultura. 

Sempre bom lembrar que o principal adubo usado na agricultura é a fórmula NPK, que é nitrogênio, potássio e fósforo. Grande parte desses recursos é importado, e mais do que isso, esse tipo de nutrientes, muito em particular o nitrogênio, libera o óxido nitroso, que é 300 vezes mais contaminador e causador do efeito estufa do que a fumaça dos carros, por exemplo. 

Agora falando sobre a Conab (Companhia Nacional de Abastecimento), tem um dado interessante: 45% dos agricultores atendidos pelo PAA (Programa de Aquisição de Alimentos) são assentados, ribeirinhos e povos tradicionais. Como o orçamento da Companhia, que é de pouco mais de R$ 400 milhões, pode dar conta disso? Há a expectativa de uma reunião com a ministra do Planejamento, Simone Tebet, para tentar liberar mais verbas, mas o governo anunciou um corte de quase R$ 3 bilhões no orçamento.
 
Olha, o corte é em função daquela política do déficit zero. De onde vai sair o corte? Eu não sei. O que eu sei é que não tem recursos para programas como o da Conab, que é o Programa de Aquisição de Alimentos, que é um programa extraordinário, importante. Esse programa é extraordinário porque casaria com a principal bandeira do presidente Lula, que é do combate à fome e da miséria.

E o que nós propusemos para o governo? De que seria necessário investir nos pequenos agricultores deste país, R$ 15 mil por família, desses 3 milhões e pouco de pequenos agricultores, não como crédito a fundo perdido, nós iríamos pagar, mas associado a um programa para resolver o problema da fome, da miséria, criando para isso sacolões populares, cozinhas solidárias, o nome não importa.

Mas é a produção agrícola de frutas, legumes e verduras, feijão, arroz, proteínas para chegar nas cidades, tanto para as famílias pobres, que não têm como comprar, oferecer comida, quanto para aqueles que estão recebendo Bolsa Família.

Nas últimas semanas foi divulgada uma pesquisa de avaliação do governo Lula, que mostra que 35% consideram o governo ótimo ou bom e 33% avaliam como ruim ou péssimo. É uma rejeição que tem crescido e, talvez, seja fruto de uma sociedade cindida. Como você tem avaliado o governo, em relação aos anseios da sociedade?
 
Você tem o lançamento de um monte de programas de reestruturação, de programas que foram desestruturados no governo anterior e que ainda estão em construção. E esse tipo de política não chegou na ponta. É isso que eu estava falando antes, da pequena agricultura, não chegou o programa Desenrola para as dívidas, não chegou crédito, não chegou o programa de habitação no campo, não teve desapropriação de terras, não teve assentamentos. E para o público urbano, em geral, também não chegou. 

Tem um conjunto de políticas, dificuldade de recursos, mas a burocracia do estado também impediu que esse tipo de programa chegasse ao povo. Então, havia uma expectativa, evidentemente, e isso não vem se concretizando. Agora, do ponto de vista político, ninguém imaginava que fosse diferente.

Ou seja, é uma sociedade cindida, de fato, polarizada. Aí tem ingredientes estruturais, históricos, eu brinco até com a turma da esquerda por aí. Porque você teve um determinado momento na história em que a possibilidade de ganhos e reformas, fruto de um momento histórico do desenvolvimento do próprio capitalismo, de uma conjuntura internacional diferenciada, permitiu ganhos para as classes trabalhadoras. 

E nós adentramos um tempo histórico que, ao contrário de obter conquistas, a classe trabalhadora vem obtendo perdas em direitos trabalhistas, previdenciários e uma série de questões. Naquele momento em que havia possibilidade de ganhos, cresceu um agrupamento político que nós, genericamente podemos chamar aqui de uma social-democracia, que cresceu muito, com força política. Por que a tal social-democracia entrou em crise? Porque acabou o tempo das grandes reformas e de grandes conquistas. É uma sociedade polarizada.

Mas cá para nós, no último período, e agora vou falar para as esquerdas, propriamente, nós perdemos a bandeira da luta antissistêmica e quem pegou essa bandeira na mão foi a direita. Claro que é fake, é óbvio, mas a esquerda não conseguiu dar respostas. Eu estou dizendo tudo isso para misturar as questões, propositalmente, porque eu acho que a eleição do Lula para muitos setores, inclusive de organizações populares, afirmavam que o Lula iria resolver. 

Desde o começo do governo Lula nós temos falado: "olha, nós temos quatro anos para acumular forças, nós temos quatro anos para tentar resolver os principais problemas do nosso povo e essa é a nossa tarefa". Nós temos quatro anos para pensar uma estratégia econômica que envolva agroindústrias, cooperativas. E nós temos quatro anos para nos organizar e desenvolver consciência política. 

Ou seja, não basta só resolver os problemas econômicos, você não casa com organização popular e assim por diante. Então, é evidente que o governo e a burocracia do governo não está cumprindo com aquilo que prometeu, mas também por outro lado, de parte nossa, vamos chamar assim, não há um processo de mobilização. 

O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra completa 40 anos em 2024, um ano muito emblemático para o movimento, considerado o maior da América Latina. O MST teve que se adaptar à contemporaneidade, principalmente nos últimos quatro anos. Estamos também às portas do Abril Vermelho, o 17 de abril, marcado por ocupações históricas nesse período. Como o movimento deve se posicionar nesse período?

Esse é mais um capítulo e é a lei. Dia 17 de abril, assinado pelo Fernando Henrique Cardoso, está lá escrito: Dia Nacional de Luta pela Reforma Agrária. Quem não fizer luta está fora da lei. Nós vamos fazer luta, vamos fazer mobilizações. É isso que a nossa base quer, precisa, porque não recebeu absolutamente nada ainda nesse governo.

Nos primeiros meses do terceiro mandato de Lula houve uma série de ações do MST, ocupações de terra que fizeram importantes denúncias contra latifundiários irregulares. À época houve uma resposta negativa do governo e até a instalação de uma CPI contra o MST. Vocês esperam mais uma reação negativa do governo federal? 

Eu espero que não. Espero que eles tenham aprendido que movimento popular que não faz luta é pelego. Não faz sentido de ser, aí vira qualquer outra coisa. Nós vamos fazer luta, é nossa responsabilidade, eu diria mais do que isso, a gente luta não é porque a gente acha bonito, ninguém gosta de ficar embaixo de barracas de lona. 

Eu fui acampar tinha 18 anos, em 1985. Tem ludicidade, tem beleza? Claro que tem, é óbvio, mas a luta é a única linguagem que as classes dominantes brasileiras entenderam, ao longo da história, e foi através da luta que nós conseguimos assentar mais de 400 mil famílias de sem-terra nesse país.

Então, nós vamos fazer luta não porque achamos bonito, é porque é uma necessidade. E a luta forma, a luta conquista. Eu sou daqueles defensores disso: as conquistas, não é o líder, um bom negociador, uma boa negociação, que vai garanti-las. As conquistas são fruto da mobilização social, é o povo organizado que conquista. 

O MST vai fazer grandes lutas por esse país e não importa... Uma coisa importante, nós ajudamos a eleger o governo Lula, nós entendemos como o nosso governo. Agora, nós temos clareza de duas coisas: um, nós precisamos obter conquista para o nosso povo, é uma tarefa do nosso movimento; dois, nós precisamos, para a saúde do nosso movimento, manter a autonomia política. É óbvio que nós vamos apoiar o governo naquilo que for importante para a sociedade brasileira, mas é óbvio também que nós vamos bater inclusive na presidência do Lula, naquilo que nós achamos que não serve para o povo brasileiro.

Edição: Thalita Pires