AMÉRICA LATINA

Prisões, fugas e referendo anticorrupção: o que está acontecendo no Peru?

Investigações implicam quatro ex-presidentes peruanos; população votou quatro propostas para conter corrupção no país

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |
O presidente do Peru, Martín Vizcarra (centro), propôs quatro reformas constitucionais como resposta aos casos de corrupção no país
O presidente do Peru, Martín Vizcarra (centro), propôs quatro reformas constitucionais como resposta aos casos de corrupção no país - Presidência Peru

Em menos de dois anos, casos de corrupção envolvendo a construtora Odebrecht causaram uma reviravolta na vida de quatro ex-presidentes do Peru: a Justiça prendeu preventivamente Ollanta Humala; Alejandro Toledo fugiu para os Estados Unidos; Alan García tentou, sem sorte, se exilar no Uruguai; e, mais recentemente, Pedro Pablo Kuczynski renunciou à presidência.

Além disso, um escândalo envolvendo gravações de conversas entre juízes revelaram vendas de sentenças e tráfico de influência. A operação ficou conhecida como “Lava Juiz”, em referência à Operação Lava Jato. 

Para amenizar o mau clima, quatro reformas constitucionais foram propostas pelo atual presidente do país, Martín Vizcarra, e submetidas a um referendo que ocorreu no dia 9 de dezembro. São elas: reforma do sistema do Conselho Nacional de Magistratura, reforma do financiamento de partidos políticos, proibição da reeleição dos parlamentares e retorno ao sistema bicameral. 

O Brasil de Fato preparou seis tópicos para explicar o que está acontecendo no Peru. 

Odebrecht

O ex-presidente do Peru, Pedro Pablo Kuczynski (PPK), do partido Peruanos Pelo Kambio, renunciou em março deste ano, após a divulgação de uma série de vídeos que mostram parlamentares governistas negociando a compra de votos no Congresso. O objetivo da manobra era salvar o mandato de PPK, alvo de um processo de impeachment. 

Desdobramentos da Operação Lava Jato no Peru indicaram que ele recebeu propina da construtora brasileira Odebrecht em troca de facilitar negócios entre a empresa e o governo quando era ministro do Planejamento do presidente Alejandro Toledo, que governou o país entre 2001 e 2006. 

PPK já havia se livrado de uma primeira tentativa de cassação em 22 de dezembro de 2017. O pedido de destituição obteve 79 votos, nove a menos do que o necessário para aprovar a moção.

Além de PPK, o caso Odebrecht passou a implicar outros três ex-presidentes.

Ollanta Humala (2011-2016), do Partido Nacional Peruano, e sua esposa Nadine Heredia foram condenados preventivamente. Após nove meses de prisão, a Justiça decidiu que eles poderão responder em liberdade à acusação de lavagem de dinheiro. Segundo a procuradoria peruana, 3 milhões de dólares da empresa foram destinados ilegalmente à campanha eleitoral de Humala, em 2011.

Alejandro Toledo (2001-2006), do Possível Peru, acusado de ter recebido 20 milhões de dólares em propina da Odebrecht, fugiu para os Estados Unidos no início das investigações. Segundo Jorge Barata, ex-diretor da empresa, a remessa foi paga em troca de benefícios na licitação de trechos da Estrada Interoceânica Sul. Em maio, o Ministério das Relações exteriores do Peru entregou ao Departamento de Estado norte-americano um pedido de extradição de Toledo.

Além disso, o duas vezes presidente Alan García (1985-1990 e 2006-2011), está sendo investigado por suposto envolvimento em crimes de corrupção e lavagem de dinheiro em um caso de pagamento de propinas para a construção da Linha 1 do metrô de Lima. García negou as acusações e disse ser vítima de perseguição política. O ex-presidente pediu asilo ao governo uruguaio, mas a solicitação foi recusada.

Segundo José Carlos Llerena, da La Junta, organização política criada no Peru em 2012 para oferecer formação política em torno de um projeto de integração continental, os principais prejudicados pelos escândalos são os empresários e políticos do país.

“Os grandes perdedores são os políticos que estão no Congresso, o fujimorismo, o aprismo, e também as elites”. Segundo ele, as investigações da Lava Jato colocaram os “refletores apontados para os políticos”, causando um racha dentro da estrutura dos partidos. 

“É um escândalo que vem envolvendo judicialmente ex-presidentes, mas também empresários e a oligarquia que sempre dominou a nossa cena política”, afirma. Para ele, “todos os presidentes, inclusive o ex-ditador Alberto Fujimori [que governou o país entre 1990 e 2000], estão sendo investigados, processados ou já foram sentenciados pela Justiça em função dos diversos episódios desse capítulo que é a Lava Jato”.

“Lava Juiz”

No começo de julho deste ano, gravações telefônicas entre membros do Conselho Nacional de Magistratura (CNM), órgão responsável por nomear e fiscalizar juízes, foram divulgadas pelo site IDL-Reporteros. Os áudios mostram magistrados de diferentes instâncias combinando sentenças. O caso ficou conhecido como “Lava Juiz”, em referência à Operação Lava Jato.

O vazamento que causou maior indignação é o que o juiz César Hinostroza, presidente de uma das varas da Suprema Corte, negocia inocentar um homem acusado de estuprar uma criança.

“Quantos anos tem? Dez anos? [...] Mas não é mais virgem? [...] O que eles querem, que a sentença seja diminuída ou que eles sejam declarados inocentes?”, diz Hinostroza durante a conversa. 

O juiz foi destituído da presidência da vara penal que dirigia e o Poder Judiciário proibiu que ele saia do país enquanto durarem as investigações desse e de outros vazamentos.

Outro áudio envolve Walter Ríos, presidente da Corte Superior de Callao. Na gravação, Ríos parece pedir dinheiro em troca de ajudar um juiz a subir de cargo. Ele agora é acusado de tráfico de influência e teve a prisão preventiva decretada. 

Por conta do escândalo, o Congresso aprovou em julho, por unanimidade, a remoção de todos os membros do CNM. A sessão foi convocada a pedido do presidente peruano, Martín Vizcarra, após milhares de pessoas protestarem pelo país.

Neste período, o presidente da Suprema Corte, Duberlí Rodríguez, apresentou sua “renúncia irrevogável” ao cargo. A Justiça do Peru declarou estado de emergência em função do escândalo. 

Como resposta, Vizcarra anunciou em agosto um pacote com quatro reformas que tem como objetivo frear os casos de corrupção e fornecer uma alternativa para acalmar os ânimos no país. 

As quatro propostas foram submetidas a um referendo que ocorreu no dia 9 de dezembro.

Reforma no CNM

Uma das reformas propõe mudanças no Conselho Nacional de Magistratura. O órgão é responsável por ratificar, destituir e fiscalizar juízes. A medida é uma resposta ao conteúdo dos áudios divulgados no caso “Lava Juiz”.

A reforma constitucional propõe que o CNM passe a se chamar Junta Nacional de Justiça (JNJ) e continue designando juízes. No entanto, o processo para escolher os membros da Junta se dará por meio de um concurso público e uma avaliação pessoal.

Atualmente, os membros do CNM são selecionados por meio de uma votação secreta. Com a aprovação da medida, os magistrados terão que passar pelo crivo de sete membros: o Defensor do Povo, o presidente do Tribunal Constitucional, o Procurador Geral da República, o presidente do Tribunal de Contas, o presidente do Poder Judiciário, o reitor de uma universidade pública e um de uma universidade privada. Além disso, os juízes deverão ter ao menos 25 anos de experiência jurídica para serem escolhidos.

Reforma do financiamento de partidos políticos

O projeto busca mudar o artigo 35 da Constituição, que diz que: “A lei estabelece normas orientadas a assegurar a transparência da origem dos recursos econômicos (dos partidos) e o acesso gratuito a meios de comunicação social do Estado”.

A proposta enviada ao Congresso pede que as despesas de campanha não fossem mais declaradas somente durante os períodos de processo eleitoral, mas que passassem a ter maior regularidade. Também exige que todas as doações passem obrigatoriamente pelo sistema financeiro (bancário), proibindo repasses por fontes anônimas ou condenadas por delitos contra a administração pública, tráfico de drogas, mineração ilegal e ligadas ao crime organizado.

A modificação do Congresso, no entanto, manteve somente a obrigatoriedade de as doações “se realizarem por meio do sistema financeiro” e que as penalidades ao financiamento ilegal não incluam somente sanções administrativas e civis, mas também penais.

A reforma é uma resposta aos casos de corrupção envolvendo a Odebrecht. 

Não reeleição de congressistas 

No Peru, prefeitos, governadores e presidente da República não podem ter dois mandatos consecutivos. Uma das reformas propõe que o mesmo aconteça com os parlamentares. 

A proposta de Vizcarra sustenta que proibir a reeleição busca “maior transparência dos cargos de eleição popular”. Também cita um informe do Ministério de Justiça que diz que “a reeleição consecutiva traz desvantagens, como a manutenção nociva das elites no poder”.

Na análise de José Carlos Llerena, a reforma que impede a reeleição de parlamentares está sendo vista pelos movimentos sociais peruanos como positiva. “Existem muitos congressistas que se perpetuam no poder, e é justamente essa possibilidade de reeleição que incentiva os casos de corrupção. Não é uma medida que irá solucionar os problemas, mas pode servir como uma ferramenta que irá gerar outro tipo de debate”, diz.

Bicameralismo

O Legislativo peruano não possui duas câmaras desde o autogolpe cometido pelo ditador Alberto Fujimori, em 1992. No ano seguinte, em 1993, a Constituição estabeleceu que o país passaria a funcionar somente com um órgão legislativo. A título de comparação, no Brasil o Legislativo é exercido por duas câmaras: a baixa (Câmara dos Deputados) e a alta (Senado Federal).

A reforma propunha a restauração do sistema bicameral, afirmando que o modelo “aprova leis de melhor qualidade, já que o Senado atua como revisor da Câmara dos Deputados [...], há um parlamento mais representativo, se assegura uma porcentagem de representantes de qualidade, e se procura maior controle político”. 

A medida não altera o número total de representantes. Ao invés de 130 congressistas, haveria 100 deputados e 30 senadores.

Dentre as reformas apresentadas, somente a de retorno ao bicameralismo não foi aprovada. 

Edição: Vivian Fernandes