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Como em 1848?

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Manifestante com bandeira Mapuche no topo de estátua militar em Santiago (Chile), durante protesto do dia 25 de outubro
Manifestante com bandeira Mapuche no topo de estátua militar em Santiago (Chile), durante protesto do dia 25 de outubro - Susana Hidalgo
Estamos diante de um impasse de natureza estratégica para as forças de esquerda

São profundas e rápidas as mudanças que assistimos no atual momento. Recentemente, Mario Sergio Conti escreveu uma coluna enumerando as dez revoltas populares que se espalharam pelo mundo no último mês*. Seu artigo menciona que a velocidade e abrangência do processo atual lembram as revoluções europeias de 1848.

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Antes de tudo, guardemos as proporções para evitar a comparação direta com um processo que Eric Hobsbawn definiu como a maior revolução – que se espalhou tão rápida e amplamente pelo mundo, como fogo na palha sobre países, fronteiras e até mesmo oceanos.

Ressalvados os riscos de uma comparação histórica, é forçoso reconhecer que existem sim, similaridades entre o atual momento e o impactante ano de 1848, para além da rapidez da propagação e a extensão global.

A primeira semelhança, comum no alastramento de explosões sociais é que a fagulha surge a partir de um incidente inesperado e quase trivial, ganhando proporções inusitadas com extrema velocidade.

A segunda é o período de profunda e acelerada mudança nas estruturas de trabalho, como a atual precarização e uberização que ainda não encontram uma correspondência organizativa. Também nos primeiros anos do século XIX a jovem classe operária já não cabia nas velhas corporações de ofícios e sua construção sindical era embrionária. Nas diversas revoltas europeias em 1848, o anacronismo de uma estrutura organizativa que não respondia às novas formas de trabalho e às condições da nascente classe estiveram presentes nos limites do avanço revolucionário.

Nas revoltas atuais, cada batalha, ainda quando perdida, desenvolve experiências. Com base nelas, novas figuras de organização são criadas, um processo que exige não penas tempo, mas uma teoria capaz de proporcionar sínteses.

A terceira e principal semelhança está no potencial insurrecional. Ele acaba limitado pela ausência de uma direção política legitimada, capaz de conduzir as insatisfações para um processo de transformação social.

As massas proletarizadas que irrompem nas ruas são vítimas do desemprego, que atinge fortemente a juventude; da precarização abrupta e sem saída; do agravamento da segregação urbana; do desmonte do ensino público; e da pauperização e desestruturação das famílias. No entanto, elas raramente se enxergam nas organizações políticas e populares que acumularam anos de formação e construção militante.

As classes lutam através das organizações que reconhecem como sua representação. Quando isso não ocorre, a força de uma explosão social tem dificuldade de se manter e acumular após o impacto da inevitável repressão enfrentada.

Um dos principais ensinamentos históricos do século XX é que sem uma vanguarda, por maior que seja a dimensão das lutas e sua combatividade, as insatisfações não se convertem em programa político. Também não são capazes de atrair outros setores e o destino inevitável é o isolamento e a derrota ante o aparato repressivo.

No Brasil, é insuficiente afirmar que a perda de referência das classes trabalhadoras nas organizações de esquerda decorre simplesmente do abandono do trabalho de base. Ainda que o trabalho de organização popular não tenha tido nas últimas décadas o mesmo impulso dos anos 80, todas as forças de esquerda se dedicaram a inúmeras e diversas experiências.

Em nosso país, a hipótese mais provável é que a maioria das experiências de trabalho de base se deu no bojo de uma estratégia cujo objetivo central resultou nos governos petistas de 2002 a 2016. A estratégia foi derrotada pelo golpe.

Outro componente fundamental a ser levado em considerado na extração ensinamentos da atual onda de revoltas populares é que, em nosso continente,  a ofensiva golpista está alinhada com o imperialismo estadunidense. Assim, estamos assistindo ao acelerado desmonte das margens democráticas e dos mecanismos estatais que possibilitaram a experiência de governos progressistas. As margens de decisão política se tornam cada vez mais estreitas e podem ser exercidas somente se não afetarem as bases determinantes da política e da economia.

Os centros decisórios mais importantes são colocados à margem de qualquer controle social. Nenhum contrato firmado nos marcos do neoliberalismo poderá ser alterado.

A consequência e o propósito disso é inviabilizar as alianças entre frações de classes e os projetos de desenvolvimento nacional e regional que viabilizaram e marcaram os governos progressistas do continente Busca, assim,  impossibilitar uma importante janela histórica de acúmulo para as classes trabalhadoras.

Em resumo, pretende-se impossibilitar que novas experiências de governos neodesenvolvimentistas ocorram, desmontando os mecanismos que os possibilitaram.

Ao fechar as portas dos espaços democráticos, empurram as insatisfações crescentes para nas ruas, onde explodem. Apostando que a repressão dará conta do sufocamento, geram ainda o medo que proporciona a base social para prosseguirem seus intentos.

Diante dessa equação, o debate estratégico para a esquerda se abre. Sugestivas, porém insuficientes, essas reflexões ainda são parciais. É imperativo que o tema volte a ser enfrentado nos próximos artigos.

Estamos diante de um impasse de natureza estratégica para as forças de esquerda. A atual onda de revoltas e as mudanças profundas -- causadas pela ofensiva que busca nos aniquilar -- impõe a necessidade de um balanço que, extraindo o máximo de ensinamentos que as lutas sinalizam, seja capaz de combinar as tarefas ideológicas com esse complexo momento histórico. É preciso responder na teoria e na prática aos desafios organizativos e políticos que conformam a necessária estratégia.

Edição: Julia Chequer