Forças Armadas

Artigo | Teses sobre a história dos militares no Brasil, por Francisco Teixeira

Crise da "Nova República" explicitou papel das Forças Armadas como atores políticos

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |
Bolsonaro conversa com o General Luiz Eduardo Ramos Baptista Pereira, em cerimônia de graduação de militares na Vila Militar, Rio de Janeiro
Bolsonaro conversa com o General Luiz Eduardo Ramos Baptista Pereira, em cerimônia de graduação de militares na Vila Militar, Rio de Janeiro - Foto: Fernando Souza/AFP

A crise política da Nova República, de 2013 em diante, na contramão do pensamento político dominante até então, explicitou o papel dos Militares como atores políticos de primeiro plano no cenário político brasileiro, bem como elemento recursal e de “arbítrio comprometido” no jogo político.

Continua após publicidade

Os Militares e sua atuação representam, mais de 30 anos após o fim do Regime Civil-Militar de 1964, uma memória reconstruída pela direita nacional, cristã e dita patriótica, como repositório salvacionista-institucional contra os movimentos populares, genericamente ditos “de esquerda”, populares, inclusivos, brasileiros ou sul-americanos, englobados em rótulos gerais como “petistas”, “comunistas” ou “bolivarianos”.

A expectativa de uma FFAA (Força Armada Brasileira) ‘salvacionista”, enquanto “projeto nacional” soberano e desenvolvimentista, transborda setores amplos da sociedade e é cobrada por grupos variados do espectro político, incluídos alguns grupos da esquerda que se sentem “traídos” e continuam “buscando” os setores, ou mesmo “personalidades nacionalistas” no interior das FFAA. Trata-se, sem dúvida, de uma herança cesarista, com raízes em movimentos como o tenentismo, na Revolução da Aliança Nacional Libertadora, de 1934/35 ou nos regimes militares do tipo Juan Velasquez Alvarado (1968-1975) no Peru. Desacreditamos claramente na existência, nos dias de hoje, de um setor/grupo/liderança nacionalista – no sentido anti-imperialista-desenvolvimentista – nas FFAA brasileiras.

As FFAA participaram desde muito cedo, primeiro de forma discreta, através dos quadros da Reserva, clubes e associações, bem como mídias até então pouco conhecidas – como DefesaNet – da formação e organização de grupos de conspiração contra os governos progressistas eleitos (desde 2002), antecipando-se aos grupos de conspiração civis políticos-judiciais-empresariais-mediáticos, independentes da conjuntura econômica, explicitando uma herança de rejeição e “memória compartilhada” herdada, senão de 1964, ao menos do Golpe falhado/Contragolpe de 12/10/1977, tentado pelo General Sílvio Frota, marcando a oposição militar ao Projeto Golbery-Geisel, cujo elo na cadeia histórica se faz através do General Augusto Heleno. 

Devemos, entretanto, destacar que não se trata, necessariamente, da presença física de elementos humanos unindo épocas: trata-se do compartilhamento de memórias inventadas e da construção contínua da história através de entidades infra-institucionais, especialmente os colégios e escolas militares, as cerimônias e liturgias militares, as ordens do dia e entidades como a Bibliex. O papel da memória reconstruída, compartilhada e da liturgia corporativa são, neste processo, fundamentais.

A partir de 2013 as FFAA assumiram cada vez mais claramente uma posição de rejeição ao governo eleito, com manifestações efetivas de apoio aos processos que culminariam no impedimento do governo Dilma Rousseff e na formação e garantia do governo Temer, propiciando a confluência da murmurante  “conspiração militar”, anterior. Ela foi gestada no âmbito da Reserva, com a “conspiração civil” de partidos políticos (PSDB, PMDB, “Centrão” etc..), grupos institucionais (PGR/MPF, Poder Judiciário e PF) e a grande mídia, culminando na paralisia do governo federal, explicitando a força do conjunto dos estamentos corporativos no espaço do Estado brasileiro.

Em 2016, de forma explícita e como discurso oficial das FFAA, a “Teoria da Tutela Militar sobre as Instituições Republicanas” foi ressignificada no âmbito do Alto Comando do Exército e do próprio Comandante do Exército. Um diagnóstico de “um país à deriva” foi diversas vezes sacado para justificar o protagonismo de chefes militares, em especial do Comandante do Exército, que assume um papel de condutor da nação na crise do Estado, para distinguir a “missão militar”, ética e salvacionista – de acordo com a “memória construída” das FFAA, disponível para o grande público, do papel dos políticos cada vez mais desqualificados na gestão da Nação. Neste “novo” velho papel emerge uma nova narrativa edificante para a legitimação das FFAA, que vem substituir processos históricos “esquecidos”, por demais distantes na História – Guerra do Paraguai, “sacrifícios” dos Pracinhas da FEB na Segunda Guerra Mundial; trata-se da chamada “ideologia do Haiti” (que pode se estender ao Congo, Sudão, Kosovo ou outras partes do mundo). 

Cria-se, pois, uma espécie de irmandade “de armas” como substituto de “batismo de fogo”, que deveria demonstrar as capacidades do oficial brasileiro para se empenhar nas ações públicas, em especial via artigo 142 da Constituição Federal, a chamada GLO – Garantia de Manutenção da Lei e da Ordem -, para “salvar” o país. As ações “humanitárias” da Era PT no exterior produziram uma “irmandade de armas” não esperada, e não bem avaliada ainda, muito próxima àquela do final da Segunda Guerra Mundial, entre militares da geração anterior responsáveis pelo Golpe de 1964, com impacto geracional semelhante para 2016.

Implementou-se, desde então, a Doutrina da “Tutela da Nação”, ensinada nos colégios militares como mito fundador da Nação. Trata-se de uma visão teológica, historicista, derivada de uma historiografia romântica e liberal do século XIX, em especial da obra de Francisco Adolfo Varnhagen (1816-1876), Visconde de Porto Seguro, historiador, militar e diplomata, capaz de fundamentar a Independência e a Natureza – Essenz - específica de uma Kultur brasileira (conforme o misticismo romântico alemão do século XIX). 

Tal visão da História do Brasil rapidamente perde seu caráter liberal sob a Monarquia, para assumir-se conservadora e institucionalista sob a monarquia plantacionista e escravocrata. Em seguida é apropriada e simplificada, agora pelo Exército, tornando-se salvacionista quando da passagem da Monarquia para a República, quando os militares passam a atribuir a si mesmos - e não mais ao “Gênio do Povo”, síntese das raças na visão mística do Romantismo -  a própria fundação da Nação.

As chamadas “Guerras Brasílicas”, valoradas na primeira historiografia romântica, liberal e progressista brasileira como um episódio central fundante da nacionalidade (ao contrário das demais nações americanas, que centram suas historiografias nas guerras de independência), aos poucos tornam-se a legitimação da Casa de Orleans e Bragança contra as pretensões republicanas – Pernambuco, Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Minas Gerais, São Paulo – e a manutenção do domínio do “plantacionismo” escravista (Vidal de Negreiros é Senhor de Engenho; Henrique Dias é um negro que luta ao lado dos brancos – e contra os quilombos, e Felipe Camarão, o índio “brasileiro” integrado). 

Com a Proclamação da República em 1889, a mítica das  “Guerras Brasílicas” é despida de sua narrativa liberal e passa a uma versão positivista-autoritária, onde o Estado é prévio à Nação, construído na guerra pelos militares, na luta  contra os holandeses, em meados do século XVII – onde a “ideia” de Brasil já existe, embora os personagens centrais lutem por Portugal, em especial nas Batalhas de Guararapes (1648/49), onde brancos, negros e índios – numa visão pacificadora da luta de classes e removedora de quaisquer traços do racismo estrutural que acompanha e sucede a escravidão. 

A guerra uniu os “brasileiros” (antes de existir Brasil) para fundarem a Nação. Assim, coube ao Exército, a mais antiga das Forças, assegurar a própria existência da Nação e daí decorre o próprio mandato de “guarda”, proteção e “tutela” da pátria nos momentos de transe. Nesta versão, a ação do Exército, formado pelas raças em perfeita união, em comunhão contra o inimigo externo, antecede de muito a Proclamação da República, em 1889, que passa a ser mais uma confirmação da ação tutelar da Nação, em especial no seu repúdio ao trabalho escravo, ao atraso religioso via o positivismo e ao anacronismo monárquico.

Notemos que a “Doutrina da Tutela”, nesse caso, é mais profunda, enraizada, que a versão proposta por Alfred Stepan e José Murilo de Carvalho, criticada por Carlos Fico, como decorrente da incorporação do decaído Poder Moderador, personificado pelo Imperador, e transferido pelo dito “Golpe da República” em 1889. 

Assim, na verdade, a “Doutrina da Tutela” faz parte de uma visão autoritária do Estado, próxima da concepção prusso-bismarckniana sobre a fundação do Estado alemão, em 1871, onde as FFAA – personificadas no Estado-Maior -  antecedem a existência da Nação unificada e são responsáveis por sua própria existência como ente estatal, daí decorrendo o direito de definir sua forma, natureza, extensão e, consequentemente, quem é cidadão e quem são seus inimigos. Há uma afirmação da colaboração de classes no mito do trabalho comum de André Vidal de Negreiros (1606-1680), do índio Felipe Camarão (1661-1648) e do negro Henrique Dias, morto em 1662 – este, inclusive, combatente de quilombos na Bahia. 

O mais interessante na vitória luso-brasileira nas batalhas dos Guararapes é que a Colônia lusitana teve que pagar, pelo Tratado de Haia, ou Paz de Holanda, o equivalente a quatro e meia toneladas de ouro aos vencidos!

A Nova República, como proclamada por Tancredo Neves, em 1985, e depois consagrada na Constituição de 1988, não atentou para as raízes autoritárias preservadas na doutrina que embasa a própria existência das FFAA no Brasil. As condições em que se deu a “Transição” preservaram o fundamental do autoritarismo existente nas bases justificadoras da existência das instituições que detinham o monopólio legal da violência, não só as FFAA como, em piores condições, as polícias estaduais, civil e militar, como ainda a Polícia Federal e os órgãos de informação e de inteligência do Estado, incluindo a LSN, ainda em vigor, bem como na construção da memória compartilhada e na invenção da História nos colégios e escolas militares. Nestes casos não houve qualquer “transição”, com uma mera mudança de alvo central da repressão política para a segurança pública e manutenção dos mesmos agentes, métodos, acervos, currículos etc...

*Francisco Carlos Teixeira da Silva é professor titular de História Moderna e Contemporânea da IFCS/UFRJ e professor titular de Teoria Política do CPDA/UFRRJ.

Edição: José Eduardo Bernardes