Economia

Juros baixos para quem?

A menor taxa de juros da história do Brasil não consegue aquecer a economia e distribuir crédito entre os mais pobres

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |

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Governo foca na política cambial e deixa de lado bem estar social - Fotos Públicas

Juros baixos e dólar alto são o novo normal do Brasil. A afirmação vem sendo comprovada em diversas declarações feitas pelo ministro da Economia, Paulo Guedes e dá um indicativo de que os menores juros da história vieram para ficar e serão ponto fixo na política econômica do atual governo. 

Em teoria, a taxa Selic mais baixa tem potencial de mudar completamente a economia brasileira. Isso porque ela serve de referência para todas as operações financeiras do Brasil. É como se o patamar da Selic fosse o preço do dinheiro. 

A taxa é usada para remunerar os títulos públicos: pedaços da dívida de um governo que qualquer cidadão, empresa ou banco pode comprar. O governo, ao vender esses títulos, está pegando dinheiro emprestado e os juros do pagamento desses empréstimos são determinados pela Selic.

Se o governo vende essas dívidas com juros mais altos, ele puxa para cima o custo de todas as operações financeiras da economia. Se a Selic está baixa, portanto, essas operações ficariam mais baratas. 

Seguindo essa lógica, um empréstimo para a compra de um carro, de uma casa ou de um equipamento para uma pequena empresa deveria ser mais barato para o cidadão. Pegar dinheiro para financiar um curso superior ou uma reforma deveria ser algo cada vez mais acessível. 

E por que nada disso aconteceu? Existem vários motivos para explicar por que os juros mais baixos da história brasileira não estão chegando à população. Um deles é o lucro dos bancos. De fato a Selic mais baixa tornou as operações financeiras mais baratas, mas os bancos não repassaram esse barateamento para o tomador final: trabalhadores, empresários e cidadãos que precisam ter acesso ao dinheiro para investir.

Além disso, os números de desempregados, pessoas com empregos precários e o nível do endividamento do brasileiro não dão mostras de que vão melhorar. Sem emprego garantido, dinheiro para o básico e com muitas dívidas fica difícil até mesmo pensar em buscar crédito para qualquer tipo de investimento, seja na vida pessoal, seja em uma pequena ou média empresa.

Política monetária não é mágica

O professor da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo e coordenador do Grupo de Conjuntura da Fundação Perseu Abramo, William Nozack, afirma que a gestão econômica do governo Bolsonaro tornou a política monetária uma espécie de fetiche, que teria capacidade de resolver magicamente os problemas da economia. Ele ressalta no entanto, que uma série de fatores essenciais não estão em prática.

“Não adianta eu ter uma taxa de juros básica em patamares menores se eu não tenho políticas sociais e políticas públicas que sejam capazes de injetar o crédito naquela fatia mais pobre da população e que precisa dos programas de transferência de rendas. Não adianta eu ter a taxa de juros básica em patamar diluído se o investimento público não é realizado, porque está em curso também uma política de desmonte do sistema produtivo estatal e do conjunto das empresas estatais. Não adianta eu ter uma taxa básica de juros diminuída, se temos um ambiente de incerteza que faz com que o empresariado não transforme isso em investimento que seja capaz de gerar emprego e renda.”

O governo maneja as variáveis macroeconômicas, como se da taxa de câmbio, da taxa de juros e da taxa fiscal fosse possível nascer um projeto de desenvolvimento para o país. Isso não vai acontecer automaticamente.

Nozack ressalta ainda que as reformas da previdência e trabalhista desorganizaram profundamente o mercado de trabalho brasileiro, o que gera impacto direto na busca por crédito. “Os vínculos formais mais estáveis foram substituídos por toda a forma de trabalho precário. Isso faz com que as pessoas, mesmo num ambiente de taxa de juros baixa, não tenham condições de acessar o crédito, porque têm os seus salários diminuídos e porque têm a sua remuneração baseada numa instabilidade muito grande.”

Bancos controlam a população

O economista André Paiva, mestre pela PUC São Paulo e um dos autores do livro O mito da Austeridade, explica que o governo usa a taxa de juros para tentar retomar a trajetória de crescimento do país, incentivar a atividade produtiva e a capacidade de consumo das famílias. Mas ele ressalta que os mecanismos para transmitir essa política ao tomador final não estão funcionando. Para o economista, o oligopólio bancário do Brasil é um dos grandes responsáveis pelo problema.

“Poucos bancos detém cerca de 70 a 80% do mercado de crédito. São cinco grandes bancos que detém uma parcela muito grande desse mercado. Além disso, eles têm as contas de grande parte das pessoas físicas ou jurídicas, ou seja: eles têm um acesso muito fácil ao tomador final. Esse oligopólio, esse controle, faz com que os bancos tenham a atitude de não repassar ou de repassar em um ritmo muito pequeno a queda da taxa de juros. Eles têm um poder de mercado muito grande.”

André ressalta que uma forma de contornar esse problema é usar os bancos públicos para aumentar a competitividade no sistema bancário.

“A gente tinha no governo Lula e no primeiro governo Dilma, por exemplo, uma atuação dos bancos públicos visando reduzir tarifas e os spreads bancários [diferença entre a remuneração que o banco paga ao aplicador para captar um recurso e o quanto esse banco cobra para emprestar o mesmo dinheiro]. Uma atitude que aumentou a competitividade. Junto com programas de crédito como Minha Casa Minha Vida e fomentos do BNDES para empresas aumentarem investimentos em máquinas e equipamentos isso proporcionou, via bancos públicos, que o crédito fosse mais acessível e menos restrito” 

O economista afirma, no entanto, que esse movimento não vem sendo observado no ritmo ideal.

“Atualmente a gente vive sob uma ideologia ultraliberal. O que a gente verifica é um processo de redução da importância que os bancos públicos têm na economia. O próprio BNDES tem sua participação na economia reduzida significativamente. No entanto, se a gente for verificar nos últimos meses, a Caixa Econômica até retomou a atuação de buscar reduzir a taxa de juros em alguns segmentos, por exemplo o crédito habitacional. Como os bancos privados não estão transmitindo a queda da taxa básica de juros para o tomador de crédito, o governo decidiu ter uma postura mais ativa recentemente. Ou seja, o que eles defendiam como o livre mercado, os próprios integrantes do governo viram que não surte efeito.” 

Amor pelos lucros e desdém pelo povo

Se o uso da política monetária por si só não está funcionando para a saúde da economia brasileira, por que não há um pacto mais amplo? Na opinião dos especialistas ouvidos pelo Brasil de Fato, a resposta para essa pergunta é mais simples do que se imagina. Passa pela busca exagerada do lucro e pela falta de vontade política de atender necessidades básicas e de bem estar social da população. 

“O lucro dos bancos no Brasil vem aumentando significativamente e a gente observa isso mesmo no período de crise, entre 2015 e 2016. Quando um gerente entra em contato com um cliente e pergunta se ele não quer aplicar dinheiro em  um CDB [Certificado de Depósito Bancário], por exemplo, o cliente está emprestando recursos para os bancos. Os bancos em grande parte captam recursos atrelados ao CDI [Certificado de Depósito Interbancário], que é muito próximo à taxa básica de juros. Por causa de seu tamanho, seu poder e da própria desinformação da sociedade, eles conseguem captar recursos de grande parte da população pagando menos que o próprio estado brasileiro paga. Esses bancos captam muitas vezes atrelados à variação da taxa básica de juros e pagando um percentual menor do que essa taxa. A cada redução dessa taxa, o custo de captação dos bancos também reduz. Eles captam mais barato, mas eles não estão repassando essa redução da taxa Selic ao tomador de crédito final no mesmo ritmo em que estão reduzindo seus custos. Ao segurarem essa redução, os bancos estão ampliando seu spread e um dos componentes do spread é sua margem de lucro. Eles estão ampliando o lucro nas operações. É uma busca por melhorar sempre os resultados.”

No Fórum Econômico Mundial em Davos este ano, o próprio ministro da Economia Paulo Guedes citou o oligopólio dos bancos brasileiros, numa tentativa de justificar a abertura de licitações públicas a empresas estrangeiras. “Queremos continuar sendo 200 milhões de trouxas servindo a seis empreiteiras e seis bancos?”

A fala do ministro, no entanto, não parece estar relacionada a uma preocupação com o bem estar dos trabalhadores brasileiros. Quando colocada ao lado das afirmações mais recente de Guedes sobre a política cambial e a alta do dólar isso fica ainda mais óbvio. Ao defender o câmbio alto nesta semana, a autoridade máxima da economia brasileira abusou de preconceitos e clichês.

“Não tem negócio de câmbio a R$ 1,80. Vamos exportar menos, substituição de importações, turismo, todo mundo indo para a Disneylândia, empregada doméstica indo para Disneylândia, uma festa danada. Pera aí. Pera aí, pera aí. Vai passear ali em Foz do Iguaçu, vai passear ali no Nordeste, está cheio de praia bonita. Vai para Cachoeiro do Itapemirim, vai conhecer onde o Roberto Carlos nasceu.”

O economista William Nozack afirma que a postura de Paulo Guedes e da equipe econômica do governo Bolsonaro reflete uma tentativa organizada, com interesses rentistas, privatistas e que tentam desmontar da maneira mais veloz possível as políticas públicas que possam incluir a população no crescimento econômico do país. 

A minha impressão é que está em curso um projeto deliberado de Brasil onde não cabem todos os brasileiros.

Nozack ressalta que as motivações dessa política estão intimamente ligadas ao fato de que o capitalismo falhou e não consegue entregar as promessas que fez. Frente a esse cenário de degradação, forças conservadoras e liberais se apressam em garantir qualquer tipo de ganho. É como se estivessem tentando tirar as últimas raspas do tacho.

“Nós chegamos a um nível de concentração de riqueza que separa, de uma maneira muito profunda, o 1% do topo da pirâmide do resto. O efeito colateral disso é que o capitalismo, num certo sentido, cria uma desfuncionalidade para ele mesmo, porque não pode mais entregar aquilo que é a sua promessa como sociedade civilizatória: melhoria de vida e ascensão social. Exatamente por termos chegado nessa situação é que o capitalismo, em âmbito internacional, começa a trazer uma série de agendas de combate a desigualdade e de discussões sobre como voltar a criar possibilidades de geração de demanda e de consumo. Diante desse cenário, me parece que as forças ultraneoliberais, sabendo que caminham para uma crise desse modelo de acumulação, têm acelerado os ganhos que podem fazer sobre os trabalhadores e por isso as forças conservadoras e neoconservadoras tem posto em marcha um projeto de desmonte da lógica dos direitos, do bem estar social e do pacto inclusivo.”

Edição: Leandro Melito