ALIMENTAÇÃO EM RISCO

Sem apoio, agricultores perdem produtos enquanto populações vulneráveis passam fome

Descaso dos últimos governos com as políticas da agricultura familiar impactam resposta do país em meio à pandemia

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |

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Agronegócio segue sendo beneficiado em detrimento da alimentação saudável e agroecológica - Foto: Arquivo / Agência Brasil

De um lado, famílias de trabalhadores informais das cidades brasileiras não conseguem se alimentar adequadamente durante a pandemia do novo coronavírus. Do outro, no campo, a realidade são quilos e quilos de alimentos agroecológicos perdidos. 

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Sem uma rede de logística estruturada e com cortes sucessivos em políticas voltadas à agricultura familiar a exemplo do Programa de Aquisição de Alimentos da Agricultura Familiar (PAA), em meio ao isolamento social, camponeses não conseguem realizar as entregas de sua produção ao supermercados ou comercializá-las em feiras. 

É o que acontece no semiárido do Rio Grande do Norte, por exemplo. Agricultores da Rede Xique Xique, que conta com 400 famílias filiadas de 15 municípios do entorno de Mossoró, não tem conseguido vender os alimentos agroecológicos produzidos.

“Como os produtos são fresquinhos, não dá para, em um dia, andarmos em todos esses municípios. A rede é uma associação de agricultores e agricultoras, não temos condição de fazer também essa logística de todos os produtos”, conta Francisca Eliane de Lima, coordenadora do coletivo. 

Com a pandemia e o fechamento das escolas, as compras para a alimentação dos alunos por meio do Programa Nacional de Alimento Escolar (PNAE), alvo de esvaziamento político, foram drasticamente reduzidas. 

As cestas básicas determinadas pelo governo do estado para atender as famílias das crianças mais vulneráveis, única demanda que os produtores ainda possuem, deixa de fora produtos importantes para uma nutrição adequada. 

“Os produtos que temos em abundância, batata, macaxeira, mamão, banana e  as frutas de época, estão se perdendo. A cajarana, a tamarina, nossas frutas da região, são frutas que temos nessa época e, como as escolas não estão recebendo, a gente perde porque não temos câmara fria para armazenar essas frutas. Não temos uma estrutura grande que dê conta de armazenar”, lamenta a agricultora, conhecida como Neneide. 

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A cajarana, assim como a tamarina e a acerola, rica em vitamina C, estão sendo perdidas também porque as unidades de beneficiamento nos municípios de Apodi e Felipe Guerra, que transformam as frutas em polpas, não estão em pleno funcionamento devido à covid-19.

Segundo alerta o Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA), a situação que se repete em todo o Brasil seria completamente diferente se o governo desse as respostas necessárias para os produtores.

A regulamentação para a execução de R$ 500 milhões para o PAA, por exemplo, anunciada por Tereza Cristina, ministra da Agricultura, no dia 8 de abril, só foi autorizada nesta segunda (27), quase 20 dias depois. 

O valor da Medida Provisória 957/2020, assinada por Jair Bolsonaro e pelo ministro da Economia, Paulo Guedes, ainda é considerada insuficiente frente à demanda no enfrentamento ao coronavírus. Os movimentos e especialistas da área reivindicam o orçamento de R$1 bi. 

:: População só terá acesso a alimentos de péssima qualidade durante pandemia ::

Humberto Palmeira, da coordenação do MPA, ressalta que o desmonte da programa, que compra alimentos dos agricultores e distribui parte à população mais ameaçada pela insegurança alimentar, tem acontecido nos últimos anos. 


Verba destinada ao PAA sofreu sucessivas quedas nos últimos anos / Arte: Michele Carvalho

No contexto atual, os danos são ainda mais profundos. Ele denuncia que, sem uma estrutura para o transporte da produção, os alimentos continuarão a não chegar a quem realmente precisa. 

Pesquisa divulgada pelo Data Favela no fim do mês de março já havia alertado que, sem ações específicas, 86% dos moradores das favelas brasileiras irão passar fome por causa do coronavírus.

Os pequenos agricultores defendem uma proposta de Plano Safra emergencial em resposta à calamidade pública em que vivemos, que prevê um investimento de R$ 54 bilhões ao longo de 14 meses e aponta a necessidade de formação de estoques de alimentos.

:: Confira ponto a ponto da proposta do Plano Safra Popular ::
 
“A centralidade do Plano é a produção de alimentos saudáveis para atender a população urbana que é quem vai mais sofrer. Para além de sofrer com a própria pandemia, vai sofrer com a fome. Já vem sofrendo. Nas ações que fazemos na periferia, os relatos são terríveis. As pessoas estão há uma semana, um mês, com pouca diversidade nutricional e isso irá gerar problemas de saúde”, afirma Palmeira. 

Commodities acima de tudo

Larissa Packer, advogada especialista em Direito Ambiental e integrante da organização não-governamental Grain América Latina, critica o fato de que mesmo em meio à pandemia, o agronegócio segue sendo privilegiado pelo Estado brasileiro em detrimento da agricultura familiar.

De acordo com ela, enquanto a produção de commodities está sendo considerada uma atividade essencial e funcionando a todo vapor, a agricultura familiar segue enfrentando uma série de limitações assim como os cidadãos que trabalham para o próprio agronegócio, que seguem pegando o transporte público e circulando em meio ao isolamento social. 

“Com os contratos de exportação de carne e soja para fora, o setor continua a ter exportações recordes sem nenhum tipo de obstrução ou limites de medidas sanitárias para isso. Por outro lado, o Estado vem praticando medidas de restrições nas feiras e nos espaços onde os trabalhadores rurais colocam seus produtos”, relata Packer. 

Em meio à crise, o setor foi agraciado com a renovação de R$ 6 bilhões em isenção para agrotóxicos em alguns estados brasileiros.
 
“Existem milhões de toneladas de alimentos que estão sendo perdidos por falta de apoio do estado, nessa logística de circuito curto, de abastecimento alimentar. Encontraremos, cada vez mais, uma restrição da diversidade alimentar nos mercados. Vamos encontrar um ou dois tipo de feijão, de arroz, sempre ligados a grandes processos industriais de processamento de grãos e de animais, que estão nessas atividades sociais e não encontram barreiras”, continua a ativista. 

Packer pontua ainda que há um desequilíbrio das medidas sanitárias entre os espaços da agricultura familiar e os grandes supermercados. Nesses locais, vegetais e legumes, por exemplo, não estão ensacados da forma correta. 

:: Lucro dos grandes supermercados aprofunda desigualdades no campo ::

Paralelo a esse processo, o incentivo aos deliverys durante a quarentena reforçam o lucro exclusivo das grandes empresas e marcas multinacionais, deixando de lado os pequenos agricultores. A advogada ambiental frisa ainda os aspectos negativos que esse processo pode trazer à saúde pública.


“O próprio governo está colaborando com a concentração da cadeia alimentar a favor dos produtos ultra processados e industrializados, com baixa qualidade nutricional, baseados em poucas variedades de sementes e legumes, em detrimento de uma produção agroecológica, sem agrotóxicos”. 

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Qual o caminho?

As inúmeras ações de solidariedade e distribuição de alimentos feitas pelos movimentos do campo durante a pandemia, são, na opinião de Humberto Palmeira, uma prova concreta de como a partir da reforma agrária é possível criar um Brasil com soberania e garantia alimentar.

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“O agronegócio não tem nenhum compromisso com a produção de alimentos para o povo brasileiro. O compromisso do agronegócio é a produção de commodities para atender a demanda do mercado internacional. Soja, milho, algodão, eucalipto e cana, boi, aves e suínos. A única proposta que permite transitarmos um projeto que garanta a alimentação na mesa do campo e na cidade é a agricultura familiar, a prática mostra isso”, defende o coordenador do MPA. 

Enquanto aguardam auxílio do governo, Neneide, que segue preocupada com a quantidade de cajaranas e tamarinas perdidas, tentam fazer o que pode para sobreviver por meio da venda independente. “Como as feiras estão paradas, começamos a dialogar com os clientes da feira, para poder receber em casa. É a maneira que estamos achando pros agricultores e agricultoras não perderem tanta produção”. 

Edição: Leandro Melito