Discurso x prática

Doria propôs cortar investimento em ciência em três ocasiões durante a pandemia

Orçamento da Fapesp para 2021 só foi garantido no último dia do ano, após pressão da comunidade científica

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |

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Doria aposta em discurso em defesa da ciência, mas ameaça constantemente o orçamento da Fapesp, principal instituição de fomento à pesquisa científica no estado - Valter Campanato / Agência Brasil

O governador de São Paulo, João Doria (PSDB), usou nas eleições de 2018 o slogan “BolsoDoria”, aproveitando a onda que elegeu Jair Bolsonaro (sem partido) à Presidência. De lá para cá, a conjuntura mudou, e o discurso também. A estratégia, desde o início da pandemia, é clara: consolidar-se como alternativa de oposição ao presidente no campo da direita, em meio ao fracasso do governo federal para combater a covid-19.

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O discurso do tucano em defesa da ciência é uma das respostas ao negacionismo e à propaganda antivacina difundida pelo capitão reformado. Embora Doria tente capitalizar a eficácia do imunizante CoronaVac, desenvolvido pelo Instituto Butantan, o histórico de seu governo aponta para ameaças constantes à pesquisa científica.

Relembre, abaixo, três vezes em que o governador propôs cortar investimentos da ciência durante a pandemia. Em todas elas, o alvo foi a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), principal instituição pública de fomento à pesquisa acadêmica no estado, ligada à Secretaria de Desenvolvimento Econômico, Ciência, Tecnologia e Inovação.

PL 529

O Projeto de Lei (PL) 529/2020, apresentado em 13 de agosto pelo governo do PSDB, propôs reter os fundos de reserva essenciais para a operação de universidades estaduais e da Fapesp. As instituições poderiam perder cerca de R$ 1 bilhão ainda em 2020, caso a proposta fosse implementada.

A ideia era que o superávit financeiro das autarquias e das fundações fosse transferido ao final de cada exercício à Conta Única do Tesouro Estadual, de modo a garantir “ajuste fiscal e equilíbrio das contas públicas”.

A medida foi removida do texto do projeto em outubro, após pressão de deputados de oposição e das comunidades acadêmicas do estado. Organizações como a Academia de Ciências do Estado de São Paulo (Aaciesp) e a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) chegaram a lançar um abaixo-assinado contra os cortes, reunindo mais de 178 mil assinaturas.

PL 627

O PL 627/2020, também de autoria do governo Doria, tentou reduzir em 30% o orçamento da Fapesp em 2021, com base em uma interpretação equivocada da Emenda Constitucional 93/2016, da Desvinculação de Receita de Estados e Municípios (DREM).

O prejuízo estimado para a Fapesp era estimado em cerca de R$ 454 milhões, sem garantias de que o governo estadual repassaria a verba posteriormente.

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A investida acendeu novo alerta na comunidade científica, uma vez que a Fapesp investe parte significativa do seu orçamento em projetos em andamento, que dependem de pagamento antecipado e de garantias de que haverá verba no ano que vem.

Doria recuou da medida, após nova mobilização, em 25 de novembro, quatro dias antes do 2º turno das eleições municipais.

Candidato à reeleição eleito na capital e apoiado pelo governador, Bruno Covas (PSDB) aproveitou o recuo para postar nas redes sociais, em plena reta final da campanha: “Um dos legados mais importantes da pandemia é a valorização da ciência. É fundamental apoiar e investir em instituições como a Fapesp, patrimônio do Brasil e de São Paulo”.

Acordo quebrado

A verba da Fapesp para 2021, no entanto, continuava sob ameaça. Em 13 de dezembro, a Comissão de Finanças, Orçamento e Planejamento da Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo (Alesp) manteve na proposta orçamentária a aplicação da DREM.

A medida foi entendida pela Academia Brasileira de Ciências como quebra de acordo por parte do governador.

“Seria ingênuo pressupor que o governador não soubesse deste parecer [que manteve possibilidade de cortes de até 30% do orçamento da Fapesp], publicado apenas dias antes da votação final prevista”, escreveram três professores da Universidade de São Paulo (USP), em artigo publicado na Folha de S. Paulo em 14 de dezembro.

A nova promessa de Doria era manter os cortes, mas pagá-los integralmente por meio de decretos em 2021.

“É cristalino, pelas repetidas investidas contra o financiamento e autonomia da Fapesp, que o governo do estado pretende impor uma violação constitucional pela força e cansaço, irresponsavelmente gerando um apagão científico”, alertaram naquele texto os professores Alícia Kowaltowski e Hernan Chaimovich, do Instituto de Química, e Paulo Nussenzveig, do Instituto de Física.

Pressão garantiu novo recuo

O orçamento da Fapesp para 2021 foi garantido no apagar das luzes do ano passado. O Decreto nº 65.438, publicado no Diário Oficial em 31 de dezembro, recompôs integralmente o orçamento da fundação e das três universidades públicas paulistas.

A pressão da comunidade científica garantiu respeito ao artigo 271 da Constituição Estadual, que estabelece que o Estado destinará 1% de sua receita tributária à Fapesp, e ao artigo 5 da Lei 17.286, que destina às universidades estaduais liberações mensais de ao menos 9,57% da arrecadação do ICMS.

“Nossa gestão mantém compromisso com a pesquisa e a ciência, mesmo em ano de grande desafio fiscal”, anunciou Doria pelo Twitter, celebrando mais uma vez seu próprio recuo após três tentativas seguidas de cortes no orçamento da Fapesp.

Edição: Rogério Jordão