Direitos humanos

Reconhecimento de comunidades tradicionais assegura vacinação na Ilha do Mel (PR)

Ribeirinhos integram grupo prioritário de vacinação do Plano Estadual

Brasil de Fato | Curitiba (PR) |
Toda população acima de 18 anos moradora da Ilha do Mel foi vacinada no início de junho - Foto: Registro das comunidades

A população adulta residente da Ilha do Mel, ilha costeira situada na Baía de Paranaguá (PR), afirma sentir-se mais protegida diante da pandemia da covid-19 com a recente imunização de quase 90% dos moradores com idade acima dos 18 anos.

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De acordo com o monitoramento de vacinação realizado pela Secretaria Estadual de Saúde (Sesa), cerca de 1.309 ribeirinhos foram vacinados em Paranaguá até o momento, sendo boa parte na Ilha do Mel - cerca de 800, de acordo com a associação local. A Prefeitura de Paranaguá anunciou que a meta é ter uma cobertura vacinal de 100%, com a 1ª dose ou dose única, já nas próximas semanas.

A vacinação massiva da população adulta só ocorreu porque o estado do Paraná reconheceu as comunidades tradicionais da Ilha como tais. Na 6ª versão do Plano Estadual de Vacinação do Paraná, ribeirinhos estão posicionados em 8ª lugar no grupo prioritário de vacinação.

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Mas o reconhecimento das comunidades ribeirinhas como parte do grupo prioritário não foi imediato.

A presidente da Associação dos Nativos da Ilha do Mel (Animpo), Michele Gonçalves Santos, relata que ainda em 2020 foi solicitado ao governo do estado o enquadramento das comunidades como prioridade na vacinação. Sem resposta do poder público, a Associação estabeleceu diálogo com demais órgãos, como Ministério Público Estadual e Conselho Estadual de Povos Indígenas e Comunidades Tradicionais.

“A gente começou a falar se tinha a previsão, eles falaram que a gente tinha direito, que estava na lei, mas que estava com dificuldade de vacinar quilombolas, por exemplo”, relata.

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A fala de Michele dialoga com o contexto no qual organizações representativas quilombolas ajuizaram ação no Supremo Tribunal Federal (STF) exigindo que o Estado brasileiro desenvolva medidas de proteção às comunidades em todo país diante da omissão governamental. A ação resultou, entre outros, na inclusão da população quilombola nos grupos prioritários de vacinação.


Moradores da Ilha do Mel fazem reunião e abaixo assinado contra a abertura / Divulgação

Alto risco

Na 1ª versão do Plano Estadual de vacinação contra a Covid-19, divulgada em 16 de janeiro deste ano, as populações quilombolas, povos e comunidades tradicionais ribeirinhas estavam inseridas na 15ª posição no grupo prioritário, como uma única categoria.

Com estimativa populacional total de 8.944 pessoas para todos estes povos, o mapeamento inicial do estado revelava o desconhecimento da presença destas populações no Paraná. Já na 6ª versão, de data de 15 de junho, os números foram corrigidos e as distintas populações tradicionais foram separadas em duas categorias: população quilombola, estimada em 9.631 pessoas, e população ribeirinha, estimada em 14.800 pessoas.

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De acordo com o Plano Estadual de vacinação, fatores como risco de transmissibilidade e dificuldade de acesso aos serviços de saúde - realidades fortemente presentes na Ilha do Mel - são centrais para o enquadramento de grupos populacionais na categoria de prioritários.

Com duas unidades básicas de saúde instaladas na Ilha do Mel - uma na comunidade de Encantadas e outra em Brasília - o atendimento aos moradores é de atenção básica, para casos de baixa complexidade.

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“É uma estrutura bem simples. Praticamente quem vai até a UBS atrás de atendimento para Covid eles pedem para a pessoa fazer um teste do cotonete, que é feito um dia na semana apenas, e pedem para os moradores ficarem de quarentena. Quando a situação é mais grave, o paciente é encaminhado para o único hospital que temos no litoral e que atende a todos os municípios”, destaca o tesoureiro da Animpo, Felipe Andrews.

O transporte de pessoas até o hospital de Paranaguá leva em média 1h a 1h30 de barco ou lancha.

Mesmo com a restrição, já nos primeiros meses da pandemia, de circulação reduzida de turistas a 50% da capacidade da Ilha, a vinda de pessoas externas à Ilha trazia contínua insegurança aos moradores.

“O turista vem pra cá e não conseguimos isolá-lo, não sabemos se ele está ou não contaminado”, aponta Michele.

Além de uma abertura parcial ao turismo, a entrada de turistas na Ilha do Mel compreende outros protocolos de segurança. É obrigatório o uso de máscaras, higienização das mãos e aferição da temperatura nos acessos à Ilha do Mel. No entanto, é a vacina já aplicada à maior parte dos 1.300 moradores da Ilha - segundo o último Censo - que traz segurança aos moradores.

“Para nós a vacina vai permitir a gente seguir no comércio, manter atividades turísticas de onde os moradores tiram o sustento, sabendo que estamos a maior parte já vacinada”, complementa Michele.

Direitos enquanto comunidades tradicionais

Com forte identidade cultural, social e de relação com o meio ambiente, os povos ribeirinhos residem nas proximidades dos rios ou mar e têm a pesca artesanal como uma das principais atividades econômicas e de subsistência.

Com o avanço do mercado e ausência da assistência governamental, estes territórios tendem a sofrer mudanças nas suas práticas tradicionais. Na Ilha do Mel, por exemplo, o turismo e os serviços que o acompanham passaram estar também entre as principais frentes de trabalho dos moradores.

Ainda que existam há muitos anos, os povos ribeirinhos só tiveram um reconhecimento formal pelo Estado brasileiro com Decreto Presidencial nº 6.040/2007.

Nesta normativa, o Estado institui a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais (PNPCT) e com isso amplia o reconhecimento aos demais povos tradicionais que havia feito parcialmente aos indígenas e quilombolas na Constituição de 1988.

Embora tenha sido um importante avanço, o decreto ainda carece de maior regulamentação. Com isso, o modo como devem ser assegurados os direitos desta população está mais desenhado nas legislações estaduais.

No Paraná, é a Lei 20244/2020 que dispõe sobre a Ilha do Mel. A normativa determina, por exemplo, a proibição de atividades de plantio na Ilha, medida de impacto nas práticas culturais e de subsistência, como relata Felipe.

“Nós somos uma comunidade tradicional pois temos nossas tradições e costumes próprios, o que nos torna com características próprias. No decorrer dos anos, perdemos muitos costumes após o governo do estado implantar algumas leis aqui na Ilha, onde ficamos proibidos de plantar, criar e até mesmo pescar em alguns locais.

Mas mesmo assim, com toda essa dificuldade, nossas raízes ainda continuam fortes. Muitos ainda produzem suas próprias redes de pesca, tarrafa, realizam a pesca diariamente para seu próprio consumo, fazem acampamento na safra da tainha onde toda a comunidade se envolve e participa, realizamos a Festa da Tainha no mês de Julho com toda a comunidade”, relata Felipe.

A ação de priorização das comunidades tradicionais está alinhada à Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), normativa da qual o Brasil é signatário. Isto porque a normativa estabelece que os Estados devem assegurar condições de existência dos povos tradicionais - e a saúde é uma das frentes centrais.

“É imprescindível que o Estado brasileiro e os seus entes federados garantam políticas públicas que assegurem a esses povos, em condições de igualdade, a plena efetividade dos direitos que são destinados a essas populações, nesse caso a vacinação contra Covid-19, como grupos prioritários”, destaca a assessora jurídica da Terra de Direitos, Jaqueline Andrade.

“A vacinação das comunidades tradicionais da Ilha do Mel representa uma significativa vitória, especialmente do reconhecimento do estado do Paraná da tradicionalidade dessas populações”, complementa.

Fonte: BdF Paraná

Edição: Lia Bianchini