Coluna

Imperialismo suiço e o Brasil dos militares

Imagem de perfil do Colunistaesd
Fachada do Banco Nacional da Suíça
Fachada do Banco Nacional da Suíça - Wikimedia Commons/Baikonur
Círculos governantes suíços apoiaram e lucraram com a ditadura durante 21 anos

Por Gaëlle Scuiller e Gabriella Lima*

No dia 31 de março de 1964, o presidente João Goulart foi derrubado por um golpe de Estado liderado pelas forças armadas, em conjunto com os círculos industriais, financeiros e da mídia, com o apoio dos Estados Unidos. Em meio à Guerra Fria, sua destituição foi um alívio para os investidores estrangeiros. A Suíça, uma potência imperialista, não foi exceção - pelo contrário. Segue uma visão geral dos interesses econômicos suíços no Brasil durante a ditadura.

Brasil. Em março de 2024, milhares de pessoas saíram às ruas para marcar o 60º aniversário do golpe de Estado e do regime militar que durou até 1985. O objetivo era homenagear as milhares de vítimas e denunciar os crimes cometidos, bem como a anistia geral proclamada em 1979 para proteger os criminosos. Esse marco nos dá a oportunidade de observar um aspecto pouco conhecido desse capítulo sombrio da história brasileira: a maneira como os círculos governantes suíços, ferozmente anticomunistas, apoiaram e lucraram com essa ditadura durante 21 anos.

Aprovação do golpe, apoio ao regime militar e a conquista de mercados

Em 1961, o presidente João Goulart chegou ao poder no Brasil. Ele foi apoiado por movimentos sociais e sindicatos. No auge da Guerra Fria, o Brasil era de importância crucial para todo o campo ocidental anticomunista - incluindo a Suíça: como bastião contra avanços sociais supostamente comunistas na América Latina mas também pelas extraordinárias possibilidades de lucros que o país oferecia enquanto mercado. Goulart promoveu uma série de reformas que ameaçavam os interesses dos investidores estrangeiros, como a lei 4.131 sobre a “Remessa dos lucros” que pretendia limitar a fuga de capitais para o exterior. Isso exacerbou o repúdio das potências estrangeiras a um presidente considerado "incapaz" pelo embaixador suíço no Rio de Janeiro (1). No início de 1964, os credores do Norte - incluindo a Suíça - se recusaram a conceder novos empréstimos ao Brasil, alinhando-se à posição do Fundo Monetário Internacional (FMI). Essa estratégia de estrangulamento financeiro liderada pelos EUA impediu que o governo brasileiro implementasse suas políticas progressistas. Algumas semanas depois, Goulart foi destituído pelos militares e substituído por um governo militar liderado pelo General Castelo Branco, que foi muito bem acolhido pelo campo ocidental. Rapidamente, os empréstimos foram liberados para o Brasil como um sinal de confiança política - que o governo suíço considerava um gesto de "solidariedade" (2). O empresariado internacional ficou satisfeito com essa nova orientação econômica, quando não estava diretamente envolvido na desestabilização do governo Goulart.

Para o empresariado suíço, os interesses em jogo eram altos. Em 1964, a Suíça era o terceiro maior investidor estrangeiro no Brasil. Várias filiais de grandes firmas suíças haviam se estabelecido no país e estavam gerando lucros gigantescos nos setores farmacêutico (Hoffmann-La Roche, Ciba, Sandoz), alimentício (Nestlé), de máquinas e equipamentos (Sulzer, Brown Boveri & Cie, atual ABB) e do cimento (Holderbank, atual Holcim). Durante a ditadura militar, as relações econômicas se fortaleceram consideravelmente. Dez anos após o golpe, as exportações suíças para o Brasil aumentaram 286% em termos reais. Assim como o comércio, os investimentos diretos e os empréstimos dos bancos suíços aumentaram à medida que o regime se tornava mais autoritário, e isso até o fim da ditadura, aprofundando um desequilíbrio já significativo nas relações comerciais.

O Brasil militar contou com enormes fluxos de capitais suíços para conseguir implementar o seu plano de desenvolvimento, o que o levou a um período de crescimento fenomenal na virada da década de 1970, conhecido como o "milagre econômico brasileiro". O “sucesso” dessa política - que também se deu à custos da degradação brutal das condições de vida da população brasileira - também serviu como uma vitrine internacional para o regime militar, aumentando o apetite dos investidores estrangeiros e permitindo que a economia suíça intensificasse sua presença no Brasil. Foi justamente a amplitude desses interesses econômicos suíços que levou o grupo de oposição Vanguarda Popular Revolucionária, a escolher o embaixador suiço no Brasil, Giovanni Bucher, como alvo de sequestro para pedir a libertação de presos políticos em dezembro de 1970.

O Estado suíço fiador do lucro privado

Foi em nome da neutralidade e de uma aplicação ortodoxa do liberalismo econômico que as autoridades políticas suíças justificaram seus estreitos laços econômicos com a ditadura militar brasileira e se opuseram a qualquer intervenção estatal que pudesse impedir a expansão da economia privada suíça no exterior. A doutrina da neutralidade favoreceu, assim, a implementação dessa ofensiva econômica que constitui o imperialismo suíço, se baseando em um poderoso centro financeiro e usando de discrição, sem qualquer demonstração de força militar ou império colonial.

Durante a ditadura militar, o Estado suíço cumpriu perfeitamente seu papel de fiador dos lucros de suas empresas de duas maneiras. Por um lado, os serviços diplomáticos tiveram um papel fundamental, pressionando o governo brasileiro para combater as medidas econômicas que iam contra os interesses privados suíços ou, pelo contrário, para arrancar melhorias das situação dos investidores suíços. Logos após o Golpe de 1964, as autoridades suíças se aproveitaram de uma correlação de forças favorável na negociação de um acordo de consolidação da dívida brasileira para fazer com que uma lei sobre a remessa de lucros fosse alterada, satisfazendo assim as exigências dos investidores suíços. Por outro lado, o setor de exportação e os investidores puderam beneficiar das ferramentas de expansão econômica implementadas pelo governo suíço, como a Garantia Federal contra os Riscos de Exportação e investimentos. Essas 

ferramentas facilitam a proteção de negócios no exterior: em caso de riscos econômicos ou políticos (por exemplo, nacionalizações de empresas estrangeiras), o governo suíçoo cobre grande parte das perdas das empresas privadas. Com essa política, as autoridades federais avançaram de mãos dadas com os capitalistas suíços para favorecer as condições para a expansão das empresas suíças no Brasil, garantindo-lhes, assim, uma posição forte nesse mercado.

A Confederação como primeiro investidor estrangeiro do Brasil

A exportação de capital na forma de investimento estrangeiro direto (IED) é uma das ferramentas essenciais do imperialismo suíço. O IED toma a forma de estabelecimento de filiais de empresas suíças no exterior ou de participação/aquisição de empresas brasileiras, com o objetivo de controlar determinados setores da economia brasileira. Em 1973, a Suíça é o oitavo maior investidor estrangeiro direto do mundo e o segundo maior em termos da porcentagem dos investimentos no PIB nacional. O Brasil é um excelente estudo de caso para ilustrar este modo de expansão da economia suíça no exterior. Desde o início do "milagre econômico brasileiro", em 1969, e ao longo da década seguinte, os IED suíços na junta militar explodiram. Em 1973, o estoque de IED suíço no Brasil era de cerca de 1,1 bilhão de francos suíços (CHF) (3) e representava quase o triplo do PIB brasileiro. Quatro anos depois, esse número subiu para CHF 2,3 bilhões, tornando a Confederação o terceiro maior investidor estrangeiro do Brasil, depois dos Estados Unidos e da República Federal da Alemanha (RFA), e empatando com o Japão. Colocar esses valores em perspectiva com o tamanho do país nos permite medir melhor a "força do pequeno", para usar as palavras da historiadora Janick Schaufelbuehl. Se observarmos os dez maiores investidores estrangeiros no Brasil per capita, a Suíça é, de longe, o maior. Com um estoque de cerca de 187,8 USD por cabeça, o investimento direto suíço é seis vezes maior do que o da Suécia e oito vezes maior do que o da RFA, que ocupam o segundo e o terceiro lugares, respectivamente. E é ainda maior do que o estoque total de seus 9 concorrentes juntos.

Empresas suíças dominando setores do mercado brasileiro

Na concorrência inter-imperialista pelo mercado brasileiro, as empresas suíças lideram vários setores. É o caso, por exemplo, do setor alimentício, onde a Nestlé é hegemônica até hoje e detém o monopólio da produção de toda uma gama de produtos, como chocolate e leite em pó. No setor de máquinas, na virada da década de 1970, a filial brasileira da Brown Boveri não era apenas a maior do grupo fora da Europa, mas também a maior indústria eletromecânica da América do Sul. Apesar da crise econômica mundial de 1973-1976, a economia suíça conseguiu consolidar sua posição no mercado brasileiro. Em 1975, das 1.000 maiores empresas brasileiras, 25 eram controladas por capital suíço, incluindo a filial brasileira da Nestlé (22ª), a Ciba-Geigy (83ª), o grupo André (160ª), o Holderbank (243ª), a Eternit (249ª) e a Sandoz (277ª)(4). Assim como o setor de máquinas, a indústria suíça de cerâmica tem conquistado gradualmente o mercado brasileiro. Em 1977, apenas um ano após sua fundação, a filial da Keramik AG também era a maior fabricante de azulejos do hemisfério sul. Ela detinha ações importantes em várias empresas locais e gradualmente comprou seus concorrentes.

Em resumo, o governo repressivo da junta militar brasileira nunca foi um freio para a expansão econômica da Suíça. Pelo contrário, o governo militar era uma garantia de estabilidade política e “paz social” aos olhos dos investidores suíços, que não hesitaram em intensificar seus negócios no Brasil, com o apoio das autoridades políticas suíças.

Embora a ditadura militar tenha terminado oficialmente em 1985, não se pode dizer o mesmo da relação econômica desequilibrada entre os dois países. As multinacionais suíças fortaleceram ainda sua presença no Brasil - que continua sendo o principal parceiro comercial da Suíça e o principal destino de suas exportações na América Latina - sempre com o apoio ativo das autoridades políticas do país. De acordo com um relatório recente da Embaixada de Suíça em Brasília, quase 500 empresas suíças operavam no Brasil em 2022, empregando diretamente cerca de 62.000 pessoas6. O excedente das relações comerciais favorável à Suíça foi de 639 milhões de francos suíços (cerca de 3,5 bilhões de reais) e o país está entre os 10 maiores investidores estrangeiros no Brasil.

Movimentos populares de base, especialmente feministas, têm criticado vigorosamente o poder corporativo e sua busca por uma agenda neoliberal que favorece as condições para a acumulação de capital estrangeiro no Brasil. Um processo que resulta na exploração de recursos e pessoas. Esta contribuição alimenta e apoia essas críticas.

1 - Relatório político n°5 de A. Dominicé, Embaixador da Suíça no Brasil, à F.T. Wahlen, Chefe do Departamento Político Federal (DPF), «Le président demande au Parlement de proclamer l’Etat de siège», 7 de outubro de 1963. Arquivo Federal Suíço, E2300#1000/716#876*.

2 - «MESSAGE du Conseil fédéral à l'Assemblée fédérale concernant l'accord de consolidation conclu entre la Confédération suisse et les Etats-Unis du Brésil (Du 11 décembre 1964)» em Feuille Fédérale, nº 52, 31 de dezembro de 1964, p. 1696

3 - Exceto menção contrária, todos os valores estão indicados em moeda corrente.

4 - Autor desconhecido, «Schweizerische Direktinvestitionen in Brasilien», Neue Zürcher Zeitung, no 132, 11 de junho de 1975.

*Gaëlle Scuiller escreveu sua dissertação de mestrado em ciência política na UNIL sobre as relações econômicas e políticas entre a Suíça e o Brasil em torno do golpe de 1964. Ela integra a equipe técnica da SOF como colaboradora da associação suíça E-CHANGER desde 2023.

**Gabriella Lima é doutoranda em história econômica na Universidade de Lausanne (Suíça). Seu livro, "Don't miss the bus!" Les intérêts économiques suisses au Brésil durant la dictature militaire (1969-1979), será publicado pela Documents Diplomatique Suisses em abril de 2024.

***Este texto é baseado em pesquisas realizadas nos arquivos de várias associações patronais, no Banco Nacional Suíço e nos Arquivos Federais Suíços. Ele foi publicado originalmente em francês como contribuição livre para o jornal suíço Le Courrier e publicado no dia 8 de abril 2024.

**** Este é um artigo de opinião e não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.

Edição: Thalita Pires