Para tratar rejeito tóxico, Vale atormenta moradores do Bairro Pires, em Brumadinho

Famílias convivem com barulho incessante e indefinição sobre o futuro do rio Paraopeba. Apenas 4,5% da lama foi retirada

Foto: Pedro Stropasolas

Por Pedro Stropasolas

Read in English | De Brumadinho (MG)

A única coisa que separa o Pires do rio Paraopeba é o trilho dos vagões carregados de minério de ferro. No bairro de difícil acesso, a 4km do centro de Brumadinho, as casas simples encravadas na Mata Atlântica são quase invisíveis para quem não sobe pelas ruelas esburacadas e sem pavimentação. Para a mineradora Vale e o poder público municipal, é também como se os moradores do Pires fossem invisíveis.

“Aqui não tem nada, não tem esgoto, não tem asfalto, pra eu carregar os blocos para construir essa casa tive que buscar na linha, de carroça”, desabafa Fátima de Jesus, há 20 anos na comunidade.

Passados mais de seis meses do crime cometido pela Vale em Brumadinho (MG), as 70 famílias do Pires convivem com a indefinição sobre o destino dos rejeitos de mineração vazados da Barragem I, da Mina Córrego do Feijão. A comunidade fica a 18km do local da tragédia que vitimou 248 pessoas em janeiro.

O bairro é localizado no trecho do rio Paraopeba onde ficou concentrada a lama argilosa tóxica vazada pela Vale, no ponto de confluência com o córrego Ferro-Carvão. Além de perder o rio, antes espaço de lazer e fonte de renda, os moradores do Pires se tornaram vizinhos da Estação de Tratamento de Água Fluvial (ETAF) Ferro-Carvão. A promessa da Vale: limpar a água do Paraopeba.

Como parte do Plano de Contenção de Rejeitos, a ETAF foi projetada para receber os sedimentos tóxicos dragados do rio, desidratá-los e armazená-los em “bolsas ecológicas” -- ou tubos geotêxteis, como chama a Vale. A obra está em andamento e tem prazo de entrega para o final de agosto.

A mineradora, entretanto, ainda não sabe o que fará com os bolsões de lama. Há duas alternativas: cobrir o material com solo compactado para revegetação ou destinar para outra área a ser definida.

A incerteza preocupa as famílias do Pires, que vivem abaixo do terreno onde a ETAF está sendo instalada.

“Eu não entendo. A população não vai entender. O problema vai começar ainda. Daqui uns tempos é poeira. E depois que eles fizerem esse negócio aí em cima que eu não sei o procedimento do trabalho deles vai ser muito mais que arrebentar duas, três barragens do jeito dessa aí”, desabafa o morador Jorge Rocha, terceirizado em jardinagem pela prefeitura.

A esposa Maria Aparecida da Rocha, sentada ao seu lado, lembra com indignação do início das obras, em meados de maio, quando a comunidade se pôs em frente aos caminhões contratados pela mineradora e só foi retirada pela Polícia Militar. "A Vale tá destruindo nós. A Vale não tá agarrada com nós, não. Ela quer que nós morra”, desafaba.

Sempre na companhia da filha Ticyane, ela convive diariamente com os dois barulhos mais ouvidos no bairro, ambos protagonizados pela Vale: o maquinário da construção da ETAF e o trem da mineradora. "Eu acordo assustada. Ele buzina tanto de madrugada que não deixa ninguém dormir não”, conta.

Ticyane, Cida e Jorge, com seus papagaios de estimação. Família sobrevive do auxílio emergencial e do Bolsa Família

A Vale não apresentou nenhum estudo de impacto para a comunidade, nem para a Defensoria Pública do Estado de Minas Gerais (DPE).

A obra é uma das 23 estruturas prometidas pela mineradora para reparar a área destruída no entorno da mina Córrego do Feijão e reduzir a presença de sedimentos tóxicos no rio Paraopeba.

Desde o crime, porém, somente 4,5% dos 12 milhões de metros cúbicos de rejeitos foram retirados pela Vale, segundo a última atualização da empresa, em julho. O material foi encaminhado para uma área dentro da Mina Córrego do Feijão, palco da tragédia.

Aproximadamente 300 hectares foram totalmente encobertos pela lama, sendo 133 hectares de mata atlântica nativa, segundo o Ibama. A mineradora atua nos locais onde o Corpo de Bombeiros de Minas Gerais já descartou a possibilidade de encontrar os 22 corpos ainda soterrados.

Em janeiro, logo após o rompimento, a comunidade do Pires precisou ser evacuada pelos bombeiros, quando a sirene da Vale anunciou o risco de rompimento de outra barragem da Mina Córrego do Feijão, a B6, que passou por processo de drenagem para ser esvaziada.

Além dos transtornos com a obra em andamento e da inépcia do poder público, a população de baixa renda do Pires permanece carente de pavimentação, iluminação noturna e rede de esgoto. Elas aguardam benfeitorias sociais e de infraestrutura, também prometidas pela Vale, mas que não saíram do papel.

"Nós não tem nada. Só esse quintal que você tá vendo aqui. Nós não pode chegar nem beirando o rio mais, porque tem risco de a gente pegar uma doença e não ter cura", desabafa Cida.

Nilton Tavares, que vive há seis anos no Pires, conta que a vida ficou difícil após a destruição do rio Paraopeba. "Como o salário era baixo, dois três peixinhos que a gente pescava, já te dava uma compensação de proteína importante para a alimentação", relata.

Por conta desse cenário de desesperança, a maioria deseja conquistar o direito de se realocada para um lugar longe do descaso e da lama.

“Se fosse o caso de alguém querer comprar eu vendia até perdendo um bocado, mas também ir pra onde? Sair daqui pra ir pro meu interior o aluguel é um absurdo. É bom pra quem tem dinheiro, sai de uma cidade vai pra outra, mas para mim não”, desabafa Jorge.

O tamanho do impacto versus o tamanho da reparação

No último boletim informativo divulgado em julho pelo Governo de Minas Gerais, a presença de rejeitos de mineração foi detectada na usina hidrelétrica de Retiro Baixo, a 318 km da barragem que se rompeu.

Os resultados foram coletados em expedição pelo rio Paraopeba coordenada pela Polícia Federal, com suporte técnico do Instituto Mineiro de Gestão das Águas (IGAM).

André Sperling, promotor de Justiça do Ministério Público de Minas Gerais (MPMG), esclarece que a Vale sistematicamente não reconhece os danos causados, principalmente em comunidades não diretamente destruídas pela lama da barragem, mas que foram atingidas pela contaminação do rio Paraopeba -- provedor da renda e protagonista do modo de vida da população.

Às margens do rio Paraopeba contaminado, onde não está autorizada a pisar, Fátima de Jesus, com 65 anos, relembra o que ali existia: "Aqui era uma praia. Área de lazer, né, da turma”

Sperling revela que até agora não houve reparação por parte da Vale, apenas operações emergenciais. “[A Vale] não tem ainda nenhuma proposta para resolver as questões das pessoas atingidas no Paraopeba”, explica. Segundo ele, a empresa quer monopolizar o poder de definir quem são os atingidos.

“Não cabe à Vale definir quem é o atingido. Não cabe ao criminoso dizer quem é a sua vítima”, rebate o promotor.

Para Carolina Morishita, defensora pública do Estado de Minas Gerais, assumir a posição de tipificar o nível de atingimento é uma tentativa da mineradora de diminuir o que as pessoas têm enfrentado.

"Tem várias formas de atingimento, tem a saúde mental, física a moradia, a segurança alimentar, o direito ao lazer, a convivência comunitária, essas diversas comunidades foram sim atingidas, mesmo que de formas diferentes”, explica.

Aproximadamente 944 mil pessoas foram atingidas pelo rompimento da barragem em 18 municípios cortados pelo Paraopeba. O levantamento foi realizado pelo Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB).

Moradores não são ouvidos, muito menos informados

O Plano de Contenção de Rejeitos foi apresentado ao Governo de Minas Gerais em 8 de fevereiro, doze dias após o rompimento da barragem. Segundo a Vale, foram investidos R$ 1,8 bilhões até 2023 e contratados cerca de 1.300 trabalhadores para todas as operações.

Eloá Magalhães, militante do MAB teme a possibilidade do Pires se tornar um novo canteiro de obras, como ocorreu em Barra Longa, próximo a barragem do Fundão, em Mariana(MG). Ela conta que os moradores não foram avisados sobre o início das obras.

“Sem comunicar a comunidade, ninguém tava sabendo, a Vale comprou esse terreno e começou a fazer as obras de terraplanagem já preparando a estrutura para receber essas ecobags de rejeito de minério. São esses absurdos que a Vale está se comprometendo em fazer e as comunidades que estão abaixo que vão sofrer com as consequências, que é toda a contaminação do lençol freático, do solo, da poeira da lama que também vai chegar”, explica Eloá.

A empresa argumenta que a construção da estação de tratamento próximo ao bairro Pires foi aprovada pelos órgãos públicos e é acompanhada pelo Corpo de Bombeiros Militar de Minas Gerais. A mineradora afirma ainda que monitora o ruído das máquinas e define junto à comunidade o horário de execução das atividades.

A reparação da Vale

A Vale toda semana está no Pires, trazendo um conjunto de propostas que não saem das palavras e das apresentações em datashow.

Sete funcionários da empresa participaram do último encontro, em 18 de julho. Seis com o colete estampando as quatro letras da gigante do minério de ferro. O último de terno de linho e gravata, gel lambendo o cabelo: o advogado, que trataria das dúvidas relacionadas às indenizações.

Desde fevereiro, as 70 famílias do Pires estão recebendo o auxílio emergencial pago pela Vale no valor de um salário mínimo. Firmado entre a mineradora e a DPE, o acordo vence em janeiro de 2020.

Os moradores temem perder a renda, já que boa parte não tem trabalho ou perdeu sua fonte de sustento após a tragédia.

O promotor André Sperling afirma que a Vale ainda não apresentou nenhuma garantia de reparação após o fim do pagamento.

"O MP entende que se a pessoa está com a renda e o modo de vida prejudicado em função do desastre, ela tem o direito de receber o pagamento até que ela recomponha o modo de vida”, explica.

O casal Fátima de Jesus e Oswaldo Zacarias caminham ao lado dos trilhos da Vale. O trem da Vale não para nem de madrugada e impede o trânsito dos moradores do Pires

A discussão sobre a continuidade do auxílio emergencial deve ser travada no âmbito do processo que existe na 6ª Vara da Fazenda Pública de Belo Horizonte, onde o MPMG tem duas ações ajuizadas contra a Vale.

Um sítio na parte alta do bairro sediou reunião do dia 18. Os moradores, em torno de 40 pessoas, falaram novamente sobre os mesmos problemas: o esgoto, a luz, a estrada esburacada. Os representantes da mineradora, com foco no linguajar rebuscado, não apresentaram soluções efetivas de reparação para as demandas prioritárias.

O auxílio emergencial da Vale hoje é pago a 98.146 pessoas, sendo aproximadamente 47 mil de Brumadinho. O restante é pago para quem vive até 1km da margem do Paraopeba, desde o ponto onde a lama invadiu rio, até a cidade de Pompéu, na represa de Retiro Baixo, a 205 km de Brumadinho.

Cada pessoa tem direito a receber um salário mínimo por mês (R$ 998), além de uma cesta básica mensal. O acordo não faz distinção por renda. Contempla desde pessoas ricas até pessoas em condição de vulnerabilidade social, como é o caso de muitos no Pires.

Vale comanda regularização fundiária no Pires

O carro chefe da noite de reunião foi a apresentação do projeto de um complexo esportivo para o Pires, com quadra poliesportiva, salão de festas e churrasqueiras. Não há prazos, apenas uma indicação do terreno onde pode ser construído a benfeitoria social.

Segundo a defensora Carolina Morishita, há a preocupação de que a proposta de projeto social seja usado pela Vale como argumento para o não cumprimento de compensações coletivas às famílias, como o reassentamento.

“É como se a opção por permitir que as obras sejam realizadas fosse em si uma concordância de permanecer no bairro, o que não é verdade”, analisa a defensora.

No último 29 de julho, a Prefeitura de Brumadinho publicou uma nota declarando que o processo de regularização fundiária da comunidade do Pires caberá à própria mineradora.

André Sperling esclarece que a Vale comandar o processo de regularização fundiária é vitória para a estratégia jurídica da empresa

“A gente entende que toda a população do Pires tem o direito de ser realocada. A vale não quer fazer o processo de realocação, não quer dar o direito das pessoas irem para outro lugar viver. É evidente que a Vale quer comandar o processo de regularização fundiária, mas eu entendo que isso é uma função do estado. Então a Vale tem que cumprir as obrigações do estado”, esclarece o promotor.

Brumadinho tem quase 100 núcleos urbanos informais, muitos em condições semelhantes ao Pires. A informação vem da oficial de registro de imóveis da cidade, Keziah Alessandra Vianna Silva Pinto, em entrevista ao jornal Estado de Minas, publicada em 30 de julho.

Ticyane aproveita uma das raras brechas do trem e cruza a ferrovia para mostrar o rio contaminado

No país, segundo o Ministério do Desenvolvimento Regional, a metade dos 60% milhões de domicílios urbanos no país não têm escritura.

Após a reunião do dia 18, a Vale afirmou que divulgaria um boletim esclarecendo se a empresa colocaria o projeto de benfeitoria social no Pires como uma questão de compensação coletiva, mas até o momento nem a DPE nem a comunidade tiveram acesso a essa informação.

Em nota lançada em sua página após o encontro, a Vale se restringiu a informar que os valores investidos pela mineradora nas comunidades de Brumadinho “não impactam e não têm relação com as indenizações individuais que poderão vir a ser pagas pela empresa”.

Perguntada pela reportagem do Brasil de Fato sobre como garantirá assistência aos atingidos após o fim do auxílio emergencial, a Vale restringiu-se a informar que “as pessoas que estiverem interessadas em formalizar acordos para indenizações, por danos materiais ou morais podem procurar a Defensoria Pública do Estado de Minas Gerais em Brumadinho”.

FICHA TÉCNICA

Texto, vídeo e fotos: Pedro Stropasolas | Edição: Rodrigo Chagas | Artes: Gabriela Lucena | Edição de vídeo: Marcelo Cruz e Pedro Stropasolas | Versão para rádio: Katarine Flor | Coordenação: Daniel Giovanaz, Vivian Fernandes e José Bruno Lima | Coordenação de Rádio: Camila Salmazio