Legislação

Lei da Migração é exceção progressista em meio a conservadorismo, dizem especialistas

Debate ocorreu na Assembleia Legislativa do Paraná com o objetivo de esclarecer novo cenário legal para a migração

Brasil de Fato | Curitiba (PR) |
“As novas políticas públicas podem promover uma maior inclusão social”, disse Ualid Rabah, diretor da Federação Árabe Palestina do Brasil
“As novas políticas públicas podem promover uma maior inclusão social”, disse Ualid Rabah, diretor da Federação Árabe Palestina do Brasil - Isabella Lanave

A nova Lei da Migração, sancionada em maio deste ano, traz o desafio de pensar uma política para proteger migrantes, refugiados e apátridas que escolhem o Brasil como novo lar, permanente ou temporário. Em todo o mundo, 65,5 milhões de pessoas fogem de situações de guerra, violência, perseguição e crises econômicas em seus locais de origem. Essa legislação substitui o Estatuto do Estrangeiro, de 1980, e flexibiliza a entrada e saída de pessoas no país.

Apesar dos 20 vetos de Michel Temer (PMDB) ao conteúdo geral da proposta, a nova lei representa um avanço no sentido de descriminalizar a presença de imigrantes no território brasileiro. É o que avaliam os especialistas participantes da Audiência Pública realizada na Assembleia Legislativa do Paraná (Alep) na manhã desta segunda-feira (26). O evento debateu a nova Lei da Migração com o objetivo de esclarecer o novo cenário legal para a migração e elencar os papéis da sociedade civil nesse momento. A iniciativa da audiência partiu do Conselho Estadual dos Direitos dos Refugiados, Migrantes e Apátridas do Paraná (CERMA/PR), e da realização da Comissão de Direitos Humanos e Cidadania da Alep, presidida pelo deputado estadual Tadeu Veneri (PT).

O texto que chegou ao executivo sofreu vetos importantes, mas avançou em conceitos que protegem crianças, migrantes, refugiados e apátridas da vulnerabilidade. Segundo o doutor em Direito Internacional pela Universidade de Paris X e consultor legislativo do Senado Federal, Tarciso Dal Maso Jardim, a lei é fruto de uma intensa luta coletiva no congresso. “É até difícil explicar como conseguimos avançar com uma legislação mais progressista num momento político como esse”, afirmou.

A professora do departamento de Direito da Universidade Federal do Paraná (UFPR), Tatyana Friedrich, sinaliza que as medidas legais em vigor trazem grandes conquistas, mas também grandes desafios. “Temos muito a regulamentar. É preciso recuperar os avanços que perdemos com os vetos e atuar na mudança da consciência dos brasileiros quanto ao acolhimento desses imigrantes”, explica.

Adaptação à Constituição

Segundo Tarciso Dal Maso Jardim , o novo projeto retira quase todos os tipos penais de criminalização, exceto o do tipo coiote, que designa quem entra ilegalmente ao país. “Sob a nova lei, não se pode mais repatriar categorias de vulnerabilidade, como crianças e adolescentes desacompanhados, por exemplo”, explica. “O projeto luta contra condições políticas e limitações institucionais colocadas pelo antigo Estatuto do Estrangeiro”.

Esse estatuto foi substituído por, dentre outros motivos, definir pontos incompatíveis com a Constituição de 1988. “A Constituição garante o direito universal à saúde, assistência social, educação e manifestação política, dentre outros. Até então, pessoas sem nacionalidade brasileira tinham dificuldade para acessar esses direitos no país, quando sobressaía o critério da nacionalidade, que não pode suprimir garantias universais”, situa a coordenadora do departamento de Proteção do Centro de Referência para Refugiados da Caritas de São Paulo, Larissa Leite.

“O estatuto do estrangeiro também não permitia cumprir acordos internacionais, como a proibição de ‘devolver’ um estrangeiro a um local de onde fugiu ou onde sofre risco de vida”, complementa.

A representante da Caritas explica que a xenofobia é incompatível com condição de deslocamento forçado em um mundo globalizado. “Nós tiramos proveito de mercadorias que cruzam fronteiras e de trocas internacionais. Mas também queremos que esse processo acompanhe as migrações humanas e acolha os mais explorados pela globalização”, diz.

Somos todos migrantes

O diretor de relações institucionais da Federação Árabe Palestina do Brasil (Fepal), Ualid Rabah, ressalta o problema da islamofobia em todo o mundo. “A ONU aponta um número maior que seis milhões de palestinos refugiados em uma população de quase 14 milhões espalhados em várias regiões do planeta. Essa proporção de refugados é incompatível em qualquer regra de três”, contextualiza Rabah.

Para ele, a islamofobia foi escolhida como motivo para que as correntes conservadoras atacassem mais fortemente a legislação. Agora, a nova lei é capaz de trazer um corpo sólido, íntegro e civilizatório para circunstâncias difíceis que os migrantes enfrentavam, o que impedia que vivessem uma vida normal no país.

“Nessa mesa somos todos migrantes. Todas as nossas famílias vieram de fora para o Brasil. Mesmo assim, muitas pessoas se aproveitam da situação irregular dos imigrantes e da precariedade de suas condições para explorá-los”, avaliou na audiência Ualid Rabah, que é filho de migrantes palestinos.

“As novas políticas públicas podem promover uma maior inclusão social. Conheço um palestino que tem doutorado e teme não obter o reconhecimento e trabalho na sua área. Ele viria para contribuir cientificamente, e na Palestina ele não pode ficar”, define.

A comunicadora Ana Paula Dorig, da Organização de Direitos Humanos 'O planeta é um só', reconhece que a xenofobia e as limitações do discurso social podem desanimar o cidadão que quer ajudar, mas não sabe bem como contribuir. “Quem pode atuar nacionalmente, atua. Se não, vai pro estado, município, para a rua de casa. Pode haver um haitiano ao lado que precisa de um documento! A cidadania não pode ficar só nas mãos de entidades, é tarefa de cada indivíduo nesse planeta”, destaca.

Hospitalidade é ato poético

Sob a coordenação da professora Tatyana Friedrich, a UFPR promove o projeto de extensão “Refúgio, migrações e hospitalidade”, por meio do qual a Universidade busca cumprir o papel social de atender à comunidade. No projeto, 60 estudantes de letras, 45 de direito, 60 de ciência da computação e seis de psicologia, todos voluntários, prestam atendimento aos refugiados em Curitiba. “Nosso principal objetivo é resgatar a alteridade, ou seja, a capacidade de acolher a diferença do outro, que também nos constitui enquanto seres humanos”, define a professora.

Tatyane defende que todo ato de hospitalidade é, antes de tudo, uma poética. “Ser hospitaleiro não deve depender de critérios como o nome, o país de origem ou os dados do RG. É uma atitude com o ser humano. O migrante vive entre a saudade e a esperança, e nós podemos concretizar essa esperança para que ela seja maior do que a saudade”, disse. E finalizou sua fala na audiência com versos da poetisa paranaense Helena Kolody:

Arfa, no porto, o mar.

Soluça dentro dalma do emigrante

o longo apito do navio em despedida.

Treme, na lágrima do olhar,

a paisagem da pátria.

Mas, o apelo fascinante do mar

acorda seu desejo de aventura,

o anseio de partir

em busca de uma terra prometida.

Quem dilacera assim,

entre a saudade e a esperança,

o coração do emigrante?

Ë a vida... é a vida... é a vida.

 

 

 

Edição: Ednubia Ghisi