Lava Jato

A tentação dos holofotes: como a superexposição do Judiciário ameaça a democracia

Lei da Magistratura, que proíbe os juízes brasileiros de comentar processos em andamento, foi desrespeitada na Lava Jato

Brasil de Fato | Curitiba (PR) |
Sérgio Moro (esq.) não vê problemas em posar ao lado de João Dória (dir.), do PSDB
Sérgio Moro (esq.) não vê problemas em posar ao lado de João Dória (dir.), do PSDB - Divulgação Lide

A operação Lava Jato cresceu à medida que se intensificaram as relações entre a mídia corporativa e parte do Poder Judiciário. De um lado, vazamentos seletivos, informações e entrevistas exclusivas. Do outro, capas de revista, premiações, elogios e a chance de se tornar um herói nacional, imune a qualquer crítica.

Segundo o escritor e jornalista Fernando Morais, os dois setores mantêm interesses em comum desde 2014: primeiro, derrubar o mandato da então presidenta Dilma Rousseff (PT); em seguida, impedir que o Partidos dos Trabalhadores volte ao Palácio do Planalto através de eleições.

“Entre 2014 e agosto de 2017, a Rede Globo deu, em programas de cobertura nacional, 95,5 mil segundos de reportagens contra o [ex-presidente] Lula ou a favor da Lava Jato”, afirma Morais. “Quanto custou para a Globo dispensar todo esse tempo para achincalhar, humilhar e denegrir o Lula e o PT, e para elogiar o [juiz Sérgio] Moro e a operação Lava Jato?”.

Duas medidas

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O artigo 36 da Lei Orgânica da Magistratura (Loman) proíbe os juízes brasileiros de “manifestar, por meio de qualquer meio de comunicação, opinião sobre processo pendente de julgamento, seu ou de outrem”.

As disposições da Loman, no caso da Lava Jato, têm pesos diferentes conforme a natureza do debate a que os magistrados são convidados a participar. Essa é a opinião do juiz Marcelo Tadeu Lemos, de Alagoas, que responde a uma sindicância por haver participado de aulas públicas sobre a operação entre maio e agosto.

Segundo o texto da Corregedoria-Geral de Justiça em Alagoas, a participação dele nesse tipo de evento “pode caracterizar a prática de conduta vedada ao magistrado consistente em manifestar, por qualquer meio de comunicação, opinião sobre processo pendente de julgamento”, conforme o texto da Loman.

Na interpretação de Marcelo Tadeu Lemos, são dois pesos e duas medidas. “Atividade política, a gente pode fazer. Se não, os juízes que saíram de verde e amarelo, em apoio à Lava Jato e contra o PT, também não poderiam estar nas ruas”, compara.

Escancarado

Eleito o “brasileiro do ano” pelo jornal O Globo e pela revista IstoÉ, e duas vezes a “personalidade do ano” pela revista Veja, o juiz Sérgio Moro passou a conceder entrevistas exclusivas para a mídia corporativa em 2016.  

Não que antes ele só falasse pelos autos. Desde o início da Lava Jato, Moro foi flagrado em dezenas de eventos, dentro e fora do Brasil, e não abriu mão de comentar o andamento da operação, mesmo antes de qualquer sentença.

O juiz participou, por exemplo, de debates organizados pelo grupo empresarial Lide, liderado por João Dória (PSDB) – com quem posou para fotos. Questionado pela defesa do ex-presidente Lula (PT) sobre essas ocasiões, Sérgio Moro respondeu que “a palestra foi destinada aos empresários ali presentes, sem qualquer conotação política”.

Prefeito de São Paulo desde 1º de janeiro, o milionário político do PSDB foi considerado em agosto pela revista IstoÉ como um “antídoto” ao ex-presidente Lula, condenado por Moro em primeira instância na Lava Jato.

Peneira

Cada participação de Moro em eventos do grupo Lide, em fóruns da Federação das Indústrias do Paraná (Fiep) e em conferências ligadas ao mundo empresarial e jurídico rende manchetes e artigos de opinião elogiosos nos jornais brasileiros. As frases de efeito proferidas nesses espaços repercutem de tal modo que, além de manter o interesse do público em relação à Lava Jato, ajudam a legitimar um pretenso embate do juiz contra a corrupção.

Nada disso é por acaso. No artigo “Considerações sobre a operação Mani Pulite”,  publicado em 2004, Sérgio Moro elogiou a condução da operação Mãos Limpas, na Itália. Um dos aspectos decisivos para o avanço daquela ação judicial, segundo ele, foi o papel desempenhado pela mídia corporativa.

“A investigação da “mani pulite” vazava como uma peneira. Tão logo alguém era preso, detalhes de sua confissão eram veiculados no “L’Expresso”, no “La Republica” e outros jornais e revistas simpatizantes”, descreveu Moro. “O constante fluxo de revelações manteve o interesse do público elevado e os líderes partidários na defensiva”, analisa. Ou seja, a mídia ajudou a deslegitimar os argumentos dos políticos investigados, estabelecendo uma relação de troca: “A deslegitimação, ao mesmo tempo em que tornava possível a ação judicial, era por ela alimentada”.

Violações

A entrevista do presidente do Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF-4) ao jornal Estado de S. Paulo, no dia 6 de agosto, é uma violação flagrante ao artigo 36 da Loman. O desembargador Carlos Eduardo Thompson Flores Lenz comentou, a pedido da reportagem, a sentença do juiz Sérgio Moro sobre o “caso triplex”, um mês antes.

“É tecnicamente irrepreensível”, disse o desembargador. Naquela sentença, o ex-presidente Lula foi condenado a nove anos e meio de prisão por corrupção passiva e lavagem de dinheiro. Além de ignorar o artigo 36 da Loman, visto que o caso será julgado em segunda instância pelo tribunal que ele mesmo preside, o desembargador acrescenta que a condenação “vai entrar para a história do Brasil”.

Na continuação daquela entrevista, Carlos Eduardo Thompson Flores Lenz ainda afirma: “Não li a prova dos autos. Mas o juiz Moro fez exame minucioso e irretocável da prova dos autos”. Para tentar manter a aparência de isenção, o desembargador evita responder qual seria o seu voto, caso estivesse na turma que irá julgar o processo em segunda instância. Mas o recado estava dado: a decisão de Moro, segundo ele, foi “perfeita” e não necessita de reparos.

PT no alvo

A postura assumida por delegados da Lava Jato durante as eleições presidenciais de 2014 reforça as hipóteses levantadas por Fernando Morais e pelo juiz Marcelo Tadeu Lemos. E isso está expresso novamente nos maiores jornais do Brasil. Segundo outra reportagem veiculada no jornal O Estado de S. Paulo em novembro daquele ano, os delegados federais usaram as redes sociais “para elogiar o senador Aécio Neves, candidato do PSDB ao Planalto, e atacar o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e sua sucessora, Dilma Rousseff”.

Ainda de acordo com o texto, eles também “compartilharam propaganda eleitoral do então candidato tucano que reproduzia reportagens com o conteúdo da delação premiada do doleiro Alberto Youssef, segundo a qual Dilma e Lula teriam conhecimento do esquema de desvios – o teor desses depoimentos está sob segredo de Justiça”.

Ao cair na tentação dos holofotes, os delegados da Superintendência da Polícia Federal do Paraná ignoram o artigo 364 do regimento disciplinar da corporação. É vedado a eles “referir-se de modo depreciativo às autoridades e atos da Administração pública, qualquer que seja o meio empregado para esse fim” ou “divulgar, através da imprensa escrita, falada ou televisionada, fatos ocorridos na repartição”.

Powerpoint

No dia 14 de setembro de 2016, há cerca de um ano, Curitiba assistiu a um dos acontecimentos mais emblemáticos da Lava Jato, no que se refere à superexposição do Poder Judiciário na mídia. O chefe da força-tarefa, Deltan Dallagnol, reuniu jornalistas em um hotel, para uma coletiva de imprensa, e exibiu uma apresentação em powerpoint com um diagrama de flechas: no centro da tela, estava o nome do ex-presidente Lula, como “chefe do esquema criminoso”.

Além de provocar piadas sobre a diagramação grotesca do material, o “powerpoint de Dallagnol” chamou a atenção para a ansiedade da força-tarefa em expor suas convicções sobre os réus, antes mesmo de qualquer julgamento formal. Conforme análise do pesquisador Marcos Reche Ávila, que estuda a midiatização do Judiciário, “a associação mais comum da atuação de Dallagnol é com a do ator midiático, o apresentador, ou o showman. Dallagnol abandona seu lugar legítimo de fala para entrar no circuito midiático como mediador”. Ávila conclui que, “ao transformar a denúncia judicial em um show midiático, Dallagnol esteve livre das objeções da defesa e da aceitação ou não da denúncia pelo juiz responsável pelo julgamento. Quem passa a ser juiz são os receptores / audiência televisiva e a defesa é anulada, inaugurando um novo modelo de julgamento à margem do sistema jurídico: o julgamento midiatizado, midiático e político-social”, finaliza.

Contramajoritário

A Loman e o regimento disciplinar da PF contêm dispositivos para garantir que as investigações ocorram dentro dos parâmetros democráticos, sem interferência externa. Porém, segundo o ex-ministro da Justiça, Eugênio Aragão, a Lava Jato tem demonstrado que os juízes, delegados e procuradores estão cada vez mais preocupados com a opinião pública. Essa situação fica evidente nas redes sociais [ver box], onde o sucesso é medido por “curtidas”, comentários, compartilhamentos e seguidores.

Integrante do Conselho Nacional do Ministério Público entre 2009 e 2015, Luiz Moreira afirmou em entrevista ao Brasil de Fato que a Lava Jato age “como se o Ministério Público e o Judiciário fossem poderes políticos, majoritários, e precisassem do apoio popular para implementar suas ações”. O jurista ressalta que o direito é contramajoritário, ou seja, não depende da autorização pública para fazer valer a lei. Pelo contrário: é até saudável que as decisões não estejam pautadas pela opinião da maioria.

Personalismo

“Reféns da imprensa”. Foi assim que o ex-presidente Lula descreveu os membros do MP, ao final do depoimento ao juiz Sérgio Moro no último dia 13. Além dos jornais, revistas e canais de televisão, o mercado editorial e as redes sociais têm sido usadas para manter o interesse do público em alta e divulgar uma imagem positiva da operação.

Coordenador da força-tarefa da Lava Jato, Deltan Dallagnol lançou um livro – com direito a noite de autógrafos em um shopping center de Curitiba – em meio à operação, para compartilhar suas impressões sobre o rumo das investigações. Dallagnol é uma espécie de influenciador digital: tem 600 mil seguidores em sua conta no Facebook e 160 mil no Twitter.

O contato de Sérgio Moro com o “fã-clube” se dá através da página no Facebook “Eu MORO com ele”, administrada pela esposa Rosângela. Com 830 mil seguidores, o espaço é dedicado a uma espécie de culto à imagem do juiz, com compartilhamentos de notícias e análises relativas à Lava Jato.

Este material faz parte da cobertura especial do Brasil de Fato sobre a operação Lava Jato. Clique aqui para ter acesso a outras reportagens sobre o tema.

Edição: Ednubia Ghisi