Especial | Novembro 2.0

As narrativas de resistência dos novos quilombos

POR JULIANA GONÇALVES

O menino do bairro periférico que, por meio do rap, conta histórias de escravos tratados como reis por terem matado o senhor de engenho. A mulher de pele preta que há 20 anos luta contra o camburão, que é o navio negreiro. O sacerdote que apresenta o candomblé como lugar dos marginalizados onde habitam reis e rainhas.

O militante de cabelos grisalhos que está pronto para a revolução. A artista que pariu mais um território negro na cidade de São Paulo. O músico e historiador que traça a história do Brasil a partir da narrativa do povo negro. A educadora popular que se apressa a apresentar os livros antes que seus jovens encontrem a bala. A escritora afro-indígena, cuja poesia é combustível para a resistência.

Alguns mais velhos afirmam que todo o corpo negro é um quilombo vivo. Corpos portam histórias.

É disso que se trata o especial do Brasil de Fato "Novembro 2.0: Narrativas de resistência dos novos quilombos". Sem esquecer dos "passos que vêm de longe", este especial trata das novas formas de se conectar, das narrativas de ontem e de hoje, dos modelos contemporâneos de partilhas de uns com os outros.

Rosangela Martins, Cláudia Canto, Miriam Duarte, Amailton Magno, Milton Barbosa, Pai Sidnei e Rincon Sapiência nos mostram, cada um à sua maneira, um pouco dos seus quilombos. Confira!

Vulgo Manicongo

Danilo Albert Ambrósio, com suas músicas, cria histórias que nada têm de irreais. Ele elabora narrativas de resistência sob a alcunha de Rincon Sapiência.

Em maio o raaper lançou o álbum Galanga Livre. Sobre ele, Rincon mostra plena consciência que está com suas músicas captando o que há de efervescência dentro da comunidade negra e periférica.

Apaixonado por futebol, da Cohab 1, extremo da zona leste de São Paulo, Rincon lembra a cara, o nome e sobrenome das crianças que reproduziam comportamentos racistas na infância. "Sempre reconheci o racismo, sempre soube que era massa ser preto, que a gente devia ter orgulho disso, mas para aprender a se defender leva um tempo", conta.

A batida certeira, e a sagacidade das letras de Rincon tem seu valor também no registro histórico. Seus clipes documentam e influenciam uma juventude negra de garfo no crespo, turbante e bombeta. Uma quebrada colorida que já não silencia perante o afrontamento. A resistência preta e periférica, o espírito da rua, fundamentam o trabalho do músico como resistência.

Mulher, preta e periférica

É também das periferias que surge a resistência ao que a militante Miriam Duarte aponta como uma das principais ameaças à população negra: o encarceramento em massa. "Mulher, preta e periférica". É assim que se apresenta a socioeducadora que, desde 1998, enfrenta o sistema prisional depois de ver dois filhos mortos pelas mãos da polícia e um preso.

Miriam considera que o encarceramento excessivo é fruto de uma política genocida, que mata e tira a liberdade de pobres e negros. Segundo o Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias de 2014, negros são 64% da população carcerária. Miriam discorda. Para ela, que convive com o sistema carcerário há quase uma década, não há brancos lá.

"A importância de falar sobre esse tema do encarceramento é mostrar que ele tem cor e classe social: o pobre, negro, periférico. A punição dele por ser pobre negro e periférico é a prisão", sentencia.

No começo dos anos 2000, a banda O Rappa cantou que "todo o camburão tem um pouco de navio negreiro". Esta é uma visão compartilhada por Miriam, que vai além quando classifica o que é o encarceramento que, para ela, não recupera ninguém.

O ilê

Se a prisão é a senzala contemporânea, como Miriam afirma, foi por terem saído dela há cerca de 130 anos que, segundo Pai Sidnei de Xangô, os negros são tão perseguidos.

O doutor em Semiótica e Linguística pela Universidade de São Paulo (USP) e sacerdote da Comunidade da Compreensão e da Restauração Ilê Àse Sàngó, localizada em Suzano (SP), afirma ver a sociedade atual sendo tomada por um ódio e necessidade de destruição do diferente.

Para ele, Oludamaré, a divindade suprema do candomblé, fez a natureza diversa. "E por que que agora as pessoas não conseguem aceitar essa natureza diversa? Eu sei porque. Porque saímos da senzala e eles não suportam que nos misturemos a eles, fora da senzala", afirma.

O sacerdote considera o candomblé como espaço de existência, resistência e reelaboração do povo negro. Local onde, no passado, foi devolvida a sua humanidade depois do translado forçado vindo de território africano e, hoje, um local para muitos de devolução da sua negritude.

Sidnei considera que a perseguição das religiões de matriz africana é racismo religioso e faz parte do projeto do genocídio que tenta dizimar e usurpar tudo que é do povo negro. O candomblé seria local que recebe e dá abrigo a todo tipo de marginalidade.

Além disso, ele afirma que o terreiro, o ilê, é espaço de empoderamento feminino, algo que a sociedade machista não suporta. "Só tem dois papéis na ideologia judaico-cristã para mulher: mãe e esposa. Aí chega o candomblé com suas deusas e rainhas e afirma que a mulher pode ser caçadora, amante, solteira, feiticeira, sedutora, ventania… Então é insuportável para os conservadores", acredita.

As religiões de matriz africana, no entanto, seguem resistindo ao racismo religioso ao longo dos séculos. Em especial para o Brasil de Fato, o fotógrafo Roger Cipó selecionou fotografias do cotidiano dentro dos terreiros. Confira aqui.

Luzia, reproduzir a ancestralidade

Se para o sacerdote, é insuportável para uma sociedade racista ver um território onde negros e negras são "reis e rainhas", imagina o que sentem ao ver os quilombos urbanos que pipocam nas cidades? A exemplo da Aparelha Luzia, há outros espaços na cidade que são "coisa de preto". Em São Paulo, na periferia da zona leste, entre a Penha e Vila Matilde há um novo território negro nascendo, a Casa Preta.

À frente do espaço está o casal Luzia e Almir Rosa, ambos atores, escritores e compositores. É Luzia quem recebe a reportagem do Brasil de Fato no espaço voltado à experiência artística.

Cada detalhe do lugar tem história centrada em aspectos da cultura negra. Luzia leva o nome do fóssil mais antigo encontrado na América, especificamente em Minas Gerais, há 12 mil anos atrás, o que provaria a possibilidade de já existir pessoas de origem africana no Brasil antes mesmo do tráfico que sustentou a escravidão.

Do nome à família, Luzia é fruto da consciência racial de seu tempo. Sua avó foi a primeira aluna negra no curso de Filosofia da Universidade de São Paulo. Há décadas, seu pai e sua mãe vestiam roupas africanas em uma demonstração de sua consciência racial. Luzia criou-se na afirmação preta e a Casa Preta absorve toda essa história ancestral.

"A Casa Preta eu costumo dizer que é uma terra fértil, é a possibilidade de eu plantar todas as sementes que eu colhi até aqui e já estão dando fruto", conta. Mas ela ressalta que, ainda hoje, é raro encontrar lugares pensados e gerenciados por pessoas negras.

A Casa Preta abriga pequenos shows, saraus, peças teatrais, rodas de conversa. "Não é espaço exclusivo para pretos, mas surge a partir da nossa resistência aqui nesse local", conta.

Direito ao conhecimento

É perceptível a importância dos chamados quilombos urbanos, uma vez que ouvir narrativas de resistência do povo negro ainda é algo raro. No passado, se consolidou no imaginário da população que os negros esperavam passivamente a sua libertação.

Sobre isso, Amailton Magno Azevedo, professor de História da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e músico, conta que o maior número de revoltas e insurgências no período escravocrata nas Américas ocorreram no Brasil.

Segundo ele, os principais mecanismo de defesa negra adotada no período da escravidão e pós-escravidão foram os quilombos, as insurreições, o envenenamento de senhores, o suicídio, a paralisações de engenhos e o aborto das mulheres escravizadas estupradas pelos senhores. Além disso, há a resistência na dimensão cultural com a arte, a música e a religião.

O professor destaca o surgimento dos movimentos negros, a exemplo da Imprensa Negra do século XIX, a Frente Negra Brasileira, que nasceu nos anos 1930; o Teatro Experimental do Negro, liderado por Abdias do Nascimento; a criação do Movimento Negro Unificado (MNU), entre outras manifestações que confrontavam a narrativa de um Brasil mestiço e harmônico.

Atualmente, Azevedo aponta as expressões artísticas de resistência como o rap e o funk, além disso o feminismo negro contemporâneo, como o criador de uma nova narrativa política.

O livro como armadura

Amailton Azevedo também faz questão de frisar: "vale lembrar que a pauta da educação nunca esteve fora da agenda dos movimentos negros".

Dando continuidade a este legado, Rosangela Martins, advogada e educadora da rede de cursinhos populares, a Uneafro, desenvolve seu trabalho com base nas mudanças que a educação pode proporcionar.

Segundo ela, ainda na primeira infância, as crianças se deparam com o racismo, porém, a maioria de seus alunos só criam consciência racial dentro das aulas ministradas no cursinho.

Chegar primeiro com o livro não é uma tarefa fácil. Rosangela afirma sofrer muitas perdas para a violência estrutural como a violência, o trabalho precoce, a associação com o tráfico, entre outros fatores.

Para os sobreviventes, conviver com o racismo seria inevitável. "Seja para entrar na universidade e permanecer nela, seja para ter acesso ao trabalho, reconhecimento profissional, a produção de conhecimento acadêmico: tudo isso vai esbarrar no racismo", conta.

Os passos vêm de longe

Rosangela também compõe a Marcha das Mulheres Negras, um dos movimentos feministas negros citados por Milton Barbosa, fundador do Movimento Negro Unificado (MNU), como um dos processos fundamentais para a resistência negra atualmente.

"Hoje a resistência negra vem de muitos setores, dos trabalhadores, da cultura, de movimentos como a Marcha das Mulheres Negras, a Frente Alternativa Preta, o pessoal dos cursinhos populas, a Educafro e a Uneafro, o Núcleo de Consciência Negra na USP, os religiosos de matriz africana, entre outros. Vivemos um momento rico e importante na luta de resistência e avanços para cima daqueles que tentam nos oprimir", pontua.

O Movimento Negro Unificado tem uma história de resistência intensa. Formado em julho de 1979, ele mudou a forma de enfrentar o racismo e a discriminação racial no país, como Milton explicou, em artigo, "saindo das salas de aula, debates e atividades lúdicas, para ações de confronto, elaborando panfletos, jornais, atos públicos e criando núcleos organizados".

As letras que trançam resistência

A construção de narrativas de liberdade também passam pela produção artística contemporânea. A escritora Claudia Canto acaba de lançar seu mais novo livro "Riqueza Ignorada" que questiona o que é riqueza para pessoas pobres.

Ser escritora é sua forma individual de resistência, que afeta o coletivo ao construir novas narrativas sobre o que é ser pobre, negra e periférica. "É um desafio você ser uma mulher negra, índia, vira-lata, que se atreve a escrever. Porque é um atrevimento escrever. É um sustentáculo que não nos deram, o conhecimento é a única coisa que nos liberta", considera.

Cláudia é uma negra livre disputando as narrativas de dominação e ousa a falar de liberdade. "E a minha literatura é o único momento que eu tenho pra ser livre."

Alimentar a resistência, criar novas formas de lutar, constituir quilombos contemporâneos, se conectar, compartilhar. Nas resistências do ontem e do hoje, em tempos de uma conjuntura atual de golpe, é preciso pensar sobre os 365 dias de resistência de negros e negras no Brasil.

Mais do que uma consciência negra individual, o espírito da poesia musical de Rincon Sapiência alimenta a existência de uma consciência negra coletiva: "Crespos tão se armando. Faço questão de botar no meu texto, que pretas e pretos estão se amando. Os preto é chave, abram os portões!".

Reportagem: Juliana Gonçalves

Vídeo: Juliano Vieira e Marcelo Cruz

Design: Wilcker Morais

Editor de arte: José Bruno Lima

Edição e coordenação de jornalismo: Simone Freire