AMÉRICA DO SUL

Entrevista com Edgardo Ortuño | A prisão de Lula e a contrarreforma conservadora

O historiador comenta a atual situação do Brasil e a sua atuação como vice-ministro durante o governo de Pepe Mujica

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Para Ortuño, a ausência de regulamentação no Brasil permitiu uma atuação decisiva dos grandes meios de comunicação no processo político
Para Ortuño, a ausência de regulamentação no Brasil permitiu uma atuação decisiva dos grandes meios de comunicação no processo político - as-coa.org

O professor de História Edgardo Ortuño, primeiro deputado negro do Uruguai, ex-vice-ministro da Indústria, Energia e Mineração - ministério que inclui nada mais e nada menos que dois importantes pilares para entender qualquer contexto geopolítico latino-americano como Comunicação e Petróleo - trabalhou lado a lado com o ex-presidente Mujica e aqui expõe sua perspectiva sobre a grave situação que o Brasil atravessa hoje.

Confira a entrevista completa:

Luciana Gaffrée: Qual é sua perspectiva sobre a situação atual do Brasil?

Edgardo Ortuño: De grande preocupação, porque o Brasil vive uma deterioração de suas instituições democráticas, desde o processo de destituição da presidenta Dilma Rousseff, culminando com a prisão do ex-presidente Lula, o candidato com maior margem de aprovação popular atualmente.

É preciso esclarecer que, independentemente da orientação, seja de direita ou de esquerda, o que acontece no Brasil é muito preocupante a partir de uma perspectiva de defesa da democracia.

Nós, latino-americanos, não deveríamos nos esquecer da importância do Brasil na vigilância do funcionamento democrático em toda a região. O início do período de deterioração e posterior quebra constitucional na América Latina começou no Brasil em 1964. Por isso, nós, democratas da América Latina, estamos todos muito preocupados com o que está acontecendo no Brasil.

Por que você considera que o Brasil vive um período de deterioração das instituições democráticas?

No Brasil, o poder judiciário está influenciando e determinando processos políticos importantes, e o poder executivo sofre forte pressão das redes de comunicação mais importantes no país, das forças conservadoras e agora, também, a militar. Os militares do país se pronunciam politicamente, até mesmo com ameaças, gerando um contexto de pressão indevido, como, por exemplo, quando assistimos pronunciamentos de generais em comando de tropa antes mesmo do parecer do STF, como no caso do ex-presidente Lula.

Você acredita que a ausência de uma Lei de Regulamentação de Mídia no Brasil foi parte relevante nessa articulação?

A ausência de regulamentação no Brasil permitiu uma atuação decisiva das grandes redes e dos grandes meios no processo político, o que deixou os cidadãos reféns de sua perspectiva, em grande parte por que não ofereceram toda a informação em sua diversidade, buscando reforçar uma única narrativa do momento, com notícias enviesadas, sem pluralismo nem opiniões divergentes.

Implementar uma normativa para os meios não tem sido fácil, em toda a região latino-americana. Ainda que tenha sido proposta na agenda de todos os governos progressistas da última década, houve muita resistência e níveis díspares de aplicação, em toda a região.

Uruguai, Argentina e Brasil assumiram a meta de construir uma normativa para garantir a liberdade de pluralidade nos serviços de comunicação audiovisual, mas com conteúdos e resultados díspares. Na Argentina, com o governo Macri, a aprovação foi imediata, mas houve uma desarticulação dos principais aspectos que a “lei de regulamentação das mídias” continha. No Brasil, barrou-se esse processo, que nunca chegou a se concretizar.

No Uruguai, a Lei de Regulamentação da Mídia foi precedida por um processo de consulta social a todos os envolvidos, longo e profundo, incluindo os próprios donos dos meios de comunicação, jornalistas, organizações da sociedade civil e todos os partidos políticos, sem exceção, porque atravessou uma etapa de debate parlamentar, longa e aprofundada, num parlamento como o uruguaio, onde estão representados todos os partidos políticos. Houve também uma ampla consideração do Poder Judicial, que ratificou sua constitucionalidade, pelo que está em ótimas condições para sua aplicação plena, o que ainda não ocorreu.

Foi você quem promoveu essa luta, não é mesmo?

Fui um promotor convicto desta lei, entre outros, porque acreditamos que a regulamentação democrática dos meios garante tanto a liberdade editorial, de opinião, dos meios, livres da pressão do governo no poder, como o acesso dos cidadãos a informações plurais, diversas, que são questões absolutamente chave em uma democracia.

A agenda de regulamentação e modernização das telecomunicações e dos meios de comunicação de massa ainda está pendente na América Latina e, no caso da Argentina e do Brasil, com os últimos governos, vimos um retrocesso ou mesmo um aborto dessa regulamentação.

Você acredita que Lula é vitima de uma guerra jurídica?

No Brasil se dá um processo onde se tem atores judiciais que mais parecem inquisidores do que juízes imparciais e, ao mesmo tempo, campanhas sistemáticas e tendenciosas dos meios de comunicação de massa, portanto, estamos, sim, frente a um caso de guerra jurídica ou abuso da lei, com objetivos políticos e pré-julgamento midiático. Talvez o caso de Lula seja o mais dramático.

As mídias não difundem os argumentos ou contra-argumentos da defesa de Lula com a mesma intensidade e profundidade. É aí que se percebe a tomada de partido dos meios de comunicação, alinhados com um poder judicial que também toma partido e assume posições políticas e, inclusive, pronunciamentos políticos.

No Brasil nota-se claramente um desmedido protagonismo do poder judiciário sobre a vontade dos cidadãos e da Constituição, associado a um lobby conservador e a campanhas midiáticas muito significativas, onde se vê um uso abusivo da lei em um processo de aparência legal, mas de essência antidemocrática.

O Uruguai tem como impedir uma guerra jurídica?

- A judicialização da política pode ser vista em toda a região. O que é preocupante. A guerra jurídica surge como uma estratégia para deslegitimar e deslocar as forças progressistas quando não se consegue apoio dos cidadãos nas urnas. Essa é uma tentação do bloco conservador em toda a região.

A Lei de Regulamentação da Mídia inibe esse tipo de ações tendenciosas dos meios de comunicação que, por sorte, no Uruguai não foram vivenciados com a intensidade que vemos no Brasil. No nosso caso, o fundamental é que não há pontos de apoio na realidade para isso.

A Ancap não seria o ponto de apoio na realidade? Não vê uma correlação entre as investigações na Petrobrás e na Ancap?

Não é casualidade no contexto regional, que se tome a empresa petroleira do Estado como objeto de estudo e investigação. Mas, até o momento, não houve provas de processos de corrupção que envolvam o Poder Executivo ou o governo, a não ser questionamentos pontuais a pessoas que exerceram determinados cargos na Ancap em determinado período.

Entretanto, se nota claramente que a direita uruguaia está desesperada para associar a situação no Uruguai com a política interna do Brasil e da Argentina, não há, por parte da oposição, um projeto alternativo ou que seja confessável.

Porque o projeto político e econômico da direita na região é um projeto inconfessável. Se confessado, jamais terá o apoio do povo: redução de salários, redução de direitos, desregulamentação trabalhista, diminuição de garantias previdenciárias para a aposentadoria, distribuição regressiva da riqueza, redução radical do investimento em políticas sociais, enfim, um programa inconfessável e indefensável. Quem votaria nisso? Daí o atalho pela maracutaia, pela judicialização, para tentar isolar as forças políticas progressistas que contam com respaldo popular.

Então, qual foi para Lula e Dilma o ponto de apoio na realidade?

Eu creio que o antecedente do “mensalão” foi dramático para a legitimidade do Partido dos Trabalhadores, os processos de compra de votos ou de corrupção e o julgamento de políticos históricos de referência do PT, acusados de suborno e de enriquecimento pessoal ilícito, contribuíram para a depreciação e a clara redução do apoio popular ao partido governante, gerando condições subjetivas para o avanço dessa ofensiva judicial conservadora, o que, agravado pelo enfraquecimento do apoio popular, ambientou um clima de agressão e finalmente de retirada de Dilma do poder e, agora, da prisão de Lula.

Quando disseram “jogar esse lixo no mar” ao transportar Lula em um avião da FAB para Curitiba, se nota uma alusão clara à Operação Condor. Você crê que exista o perigo de se repetirem os acontecimentos de 64?

Pelo protagonismo totalmente inadmissível que tomaram as figuras representativas do Exército, do poder militar, eu creio que haja um perigo objetivo de quebra da institucionalidade democrática do Brasil, com o apoio do poder econômico mais tradicional e conservador do país, contrário ao desenvolvimento produtivo e à forma como o PT administrava a redistribuição de renda e da economia, por exemplo, com um salário mínimo acima da inflação.

Por tudo isso é que, quer votemos na direita ou na esquerda, nós, democratas da região, devemos estar preocupados e ser solidários com a manutenção da democracia no Brasil, que está claramente ameaçada.

Você teve sob seu Ministério tanto o petróleo como as comunicações, dois grandes poderes atualmente. Tendo esse poder nas mãos, que críticas você tem a fazer para a esquerda hoje?

O que devemos assumir com autocrítica é que não desenvolvemos uma estratégia de desenvolvimento produtivo integrado em todo seu potencial.

O projeto da direita é um projeto radicalmente individualista, que não crê na igualdade e, portanto, não gera oportunidades de desenvolvimento para todos e todas. Mas não gera um desenvolvimento soberano, independente, porque não crê nele também.

Não podemos esquecer que o Brasil lançou uma estratégia geopolítica alternativa, rompendo o esquema unipolar. Isso gerou enorme oposição dos centros de poder, porque o governo progressista do PT conseguiu articulações econômicas e de poder alternativas, como foi o caso do BRICS, do Mercosul e UNASUR, em uma estratégia alinhada com os países mais emergentes e também com os países mais carentes. Lula tinha uma aposta claramente geopolítica alternativa às lógicas de domínio unipolar ocidental.

Por isso importa tanto o destino e a orientação política do Brasil?

Claro, porque toda América Latina sofre se o Brasil perder o protagonismo no cenário mundial e regional. Se o Brasil não retomar esses níveis de protagonismo, voltaremos à não existência da América Latina no concerto do mundo.

Aumentará a pobreza, aumentarão os níveis de dependência econômica e se retrocederá no respeito aos direitos em geral, em particular os dos mais desfavorecidos.

Estamos diante de um ataque conservador em nível regional?

Creio que sim, que assistimos a uma contrarreforma conservadora, em toda América. E essa contrarreforma busca o retorno ao pior da cultura conservadora de nossas sociedades. Refiro-me à existência de uma oposição radical à redistribuição de riqueza, à saída de uma porcentagem significativa da população da linha de pobreza, mas também à nova sensibilidade cultural que supõe “a agenda de direitos” que tem impulsionado a esquerda.

Essa oposição também se percebe no Uruguai. A redistribuição de riqueza irrita principalmente as elites de nossos países. Também há uma rejeição ideológica e cultural, de conteúdo reacionário, às políticas de direitos implementadas pelos governos progressistas, contrários aos direitos da mulher, às cotas, às políticas de equidade racial, à diversidade de gênero. Assistimos ao impulso de uma contrarreforma da direita, a uma reação conservadora.

Creio que Lula está certo em seu discurso quando diz que o problema não é Lula, mas a continuidade e o avanço dessas conquistas.

O grave é impor as mudanças sem aprovação popular. A soberania popular do Brasil não foi respeitada. Porque se votou um programa de governo proposto pela presidenta Dilma e, com sua destituição, se processou uma mudança radical nas políticas públicas, com a reforma do sistema previdenciário, as mudanças na política trabalhista, no modelo de desenvolvimento, com a intenção de favorecer os interesses econômicos tradicionais, debilitando o desenvolvimento econômico brasileiro e de toda a América Latina a médio e longo prazo. Foi uma mudança de programa sem mediar a decisão soberana, que agora se pretende reiterar impedindo a eleição de Lula.

Qual seria então o grande desafio dos partidos progressistas hoje?

O grande e maior desafio talvez seja a conscientização popular do que está em jogo e reivindicar o conteúdo ético do nosso projeto. É preciso conscientizar o povo sobre o perigo de um retorno às políticas mais conservadoras e de elite abastada.

É conseguir fazer despertar a militância sobre os projetos em jogo e sobre seu papel na definição do futuro. A concepção da esquerda é uma concepção humanista, solidária, que não concebe o desenvolvimento pessoal se não ocorre numa convivência harmônica com os demais.

A única maneira de prevenir os processos de ameaça à democracia é com uma participação popular ativa e militante na defesa da democracia, não aceitando em hipótese alguma que se viole a Constituição e as garantias dos direitos fundamentais. Para isso, as pessoas precisam estar bem informadas, e por isso os meios de comunicação são tão importantes.

Lula é ou não é um preso político?

Minha convicção pessoal é que se trata de uma prisão de caráter político. Porque – sem elementos probatórios – se está privando o povo brasileiro de contar com um presidente que provavelmente seria eleito. Então, isso é grave, porque a prisão está interferindo no futuro eleitoral e, portanto, na orientação política do país. Em dois anos, tiraram Dilma e Lula. Não temos como não qualificar como político esse processo judicial. Mas não é um processo terminado, não está decidido seu final.

Não esqueçamos que Lula pode se tornar pré-candidato até o decorrer do mês de setembro. O que significa que ele pode ser candidato ou fator de triunfo presidencial no Brasil de dentro da prisão. Nós sabemos disso porque temos o general Líber Seregni como líder histórico fundamental da criação e crescimento da Frente Ampla. Ele esteve mais de dez anos preso e foi, de dentro da prisão, um fator fundamental para a recuperação da democracia e conseguinte mudança da realidade eleitoral.

A prisão das pessoas não é a prisão de suas ideias. Muitas vezes, estas se multiplicam. Porque são reforçadas pela marca ética que a prisão dá à sua luta, que o sacrifício pessoal da prisão dá à sua luta. E esse conteúdo ético a direita jamais poderá ter, incapaz que é de sacrifícios pessoais em função de projetos coletivos.

*Luciana Gaffrée é graduada em Ciências da Comunicação – Faculdade de Informação e Comunicação (FIC) – Universidade da República do Uruguai.

Tradução de Samara Leonel, jornalista e tradutora de espanhol ao português.

Edição: Rebelión | Tradução: Samara Leonel