'PRIMEIRO O POVO'

Análise: México volta à sua tradição plebeia e tenta construir nova hegemonia popular

Eleição de Andrés Manuel López Obrador reabre o caminho que começou a ser trilhado na Revolução Mexicana (1910)

Brasil de Fato | Cidade do México |
Novo presidente mexicano afirma que governará para todas as classes sociais, mas que o povo terá prioridade
Novo presidente mexicano afirma que governará para todas as classes sociais, mas que o povo terá prioridade - Foto: Equipe AMLO

Em 1º de julho, foram realizadas eleições históricas no México, onde um projeto com raízes de esquerda e do nacionalismo popular ganhou as eleições. Andrés Manuel López Obrador, conhecido também pela sigla AMLO, candidato do partido Morena (Movimento Regeneração Nacional) e da coalizão Juntos Faremos História, ganhou as eleições com mais de 30 milhões de votos, o que representa 53% dos votos válidos - a maior votação que um candidato presidencial obteve nesse país norte-americano.

O analista Katu Arkonada é cientista político, autor de livros relacionados à política latino-americana e membro da Rede de Intelectuais em Defesa da Humanidade | Foto: Rafael Stedile

A maior eleição da história (mais de 4.000 cargos eleitos, incluindo o presidente, 500 deputados, 128 senadores e 9 províncias, incluindo Cidade do México) resulta em uma vitória convincente. Esses são os efeitos da confiança depositada em um líder que tem crescido apesar das adversidades apresentadas em suas terceira e última candidatura presidencial, mas, acima de tudo, foi um voto contra um regime neoliberal que deixou o México mergulhou na violência, pobreza e desigualdade. Um voto contra o ‘Pacto pelo México’, uma aliança feita pelos três maiores partidos do país: PRI (Partido Revolucionário Institucional), o PAN (Partido de Ação Nacional) e o PRD (Partido da Revolução Democrática).

O povo mexicano votou, portanto, contra um acordo autoritário que buscava iniciar um novo ciclo de reformas neoliberais. Votou para dar uma oportunidade para aqueles que não participaram do Pacto pelo México. Obrador prometeu revogar a reforma educacional - que prejudicou alunos e professores - e fazer uma consulta sobre a reforma energética - que privatizou o setor elétrico e petroleiro.

Mas aqui está o principal aviso. Os 53% de votos obtidos vão muito além do núcleo duro do Morena (nem do PT ou do PES, aliados nesta campanha eleitoral). É um voto extremamente exigente, que reivindica mudanças reais logo nos primeiros meses do novo governo, que será estabelecido em 1 de dezembro de 2018.

Estas eleições também demonstraram o fracasso dos formadores de opínião de política, dos intelectuais e de todos aqueles que legitimaram o regime neoliberal PRI-PAN, que não poderia voltar impor a ideia de que Obrador significava "um perigo para o México". Na reta final da campanha tentaram convencer a população a dar um voto "útil" ou cruzado, que significa eleger Obrador, mas sem dar-lhe maioria no Congresso.Também falharam na estratégia da fraude eleitoral, massiva compra de votos, como tentaram fazer em muitas delegações da Cidade do México, entre elas Iztapalapa e Coyoacan. Esse tipo de fraude talvez poderia reduzir a diferença entre um candidato e outro, mas não impedir o triunfo de López Obrador.

E estas eleições marcaram o retorno do México plebeu, da política de "primeiro os pobres", embora, paradoxalmente, Morena e AMLO tenham expandido sua base de eleitores com camadas média e média-alta como nunca antes. E junto com os mais pobres, os jovens, e especialmente com geração Y (jovens nascidos depois dos anos 80), que escolheram, paradoxalmente, o candidato com mais idade para representá-los. É, em suma, a vitória do popular contra as elites.

Números da eleição

Pela primeira vez no México, a esquerda governará o país, a Cidade do México, e terá maioria no Senado e na Câmara dos Deputados. Tanto no poder executivo quanto no legislativo, haverá igualdade de gênero.

Além disso, Andrés Manuel López Obrador ganhou em 31 dos 32 estados da República (apenas Guanajuato continuou apostando no PAN). A vitória no maior distrito eleitoral do país, o Estado do México, berço do PRI, foi a mais significativa para o partido Morena. Nesse estado a coalizão liderada por Obrador, Juntos Faremos História, governará 55 municípios (incluindo o local onde o presidente Enrique Penã Nieto foi lançado à política, Atlatomulco), o partido PAN irá governar 33 prefeituras e o PRI 23.

O triunfo do Morena também ocorreu em 5 dos 9 estados que elegeram governadores nessas eleições, incluindo o Distrito Federal da Cidade do México. Portanto, é necessário destacar não só a vitória de AMLO, mas também a retumbante derrota do PRI. Não se pode entender um sem o outro.

O PRI, que até pouco tempo era o maior partido do país, não somente não ganhou nenhum dos nove estados que disputavam eleições de governadores [o México passa por um processo de transição para unificar eleições, por isso alguns estados tiveram eleições regionais e outros não], não teve maioria dos votos em nenhum dos 32 estados mexicanos, como perdeu na eleição presidencial perdeu nos 300 distritos eleitorais em que está dividido o país. O velho Partido da Revolução Institucional ficou com menos de 10% dos 2.464 municípios mexicanos.

A quarta transformação?

Andrés Manuel López Obrador afirmou, em numerosas ocasiões, que a "quarta transformação do México" está chegando. Depois da independência, da Revolução Mexicana (1910-1920) e a reforma do Estado (1934-1940) essa seria quarta grande transformação, dessa vez pacífica e democrática (de acordo com os padrões da democracia liberal).

É claro que, se a Revolução Mexicana foi a primeira revolução social em toda a América Latina, e ao longo do século XX, essa que começou no último dia 1 de Julho é uma revolução eleitoral sem precedentes na história do México. Uma espécie de jacobinismo das urnas. [Jacobinos eram os revolucionários da Revolução Francesa que defendia o republicanismo, a soberania popular e as eleições diretas].

E realmente, as mudanças já começaram a ser sentidas. Antes mesmo de ser declarado oficialmente presidente eleito, AMLO falou por telefone com o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, por meia hora, e concordou em realizar uma reunião com o secretário de Estado, Mike Pompeo, e reuniu-se no Palácio Nacional com o presidente cessante Peña Nieto e com os grupos da elite econômica que estão reunidas no Conselho de Coordenação Empresarial.

Em seu discurso da vitória, Obrador afirma que decepcionará o povo e não lhes falhará | Foto: Equipe AMLO

Mas, que tipo de governo podemos esperar de López Obrador?

Esse será um governo que atuará para a democratização institucional, combate à corrupção, redistribuição econômico sem afetar os interesses do grande capital, e a defesa da soberania nacional na arena internacional.

No campo político, a prioridade é combater a insegurança e a violência no México, o que levou à militarização e paramilitarização de boa parte do território nacional. O narcotráfico e a narcopolítica serão os principais problemas a serem enfrentados.

Além disso, uma amarga batalha contra a corrupção, luta a qual AMLO fez de sua bandeira principal. No entanto, Lopez Obrador está errado em duas coisas ao enfrentar essa batalha. A corrupção não vai desaparecer pela mera vontade do presidente, por mais honesto que ele possa ser; e ao contrário do que afirma o próximo presidente, a corrupção é um fato cultural, profundamente enraizado na sociedade, com origem no colonialismo e na lógica capitalista da modernidade.

Espera-se também uma política de respeito pelas liberdades: a imprensa, o direito à dissidência, o respeito à diversidade sexual ou dos direitos humanos, como afirmado pelo próprio AMLO, em uma propaganda da campanha, citando o intelectual mexicano Ignacio Ramirez (El Nigromante): "eu me finco onde se finca o povo”.

Entre as questões pendentes, na arena política, podemos dizer que durante a campanha eleitoral, não foram muito aprofundados temas como a inclusão de povos e comunidades indígenas. A presençada candidata indígena Marichuy,  na pré-campanha eleitoral, foi um sucesso. Ela deu voz aos sem voz. No entanto, é o novo presidente que terá que elaborar uma política de Estado para os povos indígenas, respeitando sua autonomia.

Se analisarmos a área econômica, é urgente e necessário redistribuir a riqueza em um país faz parte do G20 [os 20 países mais ricos do mundo], e que não cresce mais de 2% ao ano; onde o salário mínimo é de 88 pesos por dia (menos de 5 dólares) [equivalente a 570 reais por mês]; onde quatro mexicanos concentram a riqueza e superam a renda de 50% da população mais pobre; 10% controlam mais de dois terços da riqueza nacional; e 1% acumula 33% da riqueza do México.

A aposta no âmbito econômico, é clara. Reforçar a soberania sobre os recursos naturais, a partir da auditoria de contratos e concessões na área de petróleo, obtidas a partir da reforma energética, é um compromisso com o mercado interno que permite uma recuperação neokeynesiana da economia. 

Dessa mesma forma, Obrador estabeleceu um plano para apoiar e empregar jovens de mãos dadas com a comunidade empresarial, que terá que ser refinado para que não se torne um programa de bolsas, que autoriza o uso mão de obra barata pelas elites econômicas. Tudo isso em meio a uma renegociação do tradado de livre comércio com os Estados Unidos e o Canadá (o NAFTA, sigla em inglês). Nesse caso espera-se que o novo governo participe das negociações junto com a equipe de do governo de saída.

E finalmente, a política externa é provavelmente onde a recuperação da soberania, abandonada pelo regime PRI-PAN, será mais proveitosa. Neste sentido, a Cúpula da Aliança do Pacífico, a ser realizada no dia 24 de julho, no estado mexicano de Jalisco, onde Peña Nieto convidou López Obrador para participar, é o lugar onde começará a delinear a política externa mexicana. Seria desejável que o México abandonasse pelo menos o grupo de Lima, que tem como objetivo desestabilizar o processo de integração regional.

A outra questão fundamental, e na qual o México terá que encontrar um equilíbrio com o governo dos Estados Unidos e manter uma relação cordial com a administração Trump, é sobre o muro entre EUA e o México, e a defesa dos migrantes mexicanos nos Estados Unidos. Essa questão também não pode dissociar-se dos migrantes centro-americanos que atravessam o México todos os dias em busca da fronteira do norte, e cujos direitos humanos estão sujeitos a constantes violações e vexames, também pela administração mexicana.

Neoliberalismo x populismo mexicano

Para além das cifras frias, e as linhas gerais do projeto de nação do Morena, é necessário parar para analisar o que significa que o triunfo desse partido-movimento fundado por AMLO.

Recordemos do escritor e revolucionário peruano José Carlos Mariátegui quando eles falava de um projeto de nação original. Nem imitação, nem cópia, mas sim uma criação própria. E, embora a sentença se aplica perfeitamente ao tempo presente, existem comparações errôneas. Frente a isso devemos esclarecer que López Obrador está mais próximo do senador dos EUA, Bernie Sanders que de Trump. Seu projeto político mais perto de Perón do que de Hugo Chávez.

Realmente López Obrador tornou-se um significante vazio que reúne todas as demandas de insatisfação da sociedade, que simplifica na corrupção a causa de todos os males que assolam o país, que concilia diferentes setores e ideologias, com diferentes pactos, tanto a nível territorial, quanto sindical. Entre os pobres, mas também entre os ricos.

É, em suma, uma reação visceral à doutrina do choque neoliberal. É um projeto cujas raízes fundem no nacionalismo popular (ou nacionalismo revolucionário), de onde enfrenta a espoliação a que o neoliberalismo nos submete.

E agora?

A questão é: o que vem depois do dia 1 de dezembro, quando Obrador toma posse? Na eleição do dia 1º de julho o sistema partidário implodiu. É claro que se inicia uma recomposição das elites. A questão é se AMLO vai aproveitar essa situação para terminar desintegrar o PRI e o PRD, para consolidar uma espécie de bipartidarismo em que o Morena polarizaria só com o PAN. Existem vários cenários possíveis, que já começam a ser analisados por alguns intelectuais mexicanos.

As experiências latino-americanas  de governos progressistas nos deixam várias lições. Um das principais é que chegar ao governo não significa ter (todo) o poder. Desde o primeiro dia começa uma luta com o poder econômico e midiático pela condução do processo.

Nesse sentido, é importante saber qual será o novo tabuleiro, uma vez que o mapa político foi redesenhado completamente nesta eleição.

No horizonte temos 2021 como próximo embate eleitoral. Nesse período será realizada a eleição de meio mandato (os mandatos dos deputados federais e estaduais, e prefeitos, são de 3 anos). De uma maneira muito inteligente, López Obrador propôs um plebiscito para revogar ou, se ganhar, renovar seu mandato, nessa eleição. O que permitirá que seu nome esteja na cédula eleitoral. Isso poderia ajudar a consolidar os resultados desta eleição. Além disso, um resultado favorável poderia ratificação seu mandato e assim ganhar força para promover as reformas estruturais na segunda metade de seu mandato de seis anos.

López Obrador, que fez a campanha mais pragmática dos últimos 12 anos, mas que quer entrar para a História como melhor presidente do México, deve adotar uma postura diferente como governante. Está claro que sua intenção é governar com o povo e para o povo. Mas, a eleição de 1 de julho foi um momento político de excepcionalidade. 

Pouco a pouco o povo vai voltar às suas atividades cotidianas, esperando que os governadores cumpram a tarefa para a qual foram eleitos. E aí é onde entra em jogo também a figura do partido, que não pode ser substituído pelo Estado. O novo regime não pode cooptar as lutas sociais, deve permitir que elas aconteçam, mas nunca pretender substituí-las. É necessário romper com o sequestro neoliberal e tecnocrático da política. Nessa nova etapa, os partidos políticos de esquerda que iniciaram esta transformação, especialmente o Morena e o PT (Partido do Trabalho, do México), devem continuar impulsando essa mudança, sem deixar tudo nas mãos do governo ou da institucionalidade estatal.

Definitivamente, se querem construir uma hegemonia que vá mais além de uma simples maioria política, desde o dia 1 de julho devemos ver menos Peace Amlove, y más Maquiavel. [Peace Amlove é um jogo de palavras com a expressão AMLO paz e amor. Esse foi nome de um festival de cultura realizado em junho desse ano, em apoio ao então candidato.

Obs: Nos faltam  43 e milhares de outros companheiros e companheiras mais. E sim, assumimos que foi o Estado, então a primeira tarefa deve ser transformar esse Estado.

*Katu Arkonada é cientista político, autor de livros relacionados à política latino-americana e membro da Rede de Intelectuais na Defensa da Humanidade.

Edição: Pedro Ribeiro Nogueira | Tradução: Fania Rodrigues