POSICIONAMENTO

Fábio Assunção: "Criou-se um ódio absoluto a um partido democrático"

Em entrevista exclusiva ao Brasil de Fato, ator se posiciona contra a intolerância e critica a defesa do porte de armas

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |

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Recentemente ator interpretou o juiz Ramiro Curió, na série "Onde nascem os fortes"
Recentemente ator interpretou o juiz Ramiro Curió, na série "Onde nascem os fortes" - Foto: José Eduardo Bernardes/BdF

Assim como outros atores e integrantes de classe artística, Fábio Assunção acredita que em momentos de intolerância política é necessário se posicionar. Em entrevista ao Brasil de Fato, realizada em São Paulo, o ator avaliou a atual conjuntura política e o crescente discurso de ódio no país, que se aproxima do segundo turno da eleição presidencial.

“Está em jogo todos os avanços que tivemos. De inclusão, de progresso, de liberdade, de amor. Isso tudo está em jogo. O movimento que está vindo é um movimento tipicamente de pessoas que está sem identidade. De pessoas que não sabem o que dizer”, afirmou Assunção. 

“Criou-se um ódio absoluto a um partido. Todos os partidos erram, todos os partidos tem pessoas e pessoas erram. Mas o princípio ideológico do partido, do PT, por exemplo, é muito bem definido desde o início. É um partido democrático, sem sombra de dúvida. É um partido inclusivo”, disse o ator, que se posiciona contra a liberação do porte de armas. 

Assunção também comentou as contradições de seu último personagem na TV aberta, o juiz Ramiro Curió, da série “Onde nascem os Fortes”. Um juiz coronel, conservador e que usa as leis em seu benefício.

Atualmente, o ator ensaia uma peça chamada “Dogville”, de Lars Von Trier, que aborda os sujeitos de uma sociedade conservadora. O espetáculo estreará no Rio de Janeiro em novembro, onde ficará em cartaz até dezembro. “Dogville” chega a São Paulo no início de 2019. 

Confira a entrevista na íntegra. 

Brasil de Fato - O Ramiro Curió, seu personagem de "Onde Nascem os Fortes", era um juiz, um homem da lei, que tinha uma postura de coronel. Como foi a construção desse personagem? 

Fábio Assunção - Geralmente, quando vou fazer um personagem, começo a procurar ele dentro de mim e depois vou procurando uma forma, uma maneira de me expressar fisicamente. A primeira coisa que pensei para o Ramiro era fazer um personagem sem alma, desalmado. Fiz isso porque acho que a relação que ele tem, não só com o trabalho dele, mas com filho, com toda a questão, por exemplo, do hobby que ele tinha de soltar presidiários e atirar nessas pessoas, é um desalmado. O Ramiro teve essa construção. Aí entra figurino, entra o visual, deixei a barba bem grande. O figurino sempre monocromático. Uma figura de muito poder, uma figura impune com certeza da impunidade. Fui para esse lugar onde não existe ninguém. Onde ele pensa que não existe ninguém que possa frear todo instinto perverso dele, esse estado de desalma. 

Existem "Ramiros "ou pelo menos pessoas parecidas com ele na realidade, que manipulam as leis para interesse próprio? Houve um choque da sua visão de mundo com a visão de mundo dele?

A minha visão de mundo é completamente outra. Sou orientado por duas questões fundamentais que são o princípio humanitário e esse lado progressista. Gosto das pessoas livres, podendo fazer suas escolhas, gosto da inclusão. Onde essas pessoas sejam não só aceitas, mas bem vindas.

Claro que existem paralelos em tudo que estamos vendo. A coisa da violência, do ódio, muitas vezes sem motivo. Sem motivo em relação ao odiado. Claro que a pessoa pode ter mil motivos, falar da infância dela, de como foi excluída. Acho que nada é isolado. Se essas pessoas existem, é porque construímos esse mundo. De alguma forma, escravizamos os povos. Os regimes políticos foram extremamente desalmados. O fascismo é desumano. 

Não foi nada difícil encontrar um paralelo para esse juiz, foi bastante fácil. É claro que o Ramiro está inserido em uma dramaturgia, dentro de um roteiro, e as coisas colocam esses personagens como vilões, como figuras extraordinárias. Mas esses vilões estão inseridos na sociedade, de uma forma dissimulada. Eles parecem até gentis, às vezes. Essas figuras se revelam e é muito difícil porque causa muita descrença nas pessoas.

O principal de tudo isso é achar que estamos em um mundo caótico por causa dessas pessoas. Tomamos banho de água fria, desanimamos muitas vezes porque, como as mídias só mostram isso, a gente fica com a sensação de caos absoluto. Acho que tem muita gente batalhando para que isso não aconteça, para que isso não continue. Tem um monte de Ramiros por aí no mundo inteiro e são figuras que vão estar aí sempre. 

Não acho que o mundo é um lugar em que um dia vamos encontrar perfeição. Aqui temos que buscar o nosso caminho, tentar limpar o nosso caminho de qualquer coisa que seja carregada de preconceito. De qualquer coisa que exclua outras pessoas, de qualquer maldade ou falta de empatia, de se colocar no lugar das pessoas em dificuldade. Podemos fazer isso sem se promover a santo. Dá pra ter a sua vida, saber onde está pisando. Pisar firme, na terra, fazendo a nossa parte. Gentileza gera gentileza.

Costumo pensar assim: No trânsito, quando você dá passagem para uma pessoa, daqui a pouco está todo mundo dando passagem. Você contagia. No fundo, todo mundo quer a passagem. Se alguém dá a passagem, a primeira coisa que você vai fazer é dar a passagem. Responder ao Ramiro ou a essas figuras com ódio, isso só joga a gente para um lugar inviável. O lugar que estamos experimentando.

Nesse contexto, qual o papel da arte? É importante que a classe artística se posicione?

Em primeiro lugar, a arte é o lugar onde se tem o máximo da expressão humana. Onde se expressa livremente em qualquer tipo de instrumento, artes plásticas ou através do cinema, da música, é o lugar onde se é livre. Onde você tem condições de colocar suas críticas de uma forma inteligente, de uma forma que desperte no outro alguma reflexão, sem que isso seja panfletário. A arte, por si só, já é um grande encantamento.

O que aconteceu recentemente é que voltou a ter censura em exposições, em manifestações artísticas, como se isso tivesse algum fundamento. Como se isso te colocasse em uma posição de moral, de bons costumes. A arte não passa por ai. Não pode estar sujeita à moral, à aprovação ou desaprovação. A arte é para você buscar dentro de si onde se identifica com isso, onde não se identifica e isso te trazer reflexão. A arte tem que ser preservada em sua expressão, não pode ser censurada jamais.

A classe artística, assim como as pessoas, tem que se posicionar da forma que acreditam. Pela classe artística transitar e respirar a arte, as peças que lemos, o tempo todo estamos vendo conservadores e humanismo. O próprio Ramiro era um cara extremamente cruel e conservador. Mas ali tem uma função dramatúrgica, ele se comportar dessa maneira.

Não dá pra cobrar de colegas que tenham um posicionamento como o seu. Quem vive de arte, quem conhece as dificuldades, todo mundo que conhece as pessoas que estão com dificuldades, vai se humanizando. No fundo tenho um posicionamento de quem gosta de gente. Acho que a maioria dos artistas gostam de gente ou, de pelo menos, estudá-las, retratá-las, falar suas palavras. É natural que a classe tenha essa postura, mas obviamente que isso não é 100%.

Nos últimos anos, tivemos uma conjuntura muito conturbada no Brasil. Gostaria de saber qual avaliação você faz desse período, se acredita que houve retrocessos. E agora, nesse atual momento, o que está em jogo no nosso país?

Eu acho que estão em jogo todos os avanços que a gente teve. De inclusão, de progresso, de liberdade, de amor. Isso tudo está em jogo. O movimento que está vindo é um movimento tipicamente de pessoas que está sem identidade. De pessoas que não sabem o que dizer. Criou-se um ódio absoluto a um partido. Todos os partidos erram, todos os partidos tem pessoas e pessoas erram, outras acertam, mas o princípio ideológico do partido, do PT, por exemplo, é muito bem definido desde o início. É um partido democrático, sem sombra de dúvida. É um partido inclusivo. Tudo o que o [Fernando] Haddad vem falando é nesse sentido e ele está apenas dando continuidade a um projeto de país que já existe.

Não consigo entender tudo que está vindo contra isso. Posso em algum momento ter raiva da minha vida ou de alguma coisa minha, mas não posso olhar para você e o meu desejo ser carregar uma arma para caso, se de repente você discutir comigo, te dar um tiro. Não vejo qual é a base de sustentação de um argumento desse a não ser o de que essa pessoa perdeu totalmente a identidade dela e ultrapassou qualquer fronteira de respeito, de generosidade, de amor. De querer uma sociedade boa. Eu não consigo associar o porte de armas a querer uma sociedade saudável.

Para mim, primeiro, essas pessoas são mal informadas, e depois acho que esse projeto só pode afundar o país. Estamos em um momento de escolha. Se essa for a vontade da maioria do país, o país vai se tornar isso. Cabe a cada um saber como contribuir dentro de um lugar tão indecente e tão obscuro. Se essa agenda for aprovada, será que vai continuar sendo crime bater em uma mulher? Porque não, se há um líder que transborda essa vibe para a população, porque não se poderia fazer isso? Quem vai reclamar? Se você tem uma filha, e ela levar uma porrada, a quem você vai reclamar?

Então, vamos escolher o que é o melhor para o país. Não sei, talvez eu seja burro e isso seja o melhor para o país. Uma grande destruição, uma grande falta de olhar para o outro. E aí vamos ver o que acontece. Eu continuo com as minhas convicções, não defendo partidos, mas continuo acreditando na mesma coisa que acreditava desde sempre. Já fiz campanha do desarmamento uma vez e fui apedrejado. Apedrejado no plebiscito. Toda a questão, por exemplo, da não legalização de drogas tem que ser revista com as famílias brasileiras, porque isso gera violência. Coloca uma coisa que pessoas consomem em um lugar de crime. Como não sabem resolver, não sabem dialogar respeitando as diferenças.

Se você tem um primo que fuma maconha e você fala: "Não vai fumar e se reagir vou te dar um tiro". A sociedade não está avançando. Em vários lugares do mundo se tem a maconha medicinal, vários trabalhos do mundo andando para um lugar onde as pessoas sintam menos dor. Com a sua sexualidade, com suas cores, com seus penteados, com suas roupas. Com essas pessoas felizes, a sociedade melhora. 

Mas se você quer que isso não exista, você terá que amordaçar os instintos do ser humano. Não posso mandar você calar a boca e achar que você não vai sentir raiva. Não vou dizer que você não vai ter emprego porque você é mulher e você não vai sentir raiva. Então porque eu não te dou um trabalho? Você fica feliz, eu fico feliz, você paga suas contas, eu pago minhas contas. Não adianta as leis gerarem exclusão, abandono, falta de oportunidade, miséria e querermos resolver isso dessa forma. Se alguém vier te assaltar, dar um tiro nele. Isso não tem lógica, não tem base de sustentação a não ser em regimes fascistas e ditatoriais. Em uma sociedade democrática isso não cabe, esse pensamento não cabe. Não se sustenta em uma sociedade democrática. Ou a gente pensa nisso ou votamos contra a democracia. 

Estamos em um momento de fazer alerta do que pode acontecer… 

Já está sendo feito mas acho que está acontecendo muito em bolhas de whatsapp. Acho que teria que ultrapassar essa bolha. É muito fácil ouvir de um grupo de whatsapp aquilo que eu quero ouvir e o grupo que eu não estou afim de ouvir, saio fora. É o que tem acontecido. Está tão polarizado que uma pessoa que fala contra o que eu penso, pego e saio do grupo. Mas a vida não é grupo de whatsapp. Você anda nas ruas com as pessoas, tem que pegar uma fila para comprar as coisas com pessoas na sua frente. Se estamos nesse retrocesso, amanhã posso empurrar quem eu quiser dessa fila. 

Não estou sendo pessimista, estou sendo realista. É o que está acontecendo. Recebi uma mensagem com vários links publicados de como o mestre de capoeira foi morto. Tem testemunhas. Ele falou que era PT. Então, qual o valor da vida? Avisa logo. Avisa que é ditadura, que é porradaria. Não dá para dizer "vamos nos armar para ter segurança". Não. As pessoas querem se armar para dar tiros. Não quero me armar para ter segurança. Vai ficar aquele negócio coçando no porta luvas. A primeira pessoa que chegar e falar algo, acabou.

Qual é a graça de viver assim? Estamos indo para um lugar perigoso, sem falar em tudo que esse governo Temer fez em relação a congelamento de investimentos, em relação a retirada de direitos trabalhistas que foram duramente conquistados. Essas manobras todas que estamos vendo na calada da noite, em um Congresso podre. Metade daquele Congresso são pessoas que enriqueceram ilicitamente. São pessoas que não estão nem aí. Vamos esperar. Vamos ver.

Edição: Luiz Felipe Albuquerque