Concorrência desleal

Mudança no Conselho Superior de Cinema é perversa para audiovisual nacional

Sem regras de financiamento e de espaços de exibição, gigantes do vídeo sob demanda podem engolir produção brasileira

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Maeve Jinkings em cena de 'O Som ao Redor', de Kleber Mendonça Filho, destaque da produção de Pernambuco
Maeve Jinkings em cena de 'O Som ao Redor', de Kleber Mendonça Filho, destaque da produção de Pernambuco - Reprodução

A raposa tomando conta do galinheiro pode ser uma boa analogia para o que está ocorrendo no Conselho Superior de Cinema brasileiro. O órgão vinculado ao Ministério da Cultura tem, entre suas competências, a formulação da política nacional do cinema, a aprovação de diretrizes gerais para o desenvolvimento da indústria audiovisual e o estímulo à presença do conteúdo brasileiro nos diversos segmentos de mercado.

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Mas desde segunda-feira (3) a presença de produtores ligados a grandes empresas estrangeiras passou a prevalecer na composição do conselho. Decreto assinado por Michel Temer reduziu o espaço de cineastas brasileiros e aumentou a participação de representantes de gigantes do setor, como Netflix e estúdios de Hollywood. Dos nove titulares e nove suplentes, o governo reconduziu três dos antigos titulares e designou 15 novos integrantes – seis titulares e nove suplentes. Somente Bruno Barreto é realizador de filmes.

“Nomearam um grupo que não tem nada a ver com o princípio do Conselho Superior de Cinema”, afirma o cineasta André Klotzel, um dos que viram sua participação ser extirpada da entidade. “As nomeações contrariam a própria finalidade do Conselho, para liberar o território e, com aval do Conselho, que supostamente seria uma coisa digna, sólida e representativa do setor, tentar colocar modificações que não estavam conseguindo fazer anteriormente.”

As modificações estão diretamente relacionadas à nova forma de consumir audiovisual não no Brasil e no mundo: o vídeo sob demanda (Vod) “A discussão sobre VoD é estratégica para o audiovisual brasileiro nos próximos anos. Ela vai ficar. Tudo vai virar VoD. Você já pode assistir coisas que passaram. Não vai ter mais motivo para ter uma programação linear no tempo, vai pode assistir tudo em qualquer momento. O YouTube é VoD. O iTunes e o Google Play, quando você aluga filmes, são também, assim como a Netflix”, explica o cineasta.

Essas empresas atuam no Brasil ainda sem regulamentação. E foi a discussão sobre como se dará esse regramento que levou às alterações na composição do Conselho, avalia Klotzel. “Foi uma retaliação à nossa posição divergente: Cacá Diegues, Renata Almeida Magalhães, Carolina Paiva, Jorge Pellegrino e eu, ninguém foi renomeado.” As nomeações são feitas pelo Ministério da Cultura.

A divergência estava relacionada às obrigações que empresas de VoD devem ter para com o audiovisual brasileiro. “A legislação aplicada aos outros veículos não serve para o VoD. Tudo que se conquistou em termos de ter financiamentos, cotas de exibição e que garante a participação do audiovisual brasileiro nas salas de cinema e na televisão, com o VoD está ameaçado”, afima Klotzel.

O cineasta relata que os dois anos do mandato do Conselho Superior de Cinema foram consumidos em debates sobre a legislação do VoD. “Ficamos o tempo todo discutindo isso. As empresas precisam negociar porque não existe na lei definição para a tributação desse grupo”, relata. “Sentem-se em insegurança jurídica para operar no Brasil, porque estão irregulares no mercado sob esse aspecto. Então, eles estavam correndo atrás de uma regulamentação da tributação, mas sem querer saber de inserir outras coisas que podem garantir a continuidade do audiovisual brasileiro no VoD de uma forma análoga ao que existe no cinema e na TV.”

Para Klotzel, parte do setor de produção representado no Conselho aderiu a uma proposta restrita das plataformas, que não queria saber de cotas de tela (número de dias em que são obrigados a exibir produções nacionais), propunha valores absurdamente baixos para tributação e não falava em proeminência (a visibilidade das produções brasileiras nas “capas” das plataformas). E aderiu a essa proposta com ressalvas. “O outro grupo, do qual faço parte, disse não. Nós cinco fomos tirados do Conselho.”

Brasil perde autonomia, receita e pluralidade

Rodrigo Siqueira, diretor de filmes como Terra Deu, Terra Come e Orestes também critica a mudança na composição do Conselho. “Acho um absurdo abrir assento para estrangeiros participarem do órgão que formula as políticas para o setor audiovisual no Brasil.” Siqueira observa que a nova composição ocorre exatamente quando no Brasil vão definir as regras para o VoD. “Enquanto na Europa estão na segunda rodada de regulação e aumentaram a cota obrigatória para o produto europeu, aqui o governo abriu as portas para que a MPA (Motion Picture Association of America), a Netflix, e as TVs estrangeiras tenham voz e peso em uma decisão que é fundamental para a produção nacional.”

A lei brasileira que trata das TVs a cabo (Lei 12.485/2011) obriga canais estrangeiros que têm veiculação no Brasil a exibir no horário nobre uma cota mínima de produção independente nacional. “Eles têm de comprar do produtor brasileiro que tem o direito autoral dessas obras. Isso gerou um boom na produção nacional. O audiovisual brasileiro cresce na casa dos 9% há nove anos seguidos. São direitos autorais brasileiros”, explica o diretor.

Segundo ele, isso deve acabar se o VoD não for regulamentado prevendo obrigações com os investimentos e exibição de conteúdo nacional. “A tendência do mercado é que se diminuam os conteúdos de TV por assinatura e essa base migre para as plataformas de VoD. Na Europa estabeleceram uma cota considerável para essas plataformas de VoD”, que era o que tentava o grupo agora afastado do Conselho. “Se a gente não criar o mesmo no Brasil, vamos eliminar essas conquistas e vão exibir produtos estrangeiros ou produtos brasileiros que produzem eles mesmos. Tem uma perda de autonomia, de receita, cultural. Volta à estaca zero.”

Alteração calculada

A atriz Maeve Jinkings prevê consequências perversas na mudança no Conselho Superior de Cinema. “Me parece uma medida bem a caráter de um modelo de governo pseudodemocrático. Isso tudo é muito mais perverso do que extinguir políticas culturais, porque numa primeira leitura dá a aparência de tudo funcionar na mais perfeita normalidade”, afirma. “Mas na prática vai significar retrocesso onde estávamos avançando: pluralização das vozes. Inclusive o fato de hoje eu viver em Recife, com uma comunidade de audiovisual atuante e reconhecida em sua importância. Isso agora acabou”, lamenta.

Maeve é conhecida por sua atuação em obras premiadas, produzidas fora do eixo Rio-São Paulo, a exemplo do longa-metragem O Som ao Redor, do cineasta pernambucano Kleber Mendonça Filho, mesmo diretor de Aquarius. “A verdade é que não há política de governo alguma para cultura. Ou melhor, a política é essa mesmo: deixar morrer de inanição os pequenos e médios produtores de audiovisual. Afinal de contas são vozes dissonantes e esse governo não parece tolerar dissonância ou pluralidade.”

"Quando você entra na plataforma, não sabe o que tem lá. O que colocam na capa é mais assistido. Ou seja, tem de dar proeminência, visibilidade para o produto nacional"
Para a diretora Joyce Prado, da Associação dos Profissionais do Audiovisual Negro, a mudança no Conselho Superior de Cinema foi estrategicamente calculada. “No próximo ano teremos uma comissão formada pelo Conselho e representantes da sociedade civil para a elaboração do novo Plano de Metas do Audiovisual a ser adotado a partir de 2020. E essa nova composição reforça características anteriores do Conselho predominantemente formado por homens e brancos, representantes de exibidoras em detrimento a realizadores e representantes de associações do setor”, critica.

Aprovado em 2012, esse plano de diretrizes e metas é um documento que estabelece a estratégia para o desenvolvimento da indústria do cinema e do audiovisual no país e funciona como um guia para as ações do poder público para o setor.

“Não temos como mensurar qual será o impacto para o cinema nacional”, afirma Joyce, cineasta da Oxalá Produções. “Para além da cota de tela, há uma dúvida sobre a continuidade de políticas públicas vigentes que necessitam de ações afirmativas para sua aplicabilidade. Será esse um conselho que pensará nesses pontos? E de qual maneira?”, questiona. “Tudo causa um estranhamento e incerteza.”

Audiovisual brasileiro funciona

André Klotzel conta que o ministro da Cultura, Sérgio Sá Leitão, argumentava que estavam emperrando o desenvolvimento do Brasil. “Temos de resolver isso, mas incluindo todas as questões que têm de ser negociadas nesse momento”, afirma o ex-integrante do Conselho Superior de Cinema. “Na TV por assinatura, por exemplo, uma parte da remessa de recursos para fora fica retida no imposto de renda e pode ser utilizada para investimento em obras audiovisual. Isso serve para garantir suprimento das TVs com conteúdo. Elas têm obrigatoriedade de três horas e meia de programação brasileira. Isso aumentou a presença de maneira incrível. A Europa toda está se fazendo isso. Aprovou cota de 30% de obrigatoriedade só de conteúdo europeu.”

Em 2017, recorda Klotzel, somando todas as obrigatoriedades, foi de 2,2% da programação a cota de tela do audiovisual brasileiro na TV. “Antes de existir essa cota, exibiam 1%. A cota obrigou a 2,2%, mas o audiovisual brasileiro está funcionando tão bem que chegaram a 8%. A cota fez aumentar incrivelmente a produção e a exibição”, comemora.

O cineasta observa que esse é um mercado imenso e desigual. “Temos de entrar nesse mercado dando espaço aos brasileiros. As gigantes da internet estão numa situação assimétrica em relação a todos os setores de produção brasileiros. Tem de haver uma forma de fazer a produção brasileira chegar a esses veículos ou nunca vai chegar”, avisa. “Queremos uma negociação, incluindo a tributação, a possibilidade de investimento para exibição de produtores brasileiros nas plataformas de VoD que serão praticamente financiadas por essa tributação e os investimentos que eles poderão fazer com base nas leis análogas à remessa de recursos ao exterior.”

E destaca, ainda, a questão da visibilidade. “Quando você entra na plataforma, não sabe o que tem lá. O que colocam na capa é mais assistido. Ou seja, tem de dar proeminência, visibilidade para o produto nacional”, explica.

“Esses são os pontos que a gente faz questão de colocar e não querem. E o ministério não aceitou. Pela primeira deixou de assumir o lado da produção brasileira independente, que é o audiovisual brasileiro. Pela primeira vez temos um Ministério da Cultura que não enxerga o setor da produção brasileira como prioridade”, reclama. “Isso não está entre as preocupações de primeiro momento desse governo. Para eles num segundo momento a gente vê. Mas não vai existir segundo momento. Tem de fazer a regulamentação de tudo ou nunca vai acontecer”, avalia. “É uma coisa que vai ficar para os próximos 30 anos, o VoD. O que for decidido, fica. Depois de consolidado, não reverte. A Netflix até financia muita coisa no Brasil, séries, mas é política para entrar no mercado. No querem ouvir falar em cotas.” 

Klotzel defende que qualquer país desenvolvido deve ter um audiovisual próprio e não apenas ser consumidor de importados. “Não é possível que o Brasil, com 200 milhões de habitantes, renuncie à possibilidade de fazer cinema e TV. E estarão renunciando. Os produtores independentes, por maiores que sejam, são todos pequenos. Até a Globo fica pequena quando você começa a colocar Apple, Amazon, Netflix. Fica nanica.”

Edição: RBA