Representatividade

Curta “Fábula de Vó Ita” promove representatividade e debate racismo na infância

No filme, a avó Ita conta uma fábula sobre a importância da representatividade para a autoafirmação da neta como negra

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |

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Durante a produção de elenco, muitos atores mirins relataram histórias parecidas com a de Gisa
Durante a produção de elenco, muitos atores mirins relataram histórias parecidas com a de Gisa - Divulgação / Oxalá Produções

A representatividade em produções artísticas continua sendo um grande desafio no Brasil. Diferentes análises e estudos comprovam a sub-representatividade negra no cinema, na televisão, literatura infantil e em brinquedos. A representatividade para as crianças também cumpre um importante papel; permite que elas cresçam "mais seguras e independentes", conforme a psicóloga e especialista em Filosofia Sarah Helena.

O curta-metragem infantil Fábula de Vó Ita, que foi apresentado no 16º Festival Internacional de Cinema Infantil (FICI) em setembro do ano passado, procurou assumir a questão. No curta, Gisa é uma garota com cabelos cheios de personalidade, mas que são alvo de zoação dos colegas de classe. Ao notar o incômodo da garota com sua aparência, sua avó, Ita, conta uma fábula que mostra a importância da representatividade para a autoafirmação da menina como negra. 

O filme foi pensado desde o momento de inscrição do edital com enfoque na produção feminina, em 2014, o que levou as diretoras Joyce Prado e Thallita Oshiro a mapear profissionais. Durante o processo de desenvolvimento do roteiro, foi pensada uma maneira de contar uma história cotidiana, com a qual as crianças que assistissem pudessem se identificar. Segundo Joyce, a busca por ator e atrizes negras foi feita a partir da divulgação do casting em grupos no Facebook, sites, escolas e espaços recreativos, o que fez com que o projeto se tornasse conhecido e possibilitou ouvir relatos sobre a carência de produções audiovisuais que tratassem do racismo na infância e da importância da identificação.

“Na produção de elenco, recebemos muitas crianças, a maior parte sem experiência em atuação. Nesse momento, perguntávamos para eles: “como é a escola? Alguém já falou algo negativo sobre seu cabelo?”, e todos eles relataram histórias parecidas com a personagem”. Além disso, como uma forma de compreender o que as crianças entendiam sobre desenvolvimento de narrativas e quais eram suas referências, perguntaram sobre os filmes e personagens favoritos. Quase todas respondiam com nomes de personagens não negros.

A produção foi feita com foco não só nos pequenos, mas também pensando no diálogo com mulheres e homens negros. Durante os testes, Joyce conta que era comum a discussão sobre as situações de racismo na infância dos atores, atrizes e famílias das crianças. “Tekka (atriz que interpreta Gisa), sempre achou que o filme era sobre ela, porque ela passava por isso na escola e também precisava de um espaço de acolhimento. Kauan (que interpreta Zinho) também passou por essa situação e também precisava desse espaço. Então entendemos que o espaço precisava ter brinquedos. Sempre havia um momento recreativo durante o ensaio, o que gerou uma proximidade.”

A rapper paulista MC Soffia, de 14 anos, afirma que na sua infância teve a figura da Vó Ita representada por suas avós, que buscavam apresentar livros e filmes de personagens negros, como Menina Bonita do Laço de Fita (Ana Maria Machado, 1997) e Kiriku e a Feiticeira (Michel Ocelot,1998). “Todas as representações que nós jovens e crianças negras temos nos inspiram. Como não existem muitos, os que existem já nos encantam.”

Hoje em dia, a música de Soffia também tem a função de empoderar meninas e meninos negros. Incentivada por sua mãe, que acreditava que a menina tinha que falar sobre negritude em qualquer espaço a que pertencesse, cresceu com o papel de inspirar outras pessoas.“O trabalho que eu faço é para as meninas que tem essa representatividade na família, mas para as que não têm também, e que posso ajudar. Nós negras precisamos nos ajudar.”

A cantora conta que, como todas as crianças negras, também já passou por racismo na infância. Ela acredita que é função das escolas falar sobre a história e cultura afro-brasileira, como prevê a Lei 10.639/03, a fim de mostrar as diferenças e promover o compreendimento da cultura e dos corpos negros. Para Joyce, o filme pode servir como um disparador para abrir o caminho de um diálogo sobre racismo com as crianças, onde o adulto pode conversar e entender o que elas assimilaram da projeção.

O curta-metragem tem passado em alguns festivais, como o Festival de Cinema Infantil, em Florianópolis, onde recebeu uma menção honrosa por votação do público infantil, além do Encontro de Cinema Negro, Festival Internacional de Cinema Infantil, CineSesc, e outros. Recentemente, foi selecionado também para o Play Fest, festival de cinema infantil em Lisboa. Uma versão estendida do filme deve estrear no final de 2019.

Edição: Mauro Ramos