Entrevista

Março das Mulheres | Geovana recusa apelido de Deusa do Samba Rock: "Limita muito"

Aos 71 anos, autora de grandes sambas da década de 70 volta aos estúdios com novo trabalho "Brilha Sol"

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |

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Sambista Geovana recebeu a equipe do Brasil de Fato e falou sobre samba e luta das mulheres
Sambista Geovana recebeu a equipe do Brasil de Fato e falou sobre samba e luta das mulheres - Marcelo Cruz/Brasil de Fato

Com um sorriso largo e transbordando simpatia, a sambista Geovana recebeu a equipe do Brasil de Fato em seu apartamento, localizado no centro da cidade de São Paulo (SP), acompanhada pelo produtor Guilherme. Nascida Maria Tereza Gomes, no Rio de Janeiro (RJ), e com nome artístico de Geovana, ela é conhecida como a Deusa Negra do Samba Rock, mas o título não agrada a artista: “Limita muito, né?”. 

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A sambista fez sucesso na década de 70, principalmente após vencer a Bienal do Samba de São Paulo com a canção “Pisa nesse Chão com Força”. Com composições interpretadas por nomes como Jair Rodrigues, Martinho da Vila, Clara Nunes e outras personalidades do samba, Geovana ficou longe dos estúdios nas últimas décadas, mas nunca parou de compor.

No auge dos seus quase 71 anos de idade, Geovana está produzindo um novo disco chamado “Brilha Sol”, através de campanha de financiamento coletivo e com previsão para lançamento o mês de junho. O trabalho conta com composições inéditas, parcerias com outros músicos e grandes sucessos da cantora. 

Confira a entrevista que a sambista Geovana concedeu ao Brasil de Fato, onde ela fala sobre sua trajetória, o machismo no samba, o racismo da sociedade e o atual momento político. 

Brasil de Fato: Como você começou a ser chamada de Deusa Negra do Samba Rock?
Geovana: Acho que porque talvez eu tenha uma batida do samba diferente, aí surgiu. Porque também pegaram muito do samba, eles também colocam Candeia, Aniceto, como samba rock.  O pessoal do samba rock, adotou, então, eu não sei bem. Mas eu não gosto muito não porque limita. Você fica um negócio assim "Deusa do Samba Rock", poxa, aí não combina. Eu não me preocupei com isso não, mas também eu não gosto.Tem que ter um compromisso, esse negócio de deusa. 

Como foi o seu primeiro contato com o samba?
Eu sempre ouvi samba. Meu padrasto tocava cavaquinho, mas, lá em casa tinha "macumba", então, da macumba saía samba, entende? Então, foi assim. E depois eu sozinha mesmo comecei a desenvolver, mas a gente sabia mesmo que era samba e depois eu conheci pessoas mais velhas, que diziam que eu tinha ritmo. E eu vivia fazendo samba o tempo todo, até hoje.

Quais foram as dificuldades que você passou por ser mulher no mundo do samba, predominantemente machista?
Agora, até eu me tornar Geovana, o bicho pegou, porque é muito machismo, muito preconceito. Mas assim mesmo eu tive uns amigos da antiga que me apoiavam, davam força e aí como eu também era uma criança rebelde, aí eles me protegiam, me davam conselhos e me levavam pra roda de samba também com eles. 

Mas quando eu cheguei no samba eu levei umas pernadas. Às vezes o trabalho era pra mim, eu que tinha que cantar, mas aí botavam gente no meu lugar e aí dizia um preço com um e aí dali a pouco davam um preço menor para ficar no lugar. Essa mamata que aliás tem até hoje. De qualquer maneira, não me fizeram tão mal assim não, mas eu vi acontecer coisas piores com outras pessoas. Certos tipos de exigências, os abusos sexuais, uma série de sacanagem mesmo. Mas eu não cheguei a passar por isso, até porque eu sempre fui independente, sempre trabalhei, então eu cantava meu samba, mas com meu dinheiro na bolsa.

Você compôs músicas que foram gravadas por grandes nomes como Martinho da Vila, Jair Rodrigues. Como foi esse período de ascensão na sua carreira?
Eu fazia minhas músicas e ficava lendo alguma coisa que ia acontecer e aí eu comparecia nesses lugares, entende, então eu me informava com as pessoas e fui mostrando meu trabalho. Foi assim até que eu cheguei no Teatro Opinião [Rio de Janeiro]. Foi até a Bethânia que veio e me deu uma força, mas aí eu meio que desviei porque eu estava do lado de cá, conhecia mais o pessoal daqui [São Paulo].  Ela me deu uma força e eu conheci a Tereza Aragão também, e aí já estava na Ditadura. Eu cantava no Teatro Opinião, com a Tereza, com o Xangô (da Mangueira), o Zé Keti. Ainda peguei o Zé Keti, ele ainda cantava no teatro. E o João do Vale, conheci depois, mais uma turma. Xangô, Walter Rosa, Anália, ela era a falecida mãe da Mart'Nália, ex-mulher de  Martinho da Vila, e daí fui conhecendo [o pessoal]. A Anália me apresentou Jair Rodrigues, que gravou o "pisa nesse chão com força" e depois vim parar em São Paulo. Depois Djalma Pires, Jair Rodrigues, todo mundo foi gravando né, foi me gravando.  

Os terreiros de Candomblé, comandados por mulheres, foram lugares de acolhimento para músicos desse gênero musical, que historicamente foi perseguido, assim como a religião. O que você diria dessa ligação? 
A mulher no samba é igual aos Orixás africanos, as mulheres no samba são as mães. E no Candomblé a grande hierarquia não são os homens, são as mulheres. Então pronto, assim que é o samba. A gente acolhe, até porque o samba são os nossos filhos, maridos, amantes, amores, nossos Orixás, isso tá tudo bem agregado. 

O que você diria sobre o atual momento no samba no mercado musical e na cena, nos espaços de samba? Fala um pouco pra gente sobre a nova geração do samba.
Agora qualquer um canta samba né? Agora tem tanto sambista que eu nem sei quem é. 

Bom, vamos mostrar o que aconteceu com os blocos no Carnaval, tá entendendo? É muito samba, rock n roll, a coisa aqui tá preta. É porque as pessoas não levam o samba a sério. O samba, o negro não são levados à sério, com respeito. 

Agora, uma coisa tá boa porque eu to vendo uma juventude cantando samba. Isso eu to assistindo, tô de perto, tô de longe, estão até comigo. Porque, essa juventude, Guilherme [produtor] é meu parceiro musical, e ele é jovem. E eu nem perguntei nada a ele, ele já me segurou, me trouxe pra cá, então uma coisa que eu sempre acreditei é que um dia eu seria levada à sério. Mas enquanto eu não fui eu também perturbei eles. Eles não gostam de ser contrariados, mas aí comigo é o seguinte, se me contrariou eu vou lá e contrario de propósito, aí eu sou insuportável. Essa juventude tá me agradando, e pelo menos gosto muito. 

E outra coisa, o pessoal tá pesquisando, mas eles também estão indo à fonte. Se é Candeia, eu vou lá conhecer a família dele, se é Wilson Moreira, vai lá falar com ele, você pra falar comigo você vem aqui na minha casa, num é? Tem muito samba em São Paulo e samba bom. 

Como você enxerga a expressão da cultura negra no samba atualmente? Tem ocorrido um embranquecimento do samba?
Primeiramente, há um genocídio do negro, o negro está desaparecendo. 

Agora, se o negro fosse tratado como eles fazem um samba enredo, botando nas alturas ganhando prêmios, mas quando acaba o desfile ele tá preso lá, porque a polícia vai lá prende-lo. Vai lá e mata ele. 

O samba, houve esse embranquecimento, mas é o seguinte, ele tá todo misturado. Esse sangue tá todo misturado, o sangue do branco tá todo misturado, o negro tá todo misturado, não nasce mais negro puro, tá difícil. E tá difícil branco nascer puro também porque não adianta, vai pela genética, vem um, vem outro, vem um da família, outro não quer. Agora nem a realeza escapou, não tem jeito, entra negro mesmo,vai entrando.   

Mas, a educação que falta, entendeu? Porque o samba é uma escola e se é uma escola tem que estudar e tem que estudar pra saber e pra saber tem que aprender, não é verdade?

São mais de 40 anos desde o último lançamento de um disco seu. O que você fez durante esse tempo fora da mídia?
Como que você fica fora da mídia, se você está tocando? Quer dizer, São Paulo sempre me pagou, enquanto no Rio, entende? Ao sair esse disco, eu nunca ganhei dinheiro no Rio. Meu dinheiro sempre vem daqui, de São Paulo, Minas, Brasília, França, vem assim. 

A casa fechou, eu to sendo roubada, pelo menos, eu tinha R$ 5 mil pra eles me devolverem e aí...liga pra lá e nada. 

Aí eu fiquei dura né, quando me roubaram eu fiquei dura, mas enquanto isso eu sempre trabalhei. Trabalhei na reciclagem, na cozinha, porque eu gosto do meu dinheiro e não gosto de ninguém me atentando porque eu não tenho paciência.

Eu não tinha condição se não trabalhasse, eu não consigo ficar parada e depois o seguinte, comer, beber dormir e dar uma curtida também né.

Eu trabalhando, mesmo em outro ramo, eu nunca deixei de compor, andando, fazendo samba. As pessoas falavam "ih, Geovana tá muito louca, ela tá falando sozinha". Não, é que de repente, um verso não pode escapulir né, eu nunca deixei de compor. 

Às vezes tem coisa que fica lá no fundo, que fica tanto tempo e aí um dia você pensa "poxa, eu tenho isso aqui". Aí surge a belíssima ideia de fazer mais um samba.

Estamos vivendo um momento de retrocessos em direitos e as mulheres são um dos grupos mais afetados no atual governo Bolsonaro. O que você diria sobre este momento? Tem algum recado?
A mulher tem que continuar lutando como sempre lutou. E junto com os homens também, chamar os homens na chincha. Não adianta, tem que chamar, a mulher vai ficar só na dela? Não vai adiantar.  A mulher tem que chamar o homem na chincha também, falar "você também é responsável", tá entendendo? Nós estamos no nosso direito e temos que cobrar sim, principalmente do homem, botar ele na chincha, porque aí sim a gente resolve a situação. Preparar nossos filhos, nossas filhas, isso é isso, isso não é isso. Porque vai ficar falando sozinha? Aí eles começam a manipular numa boa. 

 E tem que ser imediatamente, que isso! Estão dizimando, acabando com tudo. O ser humano hoje nem para pra conversar, para pra exterminar. De uma maneira ou de outra, com palavra, com porrada, com tiro, tá entendendo? Com covardia, crocodilagem, mentiras. Então, a mulher não tem que ficar de bobeira não. 

Esse então [Bolsonaro], tem que botar ele no lugar dele, porque ele não se manca. Nem ele e nem os filhotes dele, não se mancam. As pessoas tem que saber onde pisam, em quem votou, porque agora eu quero ver.  

Essa matéria faz parte do especial Março das Mulheres, produzido pelo Brasil de Fato. 
 

Edição: Tayguara Ribeiro