América Latina

Artigo | Guerra na Venezuela, por Marcelo Zero

É preciso considerar que os EUA já estão em guerra com a Venezuela. Uma guerra híbrida, não-convencional, mas uma guerra

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |
"Para assegurar seus interesses, o governo dos EUA não se importa em destruir países e matar milhões de pessoas"
"Para assegurar seus interesses, o governo dos EUA não se importa em destruir países e matar milhões de pessoas" - Juan Barreto / AFP

A grande pergunta que todos se fazem no momento é se haverá ou não uma guerra na Venezuela.

Bom, em primeiro lugar, é preciso considerar que os EUA já estão em guerra com a Venezuela. Uma guerra híbrida, não-convencional, mas uma guerra.

Os EUA estão fazendo de tudo na Venezuela. Além do embargo comercial e financeiro, que já ocasionou a morte de pelo menos 40 mil pessoas, confiscaram ouro e outros ativos da Venezuela no exterior, promoveram atos de sabotagem que levaram a apagões, instituíram um títere ridículo (Guaidó) para tentar derrubar Maduro mediante um golpe, articularam o isolamento diplomático e político do nosso vizinho, fazem pressão para que os militares abandonem o governo constitucional, promovem uma grande campanha de desinformação sobre a Venezuela para criminalizar Maduro e o regime bolivariano, etc. etc.

A questão não é, portanto, se os EUA entrarão em guerra com a Venezuela, mas se a atual guerra híbrida escalará para uma guerra militar estrito senso.

Para tentar responder a essa pergunta, temos de levar em consideração dois grandes fatores.

O primeiro tange à nova geoestratégia dos EUA para América Latina. Eles querem implantar, a ferro e fogo, se necessário, a Nova Doutrina Monroe, segundo a qual a nossa região tem de ser, de novo, um espaço de influência exclusiva dos EUA. Um quintal. Um patio trasero, como dizem os hispânicos.

Nesse novo cenário, não haveria lugar para países que tenham políticas externas independentes e relações mais aprofundadas com China e Rússia, por exemplo, rivais geopolíticos e geoeconômicos dos EUA. Assim, a derrubada do governo Maduro é essencial para a agenda dos EUA na região, pois Caracas tem hoje relações bastante estreitas com esses rivais dos EUA e pratica uma política externa muito independente, embora jamais tenha deixado de prover seu petróleo para o gigante norte-americano. Diga-se de passagem, o governo cino-brasileiro de Bolsonaro, bem-treinado que é, já ameaça sair do BRICS e abandonar programas sino-brasileiros.

O segundo fator diz respeito às divergências no governo dos EUA sobre o que e como fazer, em relação à Venezuela.

Como no Brasil, há dois grandes grupos no governo dos EUA que têm opiniões distintas sobre esse e outros assuntos.

Há o grupo dos ideólogos de extrema direita, do qual fazem parte figuras sinistras como John Bolton (Conselheiro de Segurança Nacional), Mike Pompeo (Secretário de Estado), e o terrível Eliott Abrams (enviado especial para a Venezuela), entre outros. Embora mais sofisticados que o astrólogo da Virgínia e os integrantes do Clã (qualquer coisa é), compõem um grupo extremado, um tanto delusional, gente que não tem contato muito estreito com a realidade.

Pois bem, esse pessoal, tutti buona gente, neocons de pura cepa, quer uma intervenção militar na Venezuela. Bolton, em particular, maior ideólogo da Nova Doutrina Monroe, já demandou ao Pentágono cenários variados para a intervenção, desde bombardeios localizados, até invasão com tropas em terra.

O problema, para ele, é que os militares do Pentágono, como os daqui, estão resistindo e advertindo Trump sobre os perigos de uma guerra na Venezuela, especialmente se esta envolver tropas em terra.

A Venezuela é duas vezes maior que o Iraque e tem um terreno extremamente difícil para operações em terra, com selvas impenetráveis, pântanos (llanos), montanhas, etc. Enfim, um terreno ideal para uma guerra defensiva de posições táticas e de guerrilhas. Além disso, como já escrevi anteriormente, a Venezuela vem se preparando para este cenário desde 2006, com o Nuevo Pensamiento Militar. Mesmo no caso de uma derrota completa das forças regulares venezuelanas, a Milícia Bolivariana, que poderia reunir até 500 mil membros, oporia feroz resistência por todo o território da Venezuela.

Não bastasse, os bolivarianos poderiam receber apoio logístico de China e Rússia, especialmente desta última, que desenvolveu cooperação militar estreita com a Venezuela.

Além dessas questões militares operacionais, pesam também contra uma intervenção militar, notadamente contra uma invasão por terra, a falta de apoio político internacional. O Grupo de Lima, que congrega a direita sul-americana e os satélites dos EUA na região, rejeita a escalada militar, embora apoie entusiasticamente a guerra híbrida contra a Venezuela. Os europeus também preferem apostar apenas na guerra híbrida.

Mas isso significa dizer que a transformação da guerra híbrida em guerra convencional está descartada?

Não, não está.

À medida que a “solução Guaidó” fracassa miseravelmente e não se investe numa solução negociada e pacífica, cresce a impaciência e o descontentamento dos neocons liderados por John Bolton. Há de se considerar que Bolton é um sujeito muito perigoso e influente, que tem um longo e inquietante histórico de manipulação de informações para fazer prevalecer suas teses.

Parte de grupos a ele ligados a cretina “informação” de que os generais venezuelanos seriam controlados por “agentes cubanos”, repetida por oligofrênicos da nossa imprensa conservadora. O alvo de Bolton é o lobby anticastrista, de enorme influência e Washington e decisivo no voto latino nos EUA.

Trump, embora reticente em aprovar qualquer intervenção militar, confia muito em Bolton e o encarregou de cuidar do tema.

O presidente do America First e o resto que se dane não quer se envolver numa guerra que não poderia ganhar no curto prazo, mas também sabe que o atual cenário de fracasso e humilhação o está desgastando ante o eleitorado conservador.

Na persistência crônica desse cenário de impasse humilhante, é possível que se opte por uma intervenção militar restrita a alguns bombardeios punitivos contra alvos militares e políticos selecionados.

Do ponto de vista logístico e militar, essa seria uma alternativa viável. A Venezuela está muito próxima dos EUA. Ademais, os EUA têm duas grandes bases militares bem próximas do território da Venezuela: Guantánamo (Cuba) e Soto Cano (Honduras). Os EUA também não teriam grandes dificuldades em usar instalações no Panamá, Colômbia ou, quem sabe, até no Brasil. O deslocamento de uma boa força naval até a costa da Venezuela também poderia se dar de forma muito rápida.

A capacidade de a Venezuela resistir a tal ataque é limitada, mesmo com seus Sukhois SU-30 e seus mísseis S-300. O poder dos mísseis Cruise e dos aviões com tecnologia stealth é avassalador. Ademais, a Venezuela não tem expertise em guerra eletrônica. Uma vez destruído o sistema de comunicação militar, pouca coisa poderá se fazer.

A decisão de se fazer ou não um ataque desse tipo dependerá da evolução das condições internas na Venezuela e dos efeitos esperados nos eleitores de Trump. Se o impasse político persistir, se abrirem fissuras nas forças venezuelanas e as condições econômicas continuarem a se deteriorar, e se os eleitores conservadores dos EUA começarem a ver com bons olhos uma ação mais firme, a hipótese de uma intervenção militar restrita, sem tropas em terra, pode não só se tornar factível, mas desejável.

Bastaria preparar o terreno com uma operação de falsa bandeira, que resultasse em mortos e feridos atribuíveis ao “ditador” Maduro, para que tal ação possa ser “justificada”. Outra hipótese, como esclarece o patético títere, seria o parlamento venezuelano convidar os americanos a destruírem a Venezuela.

Seria, de qualquer modo, uma aposta de alto risco. Porém, não se deve desprezar a crueldade e a truculência do Império e da direita venezuelana. Para assegurar seus interesses, o governo dos EUA não se importa em destruir países e matar milhões de pessoas, desde que não sejam vidas norte-americanas. Iraque, Afeganistão, Líbia e Síria foram destruídos, milhões de vidas foram perdidas, ceifadas, direta ou indiretamente, pela guerra.

Alguns argumentam que, na América Latina, haveria maiores freios para ações como essas, dada à existência de uma grande população de origem latina nos EUA, mas, ante o total desprezo demonstrado por Trump ante o sofrimento de imigrantes latino-americanos, não é prudente supor que a atual administração dos EUA se guiará, no caso da Venezuela, por princípios humanistas e racionalidade.

O risco de uma escalada militar, que possa conduzir a Venezuela a uma guerra civil prolongada é, portanto, real.

Em outros tempos, o Brasil lideraria toda a América Latina contra essa loucura. Agora, no entanto, somos um paiseco submisso, que bate continência, até mesmo literalmente, para gente insana como Bolton.

Bolsonaro abriu os portões para a barbárie não apenas no Brasil, mas em toda a nossa região.

Oscar Wilde afirmou que os EUA eram o único país a passar da barbárie para a decadência sem passar pela fase histórica da civilização.

Já o Brasil dos capitães e astrólogos reúne, numa só fase histórica, decadência e barbárie.

Edição: Rodrigo Chagas