Rio Grande do Sul

40 ANOS DA ANISTA

Izabela: "O problema do Brasil é que nunca houve uma ruptura real"

Filha de Francisco Julião, que foi preso na ditadura, a professora viveu a infância no México em exílio com a família

Brasil de Fato | Porto Alegre (RS) |
Retomada da democracia necessita a criação de uma Frente Popular, avalia Izabela
Retomada da democracia necessita a criação de uma Frente Popular, avalia Izabela - Foto: Katia Marko

Izabela Juliana de Castro Duarte Paz tem 55 anos, é professora de história e tradutora de espanhol. Passou sua primeira infância exilada no México, junto com seus pais, Francisco Julião e Regina Castro, e seus dois irmãos. Nascida no meio de uma família de militantes políticos e sociais, ela foi a última filha de Julião, uma das lideranças das ligas camponesas do período após a 2ª Guerra Mundial. Assim como seus outros meio irmãos, filhos do casamento do seu pai com Alexia Crespo, ela também foi forjada nessa luta.

Antes do exílio, enquanto seu pai esteve preso, escrevia cartas para a filha recém nascida, que posteriormente dariam vida ao livro “Até quarta, Isabela”. Durante os sete anos em que passou fora do país, guarda a lembrança de visitas como Gabriel García Marquez, Salvador Allende, Pablo Neruda e Betinho, amigo da família. Enquanto a família esteve no México, seus outros meio irmãos estavam entre a Suécia e Cuba. como é o caso de Anacleto, que o Brasil de Fato de Recife entrevistou sobre o tema dos 40 anos da lei da anistia.

Para Izabela, o significado da Lei da Anistia é poder ter de volta no país sua família e amigos. Nessa última entrevista do especial “40 anos da Lei da Anistia” do Brasil de Fato RS, ela fala de sua infância, do processo de deixar o país onde foi batizada, da sua militância e da sua rebeldia ao quebrar a saga da família paterna pedetista e brizolista. E da importância da criação de uma Frente Popular para a retomada da democracia. Confira:

Brasil de Fato RS: Gostaria que tu começasses nos contando como foi a tua experiência no exílio.

Izabela: Meus pais se conheceram nas ligas camponesas. Minha mãe era carioca, já falecida, e papai pernambucano. Eles se conheceram no início da década de 60, minha mãe na época estava separada, já tinha dois filhos, e conheceu papai no movimento durante uma reunião no Rio de Janeiro. Nasceu ali uma história de amor da qual sou fruto. Papai foi preso em Brasília, enquanto minha mãe estava grávida de mim, ela acabou meio que se tornando sua advogada. Recém nascida, em 1964, minha mãe me levava para visitá-lo todas as quartas-feiras. Na prisão, ele acabou escrevendo um livrinho para mim, “Até quarta, Izabela”, em que relata toda sua experiência revolucionária, suas ideias.

Ele não recebia nem papel, nem lápis, era proibido, mas um dos guardas “malocava” escondido, e colocavam na minha fralda. Ele conseguiu um habeas corpus, por intermédio de Sobral Pinto, e pediu asilo político. Em 65 fomos para o México, eu tinha um pouco menos de um ano de idade, foi o país que abrigou, o México abrigava muitos exilados, como o Betinho (Herbert José de Souza).

Francisco Julião, se estivesse vivo, estaria com 103 anos | Foto: Reprodução MST 

Fiquei no México até meus sete anos, tivemos uma infância muito legal. Primeiro porque o país é um país divino, muito parecido, em termos de gente, com o Brasil, então a gente se ambientou bem. Morávamos em uma casa, em uma cidade pequena, Cuernavaca, que fica a uma hora mais ou menos da Cidade do México (DF). Tínhamos cachorro, a família era cachorreira. Papai tinha muitos amigos, era uma cidade propicia ao mundo das ideias, muitos intelectuais foram na nossa casa. Gabriel García Marquez, Pablo Neruda, Salvador Allende, todos eles estiveram na nossa casa, assim como Betinho, que era um grande amigo nosso. Então a gente teve a oportunidade dessa interação cultural. Crescemos nesse ambiente, conhecemos muita gente bacana. Ficamos de 1965 até 1971, quando meus pais separaram. O que foi traumatizante foi a volta, a ruptura com papai. Cheguei lá com menos de um ano e idade, aprendi a falar espanhol primeiro que o português, então eu me considerava mexicana.

Primeiro vieram meus irmãos e eu com um casal, três meses depois veio minha mãe. Ela ainda tentou uma reconciliação, mas não deu certo. Graças a deus ela não estava em nenhuma lista negra, mas era possível que estivesse. Então, por questão de segurança, viemos primeiro. Ela veio com peruca, em uma rota completamente diferente, porque disseram que ela estava em uma lista. Ela conseguiu um trabalho, depois fez concurso para auditora fiscal, foi cassada pelo ministro do trabalho do governo Geisel, mas ela ganhou no mandado de segurança e conseguiu reaver o cargo. Sustentou os três filhos sem ajuda de ninguém. Papai não tinha condições, por conta do exílio. Construímos nossa vida no Rio de Janeiro, no bairro de Copacabana.

Nós nos escrevíamos muito (pai e eu). Nosso telefone foi grampeado, as cartas que vinham do exterior eram abertas, mas conseguimos manter contato. Ele escrevia cartas lindíssimas, escreveu vários livros. Era um cara muito bacana, sensível. Quando ele veio do exílio, em 79, já era filiado ao PDT de Brizola, estava casado com uma Mexicana. Foram para Pernambuco, começa uma vida mais política, ele tenta se eleger como deputado, mas não conseguiu. Meu pai, no fundo, não era um político tradicional no sentido estrito da palavra, era um líder. Voltou para o México, frustrado, triste. A mulher dele queria porque queria levá-lo de volta. Morreu lá, aos 84 anos, por conta de uma parada cardíaca. Creio que a frustração dele era por não ter conseguido, ao voltar para o Brasil, realizar o sonho dele, que era construir algo melhor para os camponeses, seguir o seu trabalho escrevendo, fazer o trabalho político, porque a política está em todos os lugares, em todas as partes, e não somente na política tradicional. Meu pai tinha uma contribuição nesse sentido, com todo o passado dele em relação à política agrária, ele poderia ter continuado esse trabalho e melhorado a vida de tanta gente no campo.

Na faculdade, Izabela se uniu ao Partido Comunista (PCB) | Foto: Katia Marko 

Quando ele voltou, eu estava no movimento estudantil secundarista e na faculdade, onde me uni ao Partido Comunista (PCB), para tristeza do meu pai. Ele sempre foi um cara socialista, mas ele tinha umas rixas com o Partido Comunista. Entrei no partido pelas mãos do Sérgio Cabral Filho, que na época era do partido, militante secundarista. Eu tinha, na época 15, 16 anos. Minha mãe também tinha outra formação, tanto que apoiamos Lula desde o início, e o papai estava com Brizola. Meus irmãos (filhos do papai com Alexia), que estavam em Pernambuco estavam no PDT e tentaram me trazer para o partido.

Quando papai voltou, no início nossa relação foi turbulenta, depois melhorou muito. Minha mãe, politicamente, escolheu um lado oposto ao dele, ela achava que ela era a pragmática. Por exemplo, no México, muitas pessoas pobres, muitas pessoas que necessitavam, papai ajudava, mamãe também. Só que a mamãe ajudava concretamente, com comida, com ajuda financeira, já papai ajudava com discurso teórico, ele dizia que a revolução tinha que ser feito pelas ideias, e a mamãe dizia que não, a revolução tem que ser... o cara tá passando fome agora, você tem que dar comida. Então havia essa incompatibilidade. Eles tinham práticas diferentes, mas ideias parecidas. Na época que ele fazia o movimento da liga camponesa, ele ajudou muita gente, porque ele advogada de graça.

BdF RS: Que significado tem a lei da anistia para ti?

Izabela: Pessoalmente, para mim, foi um momento significativo. Eu não podia falar quem era meu pai no colégio, eu estudava em colégio público, havia toda uma ideologia naquela época, tinha que esconder mesmo quem ele era. A gente sonhava que um dia eles pudessem voltar. Imagina você ficar separado do seu pai durante sete, oito anos, para mim foi muito difícil, para meus irmão também, porque o consideravam um pai. Ele mandava, através de portadores, fitas gravadas. Mas era muito complicado, e foi muito complicado deixarmos o México também, essa diáspora, essa separação. Mas a gente sonhava que um dia ele voltasse, a mamãe também. A gente, quando pôde, batalhou por isso. Quando começou essa reabertura democrática, fomos a todos os eventos. O importante é que o papai tivesse perto, mesmo ele estando em Pernambuco e nós no Rio, mas que ele tivesse aqui no Brasil. Foi importantíssimo, não só por ele, mas pelos Betinhos da vida, todo mundo.

Lembro de nós irmos no aeroporto buscar o papai, mas fomos também quando o Betinho voltou, quando o Miguel Arraes chegou, mamãe gostava muito dele. E o fato de que esse país estava seco, havia, óbvio pessoas que ficaram que resistiram. Mas tinha essa falta.

Nesse período, antes da anistia, tinha dois irmãos que foram para Suécia, o Anacleto e o Anatólio, e duas irmãs que foram para Cuba, sendo uma delas a Anatailde, que foi presa e torturada no Chile e parou no Estádio Nacional do Chile (lugar de prisões e tortura da ditadura chilena, segundo estimativas, houve ali 40 mil pessoas, entre presos políticos e torturados; cerca de 400 pessoas foram assassinadas). A mãe dela, Alexia, conseguiu tirar ela de lá. Nós fomos para o México e meus outros irmãos para a Suécia e Cuba.

Com a anistia, todos puderam retornar, e foram para Pernambuco. Como houve o primeiro governo Brizola, meus irmãos praticamente viviam no Rio. Eles fizeram parte da Juventude do PDT. Nunca fiz parte do governo, eu fui a única filha que foi rebelde, segui outro lado, para o lado do Lula.

"Foi importantíssimo [a anistia], não só por ele, mas pelos Betinhos da vida, todo mundo" | Foto: Katia Marko 

BdF RS: Há quem veja a Anistia como uma concessão, pelo fato dela também ter beneficiado os torturadores.

Izabela: Pode até ter sido, mas foi super importante para que essas pessoas pudessem voltar e para que tivéssemos uma vida política mais rica. Acho um pouco radical, pode até ter sido uma concessão, mas acho que foi para o bem. Foi uma luta, o povo brasileiro estava cheio, queria abertura democrática.

BdF RS: Falando em abertura democrática, essa transição da ditadura para democracia, sem a punição dos torturadores, tem a ver com a presença de Bolsonaro no Planalto?

Izabela: Com certeza. O grande problema desse país, no meu entender, é que nunca houve uma ruptura real. Eu entendo essa questão da concessão, sempre houve, de uma certa forma uma negociação, e de certa forma, dos dois lados, mas nunca ruptura. Talvez, em 64, no governo João Goulart, antes do golpe, fosse um momento da ruptura. Acho que o governo Lula perdeu a oportunidade no sentido de aprofundar o negócio. Mas daí, talvez, ele não conseguisse governar. Mas nunca houve uma ruptura, e eu concordo que a não punição favoreceu que esses ratos saíssem dos porões.

"A não punição favoreceu que esses ratos saíssem dos porões" | Foto: Katia Marko 

BdF RS: O Brasil foi um dos poucos países sul-americanos que não puniu os militares responsáveis pelas ditaduras dos anos 1960/70. E é o único em que os militares estão de volta ao poder. E nessa terça-feira (10), um dos filhos do presidente, o Carlos, disse que não vai haver uma transformação no país pelas vias democráticas. Como tu avalias isso?

Izabela: Eu acho que nesse país, como nunca houve uma ruptura, as concessões, as negociações e os poderosos sempre se deram, sempre mantiveram o seu poder, mantiveram seus lucros. E também esse período de ditadura fez com que a população, na minha opinião, por ignorância, por falta de informação, crescesse nesse ambiente de ocultar tudo, de não se falar abertamente sobre os crimes. Então você tem uma população absolutamente ignorante, que cresceu, e aí eu acho que é histórico nesse país, uma mentalidade do querer se dar bem, ser esperto é mais importante, o politicamente incorreto, uma série de questões que levou uma parte da população levá-lo (Bolsonaro) ao poder. Há uma série de questões, não é só o não punir, existe concretamente uma parte da população que pensa como ele. E ai você tem uma mistura de mau-caratismo com ignorância. O Bolsonaro é fruto de todos esses anos de ditadura militar.

Por exemplo, o México fez a revolução deles em 1910, uma revolução em que houve reforma agrária, depois se institucionalizou, mas eles fizeram, houve um momento revolucionário, houve ruptura. Outros países também fizeram, mas eu uso o México como exemplo, apesar do país ter uma série de problemas, viver também com uma série de problemas, mas o Brasil nunca teve, e quando se tentou foi massacrado. E de novo, a época que poderia ter havido uma transformação foi em 64, com os grandes movimentos populares, a reforma agrária estava quase sendo feita, as reformas de base, etc. Infelizmente não aconteceu e eu acho que é muito difícil você sair desse círculo. O Brasil foi feito para as elites, para os poderosos.

BdF RS: Tu falastes em educação, como tu vês a abordagem dos temas do passado, como a ditadura, ser tratada nas escolas?

Izabela: Eu acho que houve, com o governo Lula, a oportunidade de muita gente do povo poder se educar, mas ainda é muito deficiente.

Na minha opinião o grande projeto de educação foi através do Darcy Ribeiro, ele fez uma das coisas mais revolucionárias que foram os Centros Integrados de Educação Pública (CIEPs), mas nunca levaram adiante, foi um projeto belíssimo, incrível, que poderia ter sido realmente levado a sério e levado adiante e não houve isso. Houve momentos, mas nunca se deu importância à educação neste país de verdade, de você investir massivamente. Quando começava a haver um investimento, estou falando do governo Lula, ele começou e muita gente saiu da miséria, mas não houve uma continuidade.

BdF RS: Falando em avanços… quando falamos em ditadura, começando ainda no governo Fernando Henrique Cardoso, com a criação da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos, continuada pelos governos Lula e Dilma, através da Comissão Nacional da Verdade, tivemos avanços, trazendo a tona o tema Memória, Justiça e Verdade, e que agora está se perdendo.

Izabela: Sim, houve esses avanços. Mas a verdade é que esse país não tem memória, não tem sequência, não tem continuidade para os avanços, sempre é interrompido. Sempre tem rupturas para não haver rupturas, porque sempre manteve o poder dessa gente. Empresários e banqueiros nunca foram tocados, seus privilégios nunca foram tocados, e agora mais ainda, agora eles estão fazendo a festa. Nascemos como colônia de exploração e continuaremos como colônia de exploração enquanto não houver uma ruptura real. Não estou falando, “ah vamos pegar em armas”, não é isso, mas sim um governo que realmente se comprometa com as reformas de base, que toque nos bancos. Que enquadre a mídia, o único cara que teve coragem de falar, de confrontar a Rede Globo, foi o Brizola.

Agora você tem toda a conjuntura internacional, você tem o Trump, nos Estados Unidos, que de uma certa forma embarreira tudo isso e que dá força para esses canalhas. Houve uma tendência de autoritarismo, de voltar ao fascismo, você tem alguns países como a Itália com o crescimento do fascismo, a Polônia, com a avalanche da direita, a própria Inglaterra com o Brexit. Então você tem uma conjuntura que também facilitou isso, não foi só aqui a questão. Nossa vizinha Argentina com o Macri neoliberal, o Chile com o Sebastián Piñera, caras de direita, tudo isso favoreceu um pouco a essa conjuntura aqui, o Trump sobretudo.

"Se não formos para rua, o país está fadado" | Foto: Katia Marko

BdF RS: Falando dos governos do Chile e da Argentina, mesmo sendo de direita, eles ainda tem um certo respeito à memória?

Izabela: Eu acho que eles tem a consciência popular muito maior, são mais politizados. O Brasil se despolitizou, a ditadura acabou com a politização. E ai, você tem atrás disso um país que nunca foi muito politizado; você tem uma população que, no meu entender, nunca teve um momento de politização tão forte das classes C e D, delas chegarem ao poder, quanto no governo Lula.

Se o Brasil não recuperar, se não formos para rua, o país está fadado. Temos que construir uma frente, a esquerda tem que construir uma frente para que consigamos retomar a democracia, porque os fascistas pegaram. Enquanto não tivermos uma frente popular, eu acho difícil tirar esse rato do poder, um fascista da pior qualidade possível. Quando ele ganhou, eu pensei, meus pais devem estar se revirando, não só eles, mas Betinho, Ulysses Guimarães, Darcy Ribeiro, e o pior é que vão morrendo as pessoas legais.

Dentro da grande tragédia desse país, tivemos avanços com os governos progressistas, mas agora retrocedeu tudo e da pior maneira possível. Eu só vejo saída para o país com uma frente progressista, democrática. As injustiças estão aí, Lula Livre faz parte dessa pauta da democracia, sem ele livre não há democracia dentro do que aconteceu, das loucuras e injustiças que foram feitas, você não pode travar em relação a isso, tem que seguir adiante. É importante que as pessoas se deem conta, saiam dos seus guetos, e se construa uma frente popular para voltar a democracia.


Série 40 anos da Anistia - confira as entrevistas anteriores:

Raul Carrion: “De quê que eu deveria ser anistiado? Por defender a Constituição?”

Mara: “Nunca se teve correlação de forças suficiente para punir os militares”

Raul Pont: “Não podemos perder a memória”

Nilce: "Tem que construir a história desse país junto com a justiça e a memória"

Raul Ellwanger: "Os crimes seguem existindo, esses caras todos têm que ser julgados"

Flávio Koutzii: “Não teve um processo de reflexão mais horizontal no Brasil” [parte 1] 

Flávio Koutzii: “Lutar pela anistia é positivo, é criar um campo político" [parte 2]

Edição: Marcelo Ferreira