Paraná

SEGUNDA REPORTAGEM

Venezuelanos apostam na soberania e na organização popular

Integrante da brigada de solidariedade ao país verifica que povo busca contornar as dificuldades econômicas

Caracas (Venezuela) |
O protagonismo popular está na fala de todos.
O protagonismo popular está na fala de todos. - Stéphano Lunardi

No dia 7 de outubro, o caminho até a comunidade de Amatina, em Caracas, foi marcado por vários prédios e construções recentes. O programa Misiones Vivienda (Moradias) entregou algo próximo a dois milhões e 800 mil habitações na Venezuela, de acordo com dados do governo. Por coincidência ou não, três milhões é o mesmo número de pessoas nos EUA que perderam suas casas quando estourou a crise financeira mundial em 2008.

Café e pãozinho são oferecidos para nós por Juana Maracoina. Microfone na outra mão, ela saúda nossa brigada internacional e as delegações de doze países presentes na comunidade:

- Seja bem-vindo ao território liberado.

O final de tarde era calmo e ensolarado. Famílias acompanhavam a conversa também com curiosidade desde suas janelas.

As 137 famílias de Amatina construíram elas mesmas seus edifícios, de forma comunitária e organizada, ao longo de três anos. Aprenderam técnicas de construção, assessoradas por engenheiros e arquitetos. Longe de ser apenas um benefício social, as famílias se organizaram para essa construção, organização que se mantém mesmo com o projeto praticamente concluído. O desafio passa a ser manter a unidade e migrar para atividades de autossustentação.

“Somos uma plataforma de várias organizações a disputar a cidade. Trabalhadores e trabalhadoras residenciais que ocupam edifícios. Havia gentrificação (limpeza social) em Caracas até a chegada de Chávez, iniciamos um processo de mobilização e de luta de classes que visibilizasse a falta de imóveis”, afirma liderança de movimento popular.

Cinco famílias nos apresentam com orgulho o interior de suas casas, que chega a ter três quartos, dois pisos e até 90 metros quadrados, diferente dos habituais 37 metros das construções dos programas sociais brasileiros de moradia popular. Algumas famílias possuem mais filhos, o que traz uma demanda de espaço. Por outro lado, conhecemos também uma militante argentina, instalada há anos em Caracas, que construiu metade de apartamento, dividido para duas famílias. Possibilidades e criatividade existem. As crianças, especialmente, são as mais entusiasmadas para acompanhar os visitantes até seus apartamentos.

A maioria das ocupações são realizadas em terrenos do exército ou áreas antes vazias ocupadas próximas do centro, o que os moradores contam que sempre foi incentivado pelo próprio Chávez. Este fato colabora com a ideia a que eu me referi anteriormente, sobre uma relação entre a liderança presidencial e os trabalhadores que sempre foi de incentivo à organização popular e autonomia.

- “Ocupem!, dizia o comandante”, afirma Juana.

Outra Venezuela

Há um bloqueio econômico e também midiático tão sufocante quanto o que acomete os cubanos. É como se a névoa que encobre parte da Caracas, que miramos de outro bairro, chamado Lídice del Alto, fosse também uma parede branca de informações sobre o que de fato acontece no cotidiano e com as pessoas deste país.

Maracoina conta sobre a experiência de padaria comunitária, que empregou doze mulheres eleitas pela comunidade, com o fortalecimento dos Comitês Locais de Abastecimento e Produção (Clap) rompendo o controle da distribuição pela empresa Polar e circulando a produção comunitária. Há um sentido comunitário e uma das lideranças populares comenta a necessidade de “comunalizar a cidade”. Várias lideranças que ouvimos têm a sua forma de pensar o socialismo, o seu processo de organização, sentem-se parte de uma revolução que é deles.

- “É mais importante a organização para fazer as casas do que as casas, este é o central, como construir uma comuna”, afirma Juana.

Do alto de Caracas, a névoa se rompeu

As pessoas se organizam com urgência para a produção autogestionária e ao mesmo tempo reforçam a organização e o poder popular. A visita à comuna de Alto Lídice, uma favela no alto de Caracas, no dia 8 de outubro, foi um exemplo disso. O protagonismo popular está na fala de todos.

Ao mesmo tempo, não evitam o tema da crise econômica, do bloqueio econômico, da dependência histórica do rentismo petroleiro e o preço caro que isso agora está cobrando.

“Temos a consciência melhor do que já tivemos. É o melhor momento para romper com o capitalismo, mas não temos ainda os recursos”, admite a governadora do estado de Cojedes, Margaud Godoy, em conversa anterior conosco.

Esses comuneiros têm relação de cogestão com os recursos governamentais, mas em todos os lugares que passamos defendem autonomia em relação ao Estado. Buscam agora fazer mais com menos, citando o presidente Nicolás Maduro, figura menos citada que o comandante Hugo Chávez, mas reconhecida pelo esforço desses anos recentes de agressão contra o país.

Para ter uma ideia do impacto do bloqueio econômico na vida das pessoas, o médico chileno Roberto Bermudes está há cinco anos no país e é representante da junta comunal na área de Saúde. Ele elenca a dificuldade de obter remédios que simplesmente não são vendidos ao país. Esses e outros exemplos se multiplicam em diferentes áreas em que se necessite um produto não produzido no país.

Bermudes e outros moradores organizam uma farmácia popular onde os moradores, depois de consulta com os médicos da região, podem retirar os medicamentos e receber atenção ao longo do tratamento. A relação entre o número de médicos em relação à população está dentro dos padrões da Organização Mundial da Saúde (OMC), afirma Bermudes.

Um jovem chamado Jesus, boné para trás, bastante jovem, nos apresenta suas responsabilidades como parlamentar na Comuna, responsável pelas finanças e também por organizar uma das Empresas Populares Socialistas, no ramo de reciclagem de materiais.

- “Queremos gerenciar nosso próprio gás, e também uma obra autogestionada de produção de alimentação”, afirma Jesus.

A colheita de milho iniciada há pouco tempo no morro íngreme do bairro rendeu uma primeira colheita à comunidade de 360 quilos de milho, a partir de sementes trocadas com movimentos populares, inclusive do Brasil. São números de uma produtividade inicial, mas importantes para a organização local. A comunidade decide a produção será distribuída.

O final de nosso percurso foi marcado pela presença de crianças, animadíssimas, que participam do projeto de comunicação popular e registram cada organização da comunidade, costurando esse tecido de organização social por base de todo esse processo.

Bermudes faz questão de lembrar que Lídice foi uma cidade destruída pelo nazismo, em 1942, e cujo nome se espalhou por alguns países. Que os nomes dessas comunas também possam ser espalhados, mas antes de qualquer intervenção imperialista.

Edição: Redação Paraná