Rio Grande do Sul

ENTREVISTA

Rosana Pinheiro-Machado: “A luta e a resistência podem reverter esse cenário”

A antropóloga, professora no Reino Unido e colunista do Intercept falou da atual crise social ao Brasil de Fato RS

Brasil de Fato | Porto Alegre (RS) |
Ela é autora do recém lançado livro "Amanhã vai ser maior: O que aconteceu com o Brasil e possíveis rotas de fuga para a crise atual"
Ela é autora do recém lançado livro "Amanhã vai ser maior: O que aconteceu com o Brasil e possíveis rotas de fuga para a crise atual" - Foto: Katia Marko

“Em tempos sombrios de avanço conservador, de alienação, de medo do autoritarismo e de individualismo atroz que causa uma crise de autovalor e de sentido nos indivíduos, estar no coletivo é uma forma de resistir, de lembrar que, apesar de tudo, somos animais sociais (...) Enquanto estivermos de pé, nossa utopia se chamará esperança, a esperança se transformará em luta, e a luta será o próprio amanhã melhor - e maior”, defende a antropóloga Rosana Pinheiro-Machado, no seu novo livro “Amanhã vai ser maior: O que aconteceu com o Brasil e possíveis rotas de fuga para a crise atual”, da Editora Planeta

A professora da Universidade de Bath (Reino Unido) e colunista do site The Intercept esteve em Porto Alegre para o lançamento do livro e conversou com a equipe do Brasil de Fato RS sobre a ascensão da extrema-direita, o antipetismo e a pesquisa desenvolvida em conjunto com a socióloga Lúcia Mury Scalco, que analisou durante anos as mobilizações sociais e os eleitores de Bolsonaro do Morro da Cruz, bairro periférico de Porto Alegre.

Ao ser indagada de como garantir os direitos humanos em tempos de “bolsonarismo”, afirma que isso só será possível via movimento social, via resistência, via proteção dos grupos, proteção coletiva, porque via institucional é muito difícil. “É muito difícil, não há nenhuma possibilidade de garantir Direitos Humanos sob o ponto de vista de políticas nacionais. O que a gente vê hoje é um desmonte de todas as possibilidades, não só desmonte, mas com uma polícia autorizada a matar. Uma polícia que não apenas está autorizada matar, mas que se ela mata é coroada”, pontua. Contudo ela observa que, através da luta e resistência, esse quadro pode ser mudado.

Detalhe do livro recentemente lançado pela autora / Foto: Divulgação

Confira a entrevista na íntegra:

Brasil de Fato RS: Vemos uma narrativa de que existe uma polarização na política. Meios de comunicação e influenciadores que se dizem isentos afirmam que direita e esquerda são duas faces da mesma moeda, dois extremos. Na prática observamos que um dos “extremos” combate no campo das ideias, enquanto o outro parte para a eliminação e violência física contra quem pensa diferente. Como tantas pessoas aceitam o discurso dos extremos, quando só um dos lados tem perda de vidas? Como se aceita que a agressão seja equiparada à oposição? Quem aceita essa narrativa pode ser considerado realmente isento?

Rosana Pinheiro-Machado: Eu acho que essa questão da polarização é sempre muito difícil de tratar. É claro que desde 2013 a gente vê o Brasil mais politizado, em grande medida, ou mais dividido entre dois polos: à direita, extrema-direita e o antipetismo; e a esquerda de um modo geral. É claro que existe uma certa divisão ideológica no espectro político, mas a polarização também significa que são dois lados simétricos. E o que a gente vê hoje, e eu concordo totalmente com a sua análise, é de a gente tinha um partido democraticamente eleito, a Dilma Rousseff democraticamente eleita, e a gente vê uma articulação que começa nas ruas para tirar a presidenta, uma armadilha parlamentar que se configura em um golpe parlamentar para tirar uma presidenta democraticamente eleita.

Isso trouxe fraturas para a democracia, fez com que o que a gente tenha uma avanço da extrema-direita e não simplesmente dois lados competindo. O que houve foi um golpe com ascensão de um lado, como vocês mesmo colocam, que tem uma pulsão de morte, uma volta para o discurso autoritário, totalmente antidemocrático, aceitando a liberação das armas e tantas outras questões, incitando discurso de ódio e violência contra as minorias.

O Brasil sempre foi um país extremamente violento no que se refere a uma política genocida contra as minorias. Sempre teve altas taxas de feminicídio, genocídio da população negra e indígena, mas nada como agora. A gente nunca viu nada com discurso autorizado como agora. Então o que a gente observa é um massacre das minorias, um massacre das populações originárias, um massacre das populações indígenas, das populações vulneráveis, periféricas.

O que me assusta e me choca, de determinada maneira, é pensar como que a gente tem, muitas vezes, uma grande parte da imprensa que se nega dar nome aos bois. É dizer, bom, existe um processo, é a ascensão da extrema-direita. Os principais meios do mundo, mainstream mesmo, falam em extrema-direita. Por que no Brasil os meios ainda têm muito cuidado em dizer que isso é extrema-direita, que é autoritarismo, que nós temos um presidente que defende a ditadura militar e um torturador, por exemplo? E que tem diversas pessoas no governo falando do AI-5. Isso para mim fica muito claro e eu tenho chamado de “extremo isentismo”, porque é isso, é tanto medo de nomear e de tentar passar uma certa imparcialidade que está havendo uma tomada de lado, muito clara, que é de se calar diante de atos que são atrocidades. Atos que muitas vezes incentivam a violência e que são antidemocráticos.

Então esse problema do isentismo fragiliza a nossa democracia, quando a gente precisa justamente que as instituições se coloquem em defesa dela, se coloquem em defesa das instituições. E o que está de fundo disso, na minha opinião, é um antipetismo arraigado nas pessoas, e que faz com elas prefiram, mesmo achando ruim, o outro lado, mesmo achando extremo. Mas também acham que o PT não é uma solução, que a volta do PT não é uma solução. No fundo, é um antipetismo que está arraigado nas instituições, ou seja, isso não é isenção dos meios de comunicação.

BdFRS: Porque que tu achas que a direita abandonou a sua face mais light, que era o PSDB, e aderiu ao radicalismo do Bolsonaro. Embora hoje o PSDB aplique o bolsonarismo, seja pela violência do Dória, seja pelo ultraliberalismo do Eduardo Leite?

Rosana: O bolsonarismo é essa junção entre o ultraliberalismo e ultraconservadorismo, aliado ao punitivismo, e autoritarismo. O bolsonarismo é a junção de todos esses fatores. Na minha leitura, um processo fundamental que aconteceu no Brasil foi o escândalo da JBS, e eu já vou explicar porque eu acho que isso é tão fundamental.

Quando houve o impeachment, o PSDB, com Aécio Neves, acreditou que poderia abocanhar, que poderia ter essa oportunidade. O PSDB, os partidos do centrão, o PMDB, por um momento eles acharam que iam se manter no establishment, que iam tirar a Dilma e o Aécio assumiria. Tinha até a brincadeira, quem assume é o Aécio, aquela inconformidade do Aécio de perder as eleições, onde ele até chegou a comemorar a vitória e depois perdeu. Então ficou com aquela ideia de que ele poderia assumir.

Eu não acho que necessariamente houve uma adesão imediata dessa direita tradicional ao bolsonarismo. Eu acho que ela foi engolida pelo bolsonarismo. E ai eu entro com a questão da JBS. Quando houve o impeachment da Dilma, o PSDB achou que poderia se reconfigurar como uma direita que iria assumir o poder. Queria antecipar aqueles dois anos que ela achava que por direito seria dele.

Um momento decisivo em que o Bolsonaro começa a crescer nas pesquisas, tem diversos estudos que mostram isso, é quando há o escândalo da JBS. Porque dali ficaram as imagens, como todo processo da Lava Jato foi passado, foi transmitido, mostrou Aécio, Temer, Dilma. A Lúcia Mury Scalco e eu estávamos em campo naquela época, e o que a gente via era uma percepção muito grande, “bom, é todo mundo farinha do mesmo saco”. O que acontece naquele momento é que o bolsonarismo começa a crescer por seu discurso “radical”. A extrema-direita se colocando como antissistema começa a crescer, porque na percepção popular tinham tirado a Dilma. Mas a gente vê que quem estava articulando o golpe, de alguma maneira, fazia parte, era tudo farinha do mesmo saco. Ou seja, isso foi uma grande oportunidade para alguém com discurso radical, que já estava se alinhavando nas bases populares, principalmente via mídias sociais, via televisão aberta, via participação na internet, o bolsonarismo começa a crescer como uma alternativa a tudo que está aí.

E aí a alternativa do PSDB, como você mencionou, do Eduardo Leite, o próprio PSDB nacional, o próprio Dória, é de fazer essa aliança para se reconfigurar, mas quem perdeu mesmo a eleição, mais do que o PT, foi a direita tradicional. O que ela teve que fazer foi se recompor, fazer alianças com o bolsonarismo, para conseguir espaço de novo. O grande derrotado das eleições foi a direita tradicional. Pelo seu antipetismo também ela vai se realinhando e vai fazendo conexões. Aí tem o Fernando Henrique Cardoso tentando fazer um discurso moderado, dizendo que Bolsonaro é autoritário mas, ao mesmo tempo, dizendo que Dória é um candidato moderado, ou seja, há uma certa aliança possível via ultraliberalismo. E ultraliberalismo em última instância é sempre autoritário, sempre vai precisar de um braço forte do Estado violento para garantir as reformas que quer sempre passar.

"Ultraliberalismo em última instância é sempre autoritário, sempre vai precisar de um braço forte do Estado violento" / Foto: Katia Marko

BdFRS: Por que pessoas que não têm condições de pagar por serviços privados estão defendendo o desmonte do bem-estar social? Por que elas não se enxergam como clientes do serviço público, atendidas pelo serviço público?

Rosana: Essa é uma questão fundamental e que tem que pautar o debate público a partir de agora. É algo que a gente tem que atentar cada vez mais, no sentido de que a gente tem uma população, cerca de 50%, que historicamente está na informalidade. Muitas vezes a gente tende a esquecer de que essas pessoas que estão, em tese, defendendo o desmonte do bem-estar social, foram pessoas que não tiveram, não foram asseguradas pelo bem-estar social. E que estão aí trabalhando de camelô 15 horas por dia, que estão trabalhando agora de Uber, 15 horas por dia. São populações em que boa parte estão na informalidade.

Essa é uma das razões pelo qual o Brasil tem essa trajetória, de uma grande parte da população que não está incluída no mercado de trabalho formal, e é com essas pessoas que um projeto progressista de esquerda tem que trabalhar. Porque a gente tem que pensar em formas de abarcar mais direitos sociais, mais provisão de bens sociais e direitos para essas populações. Porque essas populações sempre se viram desprotegidas pelo Estado que sempre chegou para elas na sua fase mais violenta, nunca para direitos.

Então a esquerda tende a achar que é uma contradição algo que não é, acho que essa é a contradição que a gente tem que pensar. E aí essas populações, que estão historicamente na informalidade, em grande medida vão incorporar um discurso de um certo neoliberalismo por baixo, porque elas sempre estiveram à margem da proteção do Estado, e daqui a pouco elas veem um discurso positivando aquilo que elas fizeram a vida toda, que seria uma lógica da viração.

Essas pessoas começam a incorporar um discurso hegemônico, que é o discurso de se autoempreender, do empreendedor, de quem rala consegue. Porque há um vácuo social, são pessoas que justamente não tem a proteção e não tem essa dignidade que o trabalho dá. Porque quem é trabalhador empregado sabe a dignidade de ter um 13º, a dignidade de ter uma carteira de trabalho, e enquanto isso essas pessoas estão criando a sua identidade fora disso, e em cima de uma identidade de empreendedor. E ai ele vai se constituir como empreendedor e consequentemente taxar os outros de vagabundo, que não estão correndo tanto atrás como ele está.

BdFRS: Teu livro aborda a democratização do consumo promovida pelo PT, e trata também da democratização do acesso às políticas afirmativas. Nesse contexto tu acreditas que se democratizou mais o consumo em detrimento de uma inclusão social mais profunda?

Rosana: Eu acho que o PT democratizou ambos e isso foi um dos problemas também. Acho que são duas coisas diferentes. As cotas universitárias e a inclusão nas universidades, só para dar um exemplo, são umas das maiores conquistas no Brasil contemporâneo e isso incomodou o topo branco da sociedade brasileira, porque deu uma sensação de retirada de direitos humanos. Mas na verdade as camadas médias, as elites brancas não estavam perdendo direitos, contudo elas tiveram uma sensação de perder privilégios, o que não é verdade.

A questão das cotas é extremamente positiva, e estava causando um grande impacto, futuramente poderia causar um impacto maior na democracia brasileira porque a gente teria uma outra sociedade quando essas gerações de cotistas se formassem. Porque a gente já via todo um movimento desses novos alunos repensando estrutura universitária, repensando as estruturas branca das Universidades, por exemplo, e já pensando e trabalhando em reformas curriculares para repensar como a história do Brasil é contada. Ou seja, tem todo um lado que foi de ação afirmativa, de inclusão social, que era muito importante, que estava funcionando muito bem, que a longo prazo a gente ia ver grandes benefícios na sociedade brasileira.

Houve essa conciliação do lulismo com o mercado financeiro, que é a inclusão via consumo, que foi muito importante também para as classes populares. Em uma sociedade servil como o Brasil, quando a gente vê uma mulher negra, doméstica, comprando um celular e dizendo assim para patroa: “eu não preciso mais do seu celular velho porque eu posso comprar um melhor”, isso afeta. A importância inicialmente simbólica disso na estrutura de segregação brasileira é muito grande. Então tem todo um lado da inclusão pelo consumo que é extremamente importante, de autonomia dos sujeitos, do direito a consumir, que a gente tem chamado na nossa pesquisa de “direito ao prazer”, quando as pessoas falam eu tenho direito de usar uma coisa boa.

Por outro lado, isso foi feito dentro de um sistema de contradições, dentro do sistema com um dos maiores juros do mundo, com sistema de endividamento total. Esse sistema funcionou muito bem durante o período de crescimento econômico, mas quando se entra em uma crise, o que a gente vai ver, na verdade, é o colapso desse sistema, porque ele não era sustentável. A inclusão pelo consumo foi muito importante, mas na primeira crise colapsou porque as pessoas estavam endividadas no sistema financeiro com um dos juros mais altos do mundo, e isso trouxe consequências muito sérias durante a crise econômica.

BdFRS: O que faltou então para conciliar essa inclusão, para trabalhar com essas pessoas? Faltou uma educação popular, social, uma política de trabalho nesse sentido?

Rosana: Faltou e não faltou, sempre tem os dois lados. Por um lado a gente vê que faltou tempo também, porque muitas mudanças estavam vindo justamente dessa inclusão universitária, dessa inclusão de novos atores, de uma democratização do ensino superior. Isso traria impactos no sistema educacional como um todo. Por outro lado o que a gente vê, pelo menos na periferia, em que a gente fazia trabalho de campo, é que a escola se mantinha precária, o acesso aos bens públicos, como o posto de saúde, seguiam totalmente precarizados. Ou seja, as pessoas consumiam, mas por outro lado viam a precarização dos bens públicos. Não houve, em grande parte, um processo em que as pessoas sentissem uma grande melhoria no acesso aos bens públicos, o transporte continuava precário, o acesso à saúde, à educação, as escolas totalmente precárias.

Faltou, mas é um período muito curto de tempo para a gente pensar, uma grande reforma na educação, ainda que, por exemplo, tivemos programas extremamente importantes na era Lula, como o Brasil Sorridente. Eu tenho insistido nessa questão dentaria, que é uma das maiores dores que a população brasileira. Havia mudanças nesse sentido, mas foi um período de tempo de governo por uma democracia jovem muito curto, com pouco impacto imediato na provisão de bens públicos, e o que aconteceu foi que, durante a crise, as pessoas só tinham, de fato, a cidadania, via acesso ao consumo: eu sou gente porque eu tenho celular, e não mais porque eu vou em uma reunião, não mais porque eu discuto a participação popular.

Então, também nessa questão, faltou continuar uma política de base, de mobilização popular nas periferias, faltou lembrar da importância de se cultivar a política no dia a dia, nos fóruns comunitários, e lembrar que o consumo é uma ética extremamente individualista. Uma pessoa quando consome, ela consome para si, é extremamente importante em termos de autovalor, foi extremamente importante, como eu disse quando comecei essa resposta, mas por outro lado é algo extremamente individualizado.

Em uma crise de consumo, em que esse consumo não vem junto com uma política de ampla mobilização popular mesmo, ou de espaços onde as pessoas pudessem viver a crise coletivamente, isso colapsa. Então a gente vê o quanto de desdemocratização há nesse processo.

BdFRS: As sementes desse conservadorismo estavam presentes em 2013?

Rosana: Estavam. Estavam presente há muito tempo, a gente percebe que desde os anos 2000, desde a ascensão do PT. De alguma maneira, o ant-petismo sempre esteve presente. Eu vou dar um exemplo sobre isso: as primeiras vezes que eu fui atacada, foi no final de 2013, por blogueiros da Veja. Foi antes de começar os protestos do impeachment, o que eu percebia já naquela época. O tamanho dos ataques foi tão grande, quando a gente olhava aqueles milhares de comentários, já com uma horda pronta, raivosa, fascista e pronta para atacar, aquilo já estava fomentado. E a gente tem uma história de uma extrema-direita que vai se consolidando no Brasil, em grande medida por figuras blogueiras que estavam lá na Veja, a direita e a extrema-direita se organizando no campo, se mobilizando e já escrevendo, e a gente achando que estava tudo bem.

Quando a gente vê o que aconteceu em junho de 2013, e a gente está falando aqui desde Porto Alegre, e no Brasil, tudo começa com pautas de esquerda, são mobilizadas pelos grupos de esquerda. Mas que lá no final de junho já tinha um grande contingente da população que leu aquilo como manifestações antipartidárias, ou seja, antipetistas. Isso já estava pronto para explodir. Por isso, muitas vezes, eu penso que é uma ilusão achar que a gente poderia ter mudado algumas coisas se tivesse atacado e enfrentado esse problema desde o início, que é o antipetismo, o fascismo e em última instância esse classicismo e racismo da sociedade brasileira.

BdFRS: Falando um pouco da tua pesquisa e da Lúcia sobre os eleitores do Bolsonaro, como eles estão agora? E dentro dessa questão, como entra a ascensão das igrejas?

Rosana: Temos que dividir os eleitores do Bolsonaro em dois grandes grupos, e isso já estava presente lá na pesquisa. Claro que vai ter pessoas como a antropóloga Isabela Kalil http://www.isabelakalil.com/que vai dividir entre pautas, entre 16 perfis. Mas para começo de conversa, a gente tem que pensar mais ou menos entre quem é bolsonarista raiz, aquele que segue com Bolsonaro, aceita tudo e quer mais radicalização; e aquele bolsonarista que votou no Bolsonaro, porque nem é bolsonarista, e que seria aquela pessoa que votou porque estava desiludida, porque achava que na política eram todos farinha do mesmo saco. Para essa pessoa, não importa se ele é radical, mas tem que ter uma mudança. Esse é o eleitor de periferia que queria alguma mudança a qualquer preço. Não só de periferia, mas também uma classe trabalhadora empobrecida, populações que queriam uma mudança a curto prazo.

Esse grupo foi o primeiro que caiu fora, esse é o primeiro grupo que depositou grande esperança no desejo de grande transformação. Esse grupo é aquele que continua dirigindo Uber 15 horas por dia, continua sendo assaltado, que não viu melhoria e que começou a ver as notícias do Bolsonaro. Eu acompanhei bem um episódio com meus interlocutores - quando houve a questão do Golden Shower do Bolsonaro, ele publicou aquele twitter absurdo e as pessoas reagiram assim: “eu estou aqui ferrado e esse homem está falando essas porcarias”. Para esses já caiu em uma vala de que são todos ruins. Mas o que preocupa é esse bolsonarista raiz, que não era muito o eleitor que eu e a Lúcia pesquisávamos, a gente pesquisava o eleitor que foi muito em uma onda de contágio do final da eleição, que foi tomado muito por fake news.

Esse leitor raiz, eu e Lúcia, as vezes a gente até procurava não entrevistar porque até tinha medo. Às vezes porque era um pouco assim, aquele sujeito que falava “você é PT, é isso, se é PT sai da minha casa”. Esse eleitor é o mesmo que está achando que tudo que não está melhorando na vida dele é porque não estão deixando Bolsonaro trabalhar. Esse é o eleitor que a gente tem que se preocupar, porque é um eleitor que está pedindo mais reformas antidemocráticas, pedindo para fechar o STF, fechar o congresso, porque acredita que Bolsonaro é uma vítima do establishment, que não está conseguindo trabalhar porque não estão deixando ele trabalhar. O eleitor bolsonarista raiz, aquele de 7 a 15% que Bolsonaro tinha desde o início, ele continua com Bolsonaro, e apesar de ser um número pequeno, é muito mobilizado. E consegue vencer uma eleição, quando o outro lado, quando uma grande parte que poderia decidir pela democracia optou pelo mais pelo antipetismo do que a democracia.

"Grande parte que poderia decidir pela democracia optou pelo mais pelo antipetismo do que a democracia"

BdFRS: Em relação às igrejas, você observou que elas não estavam tão presentes no início.

Rosana: A questão das igrejas é fundamental para entender a ascensão e aliança com o bolsonarismo, aliança que ficou cada vez mais clara, no último ano de eleição. Eu falo que na nossa pesquisa isso não aparecia muito porque era muito silenciosa. Mas em diversas periferias do Brasil, e não só periferia, foi decisiva. A nossa pesquisa tinha uma especificidade própria de Porto Alegre, muito interessante, que é a grande presença de terreiros no Partenon e no Morro da Cruz, onde as pessoas frequentavam diversas igrejas, frequentavam o terreiro, iam em uma igreja que abria, e a gente via aquilo muito tímido. A Lúcia, que continua em campo porque tem uma ONG lá, observa muito claramente como no último ano houve de fato uma maior presença das igrejas, porque não é só aquela igreja que antigamente dizia você tem que trabalhar para conseguir dinheiro e vencer na vida da lógica empreendedora, mas é uma igreja muito alinhada com o presidente.

É claro que todo mundo teve que fazer alianças com as igrejas evangélicas, e com o PT não foi diferente, para ganhar as eleições. Mas eu tenho um colega, o Ronaldo de Almeida, que vem falando que há, de fato, nos últimos tempos, uma espécie de formação, quase como se fosse uma formação de exército mesmo, e essa massa passa atuar de forma mais como movimento e pronta para derrotar e aniquilar o inimigo. Essa evangelização que cresce no Brasil todo é uma evangelização política que teve depois, o marco do apoio do Edir Macedo. Logo depois, com o #Elenão é que a gente vê que isso vai muito além das igrejas, porque elas sempre estiveram presentes no Brasil. Mas o que a gente vê, hoje, é uma aliança dela com ideias como a escola sem partido, a gente vê essa capilarização da política no cotidiano, da professora na escola em que vai lá uma pessoa e diz “eu não quero que meu filho estude educação sexual”, ou coisas desse tipo.

É uma capilarização que cruza na política, mas não só a política. A bancada evangélica sempre existiu, mas agora atinge a política da escola, atinge a micropolítica da periferia, isso eu acho que é algo inédito e que as pessoas estão prontas para agirem como defensores dessa lógica.

BdFRS: Você falou no #Elenão. Como feminista, como você avalia esse movimento na América Latina e no Brasil, qual a importância dele no atual contexto?

Rosana: Nunca foi tão importante a gente olhar para a movimentação das mulheres do mundo todo. A gente tem visto o feminismo se reinventar pelo mundo. Na África, a gente vê pequenos coletivos de mulheres em Moçambique. Na China, na Coreia, na Argentina com o movimento pelo aborto legal. No Chile, as estudantes secundaristas. No Brasil, o #Elenão, que foi um movimento de extrema importância, o maior movimento de mulheres na história do país e que trouxe uma outra forma de fazer política nas ruas.

O que a gente está vendo hoje no Brasil e no mundo, em grande medida, é o autoritarismo junto com uma lógica misógina. Um retorno, nem dá para dizer retorno porque o patriarcado nunca foi embora, mas uma defesa do patriarcado em nível global, e de pensadores de extrema-direita defendendo teorias misóginas. E ao mesmo tempo as mulheres lutando, não só por direitos reprodutivos, mas também lutando pela democracia, porque esse projeto autoritário passa inevitavelmente por um ataque aos direitos das mulheres. Porque são grupos autoritários, como o Bolsonaro, vinculados a uma ideia específica de família, do lugar do homem nessa família e um papel específico da mulher, que não é o papel de que nós mulheres viemos lutando há tantas décadas, de autonomia e liberdade.

O que há no mundo hoje, na extrema-direita, é uma luta para que essa curva da história ascendente dos direitos das mulheres retroceda, só que a gente não vai deixar que isso aconteça. Tem uma passagem do autor e sociólogo Michael Kimmel que eu gosto, onde ele escreve que se tem uma justiça histórica em todo esse aspecto, em toda essa movimentação, com avanço da misoginia e com essa força do autoritarismo machista, é de que a curva das mulheres, dos direitos das mulheres é uma curva que não tem volta, é uma curva ascendente. É nisso que temos que focar. E o papel das mulheres hoje é ainda mais importante do que nunca no sentido de que o ataque a democracia é um ataque que passa por forças retrógradas, que passa por uma grande tentativa de manter uma família patriarcal, com poder soberano dos homens.

Manifestação #EleNão em Porto Alegre / Foto: Fabiana Reinholz

BdFRS: Democracia que serena, termina?

Rosana: A gente por muito tempo viveu no Brasil uma democracia precária. Eu sempre penso que essa é uma questão extremamente complexa, por um lado a gente vê os números de genocídio da população negra no Brasil, a gente vê Belo Monte, os números de feminicídio. Quando a gente fala da população periférica, quando a gente vai ali no Morro da Cruz, por exemplo, é que a gente vê quando é que o Estado chega lá, o que é democracia. A gente teve uma democracia que funcionava para poucos, sempre uma democracia precária.

Por outro lado essa democracia precária que a gente tinha era muito importante. Era graças à possibilidade dos movimentos negros, dos movimentos das mulheres pedirem mais democracia e se apropriarem dos movimentos sociais e lutarem por reformas, por cotas. Porque todas as conquistas democráticas que nós alcançamos nos últimos anos são conquistas dos movimentos sociais. Isso tudo é o processo democrático.

Então ao mesmo tempo que a gente tinha uma democracia nas periferias que era precária, em que o Estado só chegava no mesmo autoritarismo, com as mesmas técnicas de tortura de décadas atrás, o fato da gente ter formalmente uma democracia, uma crença na democracia, permitia que os grupos quilombolas e indígenas pressionassem o governo e não fossem perseguidos e assassinados por isso. E é essa democracia que a gente está perdendo hoje. A democracia brasileira sempre foi precária, mas eu defendo e me alio a diversos ativistas e intelectuais que pensam que a gente tem que lutar hoje por mais democracia. É por essa possibilidade de que os movimentos sociais cravar o seu espaço e pedir por mais democracia. Porque, em última instância, é o que a gente estava vendo nas universidades, que talvez é o espaço onde a gente via maior democratização. Estamos vendo agora um ataque às universidades, e não é à toa que elas estão sendo atacadas e destruídas. As universidades são uma das instituições democráticas mais importantes que nós temos.

A gente tem que lutar sim por mais democracia, mesmo que nossa democracia, que as nossas universidades sejam problemáticas, mesmo que nosso judiciário seja problemático, mesmo que nossa imprensa seja problemática. Hoje a gente se encontra nessa posição de ter que denunciar que a gente tinha uma democracia precária, que nossas instituições funcionavam de maneira elitista, mas trabalhar para que ela se mantenha viva, para que ela possa resistir, e principalmente ajudar a pensar no futuro das próximas gerações. Porque hoje a gente tem que lutar pelas universidades, lutar pelo judiciário, para garantir o futuro democrático das próximas gerações.

BdFRS: Esse mês se comemora os 71 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Como garantir esses direitos em época de bolsonarismo?

Rosana: É muito difícil, não há nenhuma possibilidade de garantir Direitos Humanos sob o ponto de vista de políticas nacionais. O que a gente vê hoje é um desmonte de todas as possibilidades, não só desmonte, mas com uma polícia autorizada a matar. Uma polícia que não apenas está autorizada matar, mas que se ela mata é coroada, como aquela cena do Witzel comemorando. A polícia brasileira, que já era uma das que mais matam no mundo, hoje tem coroamento dessa lógica, como se isso fosse resolver.

Então como garantir direitos humanos? Só via movimento social, só via resistência, só via proteção dos grupos, proteção coletiva, porque via institucional é muito difícil que se consiga. Mas ainda as instituições, mesmo que precariamente, estão aí, e a gente tem que pressionar. Nunca foi tão importante os movimentos sociais pressionarem as instituições, e, mais do que nunca, contar com apoio internacional para denunciar e constranger as instituições brasileiras A gente precisa de apoio transnacional, a gente precisa de apoio de todas as lutas, lutas indígenas, lutas latino-americanas, luta das mulheres, e se valer de todas as instituições intergovernamentais para conseguir resistir a esses três anos.

Se há como garantir Direitos Humanos? O que a gente está vendo hoje é um genocídio da população indígena no norte do país, e nem visibilidade a gente consegue no âmbito nacional, é muito difícil e a gente precisa de mais e mais articulação internacional para conseguir dar visibilidade ao que nem aparece hoje na mídia internacional, que é o amplo assassinato de ativistas que tem tido no norte do país, de indígenas, essa violência invisível que ocorre todos os dias no Brasil e que é legitimada por um plano de governo.

"Como garantir direitos humanos? Só via movimento social, só via resistência" / Foto: Katia Marko

BdFRS: Talvez amanhã vai ser maior?

Rosana: Tem que ser maior, porque quando me perguntam “Rosana você acredita que vai ser maior?”, tem que ser, a gente tem que lutar para que seja, porque o cenário é muito difícil, não é um cenário de otimismo. Mas a gente precisa acreditar que a gente pode reverter esse quadro, porque, isso é um princípio Freireano, não existe luta sem que a gente acredite na possibilidade de transformação. O Brasil nunca foi fácil para as populações negras, a gente passou por anos de ditadura e tortura, os processos se transformam, a gente vê hoje um retorno, mas algo novo, um tipo de autoritarismo, de censura, de violência que é muito forte, mas também é nova porque tem toda uma fachada democrática. E os ciclos com resistência e com movimentos sociais na luta, a gente precisa ter esperança que a gente possa reverter esse ciclo porque senão a gente adoece, e é isso que o neoliberalismo, que o autoritarismo quer, que a gente sinta medo, que a gente adoeça. Há um grande pânico das multidões nas ruas, porque que as multidões nas ruas podem transformar mundos; um grande medo que o Brasil repita o Chile, que as mulheres vão pedir aborto como pediram na Argentina, há um pânico disso.

O amanhã vai ser maior remete a junho 2013, ciclo de insurgências que cresceu no Brasil desde junho de 2013, que versa sobre uma ascensão da extrema-direita, mas também sobre um Brasil politizado, sobre um Brasil que vai às ruas e sobre a ascensão do feminismo, sobre a proliferação de coletivos de movimento negro, LGBT, feministas. E que essa resistência precisa fazer um cordão e que tem feito um cordão de contenção democrática, pressionando as instituições, denunciando o genocídio, denunciando a violência autoritária. Amanhã vai ser maior, e melhor, se refere a esse processo, a essa necessidade da gente estar na luta e acreditar que é possível transformar, de que essa é uma parte do processo, uma parte terrível do processo. O cenário é muito ruim, ele tende a ficar ruim nos próximos anos, mas que só a luta e a resistência é capaz de reverter esse cenário.

Edição: Marcelo Ferreira