Coluna

Sua flecha perfura o céu, mas a nossa está na órbita

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We Will Be Better (Seremos melhores), 1995
We Will Be Better (Seremos melhores), 1995 - Imagem: Yu Youhan
EUA e China: as competições continuarão, a instabilidade permanecerá

China e Estados Unidos, na última quarta-feira (15), concordaram em suspender sua guerra comercial em larga escala. Desde fevereiro de 2018, os EUA passaram a aplicar tarifas sobre produtos chineses que entram no mercado estadunidense, ao que se seguiu uma retaliação da China. Esse jogo de toma lá, dá cá continuou por quase dois anos, causando grandes perturbações na cadeia de valor global. Em outubro de 2019, relatório do Fundo Monetário Internacional (FMI) feito pelo G20 informou que o PIB global teve queda de 0,8% somente pela tarifação de mercadorias como alumínio, aço, soja e peças de carros praticadas entre os EUA e a China. Os ataques ocidentais à tecnologia chinesa 5G -- e à empresa de tecnologia Huawei -- fazem parte da pressão sobre a China para que esta ceda diante da ordem liderada pelos EUA. Mas a China não se curvou. Como prelúdio ao acordo da “fase um”, o Departamento do Tesouro dos Estados Unidos parou de chamar a China de “manipuladora de moeda”, um termo que assombra o país asiático há décadas.

A suspensão da guerra comercial vem com um acordo da “fase um”, cujo texto inclui nove capítulos sobre tópicos como direitos de propriedade intelectual sobre serviços financeiros. Mais significativamente, a China concordou em parar de pedir às empresas que investem no país que compartilhem sua tecnologia; esse é um grande diferencial do modelo chinês de desenvolvimento. Esse acordo é apenas a primeira etapa de um processo contínuo de negociações e confrontos, que deverá continuar por muito tempo. Se a “fase um” for bem e se os mecanismos de implementação e diálogo funcionarem, os dois países passarão para a “fase dois”. Diplomatas chineses dizem que não preveem um retorno imediato ao período anterior ao confronto, ou seja, antes do início da guerra comercial, em fevereiro de 2018.

As notícias de um possível acordo comercial imediatamente levaram o FMI a revisar sua previsão de crescimento para 2020 para a China de 5,8% para 6%. O secretário do Tesouro dos EUA, Steven Mnuchin, disse que o PIB dos EUA seria de 2,5% em 2020 (embora o FMI continue prevendo 1,9%). É provável que as baixas expectativas para a economia global (crescimento de 2,5% do PIB) também possam ser revisadas, embora as previsões de uma forte contração global permaneçam intactas. O CFO Signals, da Deloitte, para o quarto trimestre de 2019, sugere que as empresas estadunidenses começaram a restringir ainda mais os investimentos, antecipando uma séria desaceleração -- mas não uma recessão -- da economia. As empresas perderam pelo menos 46 bilhões de dólares como consequência da guerra comercial iniciada pelo presidente Donald Trump, em fevereiro de 2018. A pressão das empresas na Casa Branca e a necessidade de Trump de fazer de sua “vitória” na guerra comercial um trunfo eleitoral levaram os EUA para a mesa. No quarto trimestre de 2018, a taxa de crescimento econômico da China era a mais lenta desde 1990, razão pela qual estava disposta a discutir questões pendentes desde fevereiro de 2018.

Shi Guorui, The Yangtze River (O rio Yangtze), 2013.

No nosso dossiê n. 24 O mundo oscila entre crises e protestos, abordamos a discussão sobre um novo “mundo bipolar”. É amplamente reconhecido que o poder dos EUA diminuiu desde o ataque ilegal ao Iraque em 2003 e desde a crise financeira mundial de 2007-08; ao mesmo tempo, é difícil negar o rápido crescimento da economia da China e sua crescente importância no cenário mundial. Há uma década, quando China e Rússia se uniram ao Brasil, Índia e África do Sul para formar o BRICS, parecia que a arquitetura global estava indo da unipolaridade dos EUA (com seus aliados) para a multipolaridade; mas, com o aprofundamento da crise em países como Brasil e Índia, a nova arquitetura global -- segundo o Instituto de Relações Internacionais da Universidade Tsinghua, na China, -- será bipolar, com EUA e China ocupando os dois polos da ordem global.

As taxas de crescimento da China desde o início da era das reformas, em 1978, permanecem surpreendentes. A tentativa de explicar isso gerou uma literatura enorme, algumas apenas parcialmente explicativas, mas a maior parte recheada de clichês. O professor Wang Hui, da Universidade de Tsinghua, sugere que a estrutura política da China não segue os padrões neoliberais ortodoxos, mas emergiu a partir do compromisso do Partido Comunista Chinês com a soberania, a partir dos imensos avanços em saúde e educação nas primeiras décadas do período revolucionário, do aprimoramento da economia pela economia socialista de mercadorias daquele período, das lutas sustentadas no campo para transformar as relações com a posse da terra, e do profundo pragmatismo dos comunistas (“atravessar o rio sentindo as pedras”). O professor Hui adverte que o estresse da sociedade de mercado começou a gerar novas e perigosas contradições para a China. Uma das contradições esmagadoras são as ameaças dos EUA.

Zhang Xiaogang, Bloodline – Big Family no. 4 (Linaje – Grande família nº 4), 1995.

Os Estados Unidos -- que têm o hábito da dominação -- tentaram ao máximo impedir e lidar com o crescente papel global da China. Lidar com a China significa intimidá-la para que permaneça subordinada aos interesses econômicos dos EUA. Washington acusou Pequim de manipulação de moeda e tentou fazer com que a China revisasse sua moeda em benefício dos Estados Unidos; isso não ocorreu e esse fracasso é um sinal de que a China não se curvará à autoridade dos EUA. As acusações sobre a moeda foram seguidas rapidamente por alegações de que a China havia forçado transferências de tecnologia ou roubado propriedade intelectual, de que impedia o acesso a serviços financeiros e de que não cortaria seus subsídios industriais. Cada presidente dos EUA, ao longo da década passada -- George W. Bush, Barack Obama e Donald Trump --, acelerou as acusações contra a China e a retratou como tendo avançado inteiramente por meio da trapaça.

Quando a China se recusou a aceitar as demandas dos EUA, e quando continuou a desenvolver seu projeto econômico -- a Iniciativa do Cinturão e Rota --, os Estados Unidos passaram a ameaçá-la política e militarmente em vários eixos, alguns deles desenvolvidos por Wu Xinbo, decano da Instituto de Estudos Internacionais da Universidade de Fudan.

1. Estratégia do Indo-Pacífico. Em 2017, Estados Unidos e Índia começaram a desenvolver uma estratégia que uniria esses dois países contra a Iniciativa do Cinturão e Rota (ao longo da Eurásia) e a Iniciativa Colar de Pérolas (Oceano Índico). O primeiro documento sobre essa estratégia, produzido pelo Departamento de Defesa dos EUA, em junho de 2019, aponta o dedo para China e diz que “procura reordenar a região a seu favor, alavancando a modernização militar, influenciar operações e praticar economia predatória para coagir outras nações”. Os Estados Unidos e a Índia -- juntamente com o Japão e outros Estados menores -- devem criar um bloco para impedir o surgimento da China como potência continental e global. Não é à toa que o departamento de defesa dos EUA reclama de “operações de influência” e “economia predatória”, ambas entendidas de perto como políticas dos EUA (incluindo a própria Estratégia Indo-Pacífico).

2. O uso de Taiwan. O documento Indo-Pacífico promove a defesa de Taiwan como um pilar essencial da estratégia dos EUA. A China, há muito tempo, insiste no isolamento diplomático de Taiwan e por sua eventual incorporação. Como não possui uma embaixada em Washington, Taiwan tem -- desde 1971 -- um Conselho de Coordenação para os Assuntos da América do Norte e o Escritório de Representação Econômica e Cultural de Taipei; Trump mudou para Conselho de Taiwan para Assuntos dos EUA, um nome que irritou Pequim. Trump e seus funcionários não apenas disseram que gostariam de ampliar as relações EUA-Taiwan; mas venderam caças F-16 a Taiwan e apoiaram totalmente a reeleição de Tsai Ing-wen do Partido Progressista Democrático -- que afirma a independência de Taiwan da China -- nas eleições presidenciais de janeiro de 2020.

Liu Bolin, Hiding in New York No. 9 – Gun Rack (Escondido em Nova Iorque Nº 9 – Armero), 2013.

3. Hong Kong e Xinjiang. O documento Indo-Pacífico do Departamento de Defesa dos EUA diz que os EUA -- e a Índia -- expressam “profunda preocupação” com o destino da população muçulmana na China; ao mesmo tempo, os EUA dizem apoiar os protestos em Hong Kong. A preocupação com os muçulmanos chineses, vindo dos EUA, não é crível, dada a própria postura de Trump diante dos muçulmanos; no caso da Índia, o primeiro-ministro Narendra Modi conduz uma política de cidadania e refugiados que é claramente antimuçulmana. Os Estados Unidos e seus aliados usam os casos de Hong Kong e Xinjiang para pressionar a China; as pessoas em Hong Kong e Xinjiang irão se iludir se acreditarem que os EUA realmente se preocupam com a democracia e os muçulmanos.

Ferrovia Tanzam. Em 1965, a pedido de vários movimentos de libertação nacional e governos no leste da África, a República Popular da China começou a trabalhar para construir a Ferrovia Tanzam ou a Ferrovia Grande Uhuru. Esta ferrovia cortou antigas fronteiras coloniais que isolavam a Zâmbia e mantinham a Tanzânia do interior do continente. Mao disse a Julius Nyerere da Tanzânia que - apesar da própria pobreza da China - como um projeto de libertação nacional, a Revolução Chinesa tinha o dever de ajudar seus camaradas na África a construir a ferrovia mais longa do continente. Foi isso que eles fizeram.

4. China na África. Na década passada, os EUA e os europeus reclamaram que a China é a nova potência colonial na África. É verdade que o investimento chinês na África aumentou astronomicamente, mas em muitos países o principal parceiro econômico continua sendo o antigo adversário colonial. No entanto, essa narrativa da China como potência colonial não é sobre fatos, mas serve ao propósito de depreciar a estratégia comercial da China no Sul Global e o desafio que ela representa à hegemonia dos EUA e de seus aliados. O procedimento real da China está bem descrito no Relatório de Desenvolvimento Humano de 2013: “A China está concedendo empréstimos preferenciais e estabelecendo programas de treinamento para modernizar os setores de vestuário e têxtil nos países africanos. A China incentivou suas indústrias maduras, como o couro, a se aproximarem da cadeia de suprimentos na África e suas modernas empresas de telecomunicações, produtos farmacêuticos, eletrônicos e construção a entrar em joint ventures com empresas africanas”. Alguns anos atrás, perguntei ao ex-ministro das Relações Exteriores da Tanzânia, Ibrahim Kaduma, o que ele pensava dos interesses comerciais chineses na África. “Os Estados africanos precisam apresentar sua própria avaliação do caminho a seguir”, não devem ser guiados pelo medo fomentado pelo Ocidente, disse.

Ta Men, Snow (Neve), 2016.

Desde fevereiro de 2018, vários mecanismos de solução de conflitos -- incluindo o Diálogo Econômico Estratégico -- estabelecido pelos EUA e pela China não funcionaram. O acordo mais recente da “fase um” cria novas plataformas para discussão e debate e fornece um roteiro para resolver o caos desencadeado por essa guerra comercial. Mas esse acordo é um cessar-fogo -- não um tratado de paz. As competições continuarão; a instabilidade permanecerá. “Caos e desordem”, como escrevem os estudiosos da Universidade Tsinghua, virão a seguir.

Edição: Vivian Fernandes