Carcére

Em dois anos, nenhum agente de estado foi responsabilizado por torturas em presídios

Dados são da Pastoral Carcerária, divulgado nesta quinta; para especialistas, a prática é endêmica e estrutural ao siste

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |
Em apenas 22% dos casos foi instaurado inquérito policial em casos de tortura, aponta relatório
Em apenas 22% dos casos foi instaurado inquérito policial em casos de tortura, aponta relatório - Wilson Dias/ Agência Brasil

De 105 casos de torturas em presídios acompanhados pela Pastoral Carcerária entre 2014 e 2015, nenhum agente público ou do Estado foi punido e nenhuma ação indenizatória foi proposta. O dado é parte do relatório “Tortura em tempos de encarceramento em massa”, publicado nesta quinta-feira (20). 

Em apenas 22% dos casos foi instaurado inquérito policial, o que a Pastoral pondera ser uma medida básica, e em apenas 3% dos casos foi proposta ação civil pública para lidar com as situações estruturais denunciadas. Nenhum procedimento foi instaurado ou informado em um quinto dos casos.

Apenas um servidor recebeu uma repreensão por escrito, pelo simples fato de ter descumprido normas internas, que determinavam o encaminhamento imediato da vítima para a realização de exame de corpo de delito. 

Para Paulo Malvezzi, assessor jurídico da Pastoral e quem organizou o relatório, o estudo objetiva mudar a forma como se entende e enfrenta a tortura, um processo "endêmico" e intrinsecamente relacionado ao encarceramento em massa. O advogado definiu a prática como "sofrimento agudo com um fim específico de discriminação e praticada por agentes públicos" e que ocorrem desde o momento da detenção à humilhações na penitenciária e superlotação de celas, por exemplo. “A experiência prisional é uma experiência de tortura”, sentenciou Malvezzi.

Mesmo ampliando a concepção de tortura para o estudo, 66% das denúncias envolvem agressão física. Entre as práticas estão castigos em grupo, privação de banho de sol, uso de armas menos letais no interior dos presídios, como spray de pimenta, espancamento, violências sexuais e estupros, humilhações verbais e um caso de morte entre os analisados.

Com relação à apuração e andamento das denúncias encaminhadas, o relatório mostra que em menos de um terço dos casos as vítimas foram ouvidas pelo Ministério Público (MP), Judiciário ou Defensoria Pública, e a totalidade dos exames de corpo delito realizados estavam em desacordo com as normas e padrões recomendados. Em quase metade dos casos, houve desqualificação das denúncias feitas pelos presos.

Outro dado destacado pelo assessor da Pastoral é o fato de 43% das denúncias envolverem vítimas mulheres – elas representam apenas 5,8% da população carcerária, segundo dados do Departamento Penitenciário Nacional de dezembro de 2014. Segundo Malvezzi, os dados indicam elementos de vulnerabilidade das presas que precisam ser levados em conta. Abandono familiar sofrido pelas presas, invisibilidade social, violências sexuais e a ausência de políticas públicas específicas são alguns destes fatores.

Os presídios mistos ainda representam 17% do total de unidades prisionais, mesmo que sua existência seja ilegal.

Conclusões

Segundo o relatório, 17% das vítimas são reincidentes em casos de torturas e retaliações. Malvezzi acredita que a responsabilização criminal de agentes envolvidos nessas práticas "fetichiza a via jurídica" como solução e propõe que a falta de punição promove a tortura, quando ela é estrutural. Para ele, a solução do impasse passa pelo desencarceramento e descriminalização de condutas como as que se relacionam às drogas.

Para o Padre Valdir, coordenador nacional da Pastoral, o estudo enfatiza que o "sistema corretor não cumpre seu papel em nível nacional". A conclusão é que as inovações legais e institucionais, como a criação da Defensoria Pública, não contribuíram para a erradicação da prática. O relatório aponta que o MP atuou de forma adequada em apenas 1% dos casos, o Judiciário em 6% e a Defensoria Pública, 10%.

Segundo ele, os números indicam que os conselhos federais, órgãos federais e entidades que fazem recomendações para os estados não têm sido efetivos. "Ninguém concorda hoje com  a escravidão, com extermínio da população indígena, mas em breve seremos condenados pelas gerações futuras por convivermos harmoniosamente e pacificamente com uma juventude periférica enclausurada em condições piores que animais", finalizou Valdir.

A Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos registrou mais de 4 mil casos de tortura em presídios nos últimos dois anos. A amostragem da pesquisa da Pastoral examinou casos em 16 estados, no DF e em 47 municípios. O estudo foi realizado com apoio da Oak Foundation e do Fundo Brasil de Direitos Humanos, fruto de uma parceria com o Fundo de Fomento à Pesquisa da Universidade Presbiteriana Mackenzie.

Edição: José Eduardo Bernardes

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