Legislativo

'Dez Medidas Contra a Corrupção' foram vendidas de forma publicitária, diz defensor

Integrante da Defensoria do RJ afirma que PL 4850 é ineficiente e trará efeitos negativos para toda a sociedade

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |
Rodrigo Janot, Procurador-Geral da República, é um dos defensores da proposta
Rodrigo Janot, Procurador-Geral da República, é um dos defensores da proposta - Marcelo Camargo / Agência Brasil

A comissão especial que analisa as "Dez Medidas Contra a Corrupção", pensadas pelo Ministério Público e convertidas em Projeto de Lei (PL) 4850/2016, aprovou nesta quarta-feira (23), o texto do relator deputado Onyx Lorenzoni (DEM-RS), mesmo sem votar todos os destaques inclusos no PL.

Por trás do nome da proposta, que parece focar crimes do colarinho branco envolvendo políticos profissionais, há alterações profundas no modo de funcionamento do processo penal brasileiro. Em entrevista ao Brasil de Fato, Ricardo André de Souza, sub-coordenador de Defesa Criminal da Defensoria Pública do Rio de Janeiro, explica que o PL propõe mudanças que atingem toda a sociedade.

"O PL vem sendo vendido como dez medidas, mas não se tratam de apenas dez, tampouco se restrigem ao combate à corrupção, porque mexem em questões gerais. Essa é uma primeira crítica, a forma publicitária como vem sendo vendido", critica Souza. "Não estamos advogando a impunidade. Não se trata disso, mas sim de garantir o devido processo legal, o direito de defesa e o julgamento justo".

Souza critica a maneira apressada como o debate vem sendo feito: "Estamos vivendo um contexto delicado, extraordinário. Os próprios autores do Projeto reconhecem isso. Querem aproveitar essa conjuntura para aprovar uma legislação igualmente extraordinária. De exceção em exceção a gente vai construindo um Estado de Exceção". Como parte de uma instituição cujo objetivo é a defesa de pessoas sem condições de arcar com os custos de um advogado, ele teme que os princípio atingidos pela proposta, caso seja aprovada, sejam justamente os mais pobres.

A Defensoria do Rio lançou a campanha "Dez Medidas em Xeque", que aponta a possibilidade de que ilegalidades e medidas arbitrárias se tornem ainda mais recorrentes caso o PL se consolide. O órgão afirma que medidas como a restrição ao Habeas Corpus, significam mutilar "garantias previstas na Constituição". "Pode-se dizer, sem exagerar, que a proposta faz o que o artigo 10 do Ato Institucional número 5 fez na ditadura militar, ao suspender esse tão importante instrumento", diz a página da campanha. 

Souza também explica porque a instituição na qual trabalha se opõe ao teor do PL 4850. Confira abaixo: 

Brasil de Fato - A campanha "Dez Medidas Em Xeque" é uma campanha institucional ou de alguns integrantes da Defensoria?

Ricardo André de Souza - É uma iniciativa institucional da Defensoria Pública. Nós observamos que o Projeto [de Lei] 4850 [de 2016], que vem sendo anunciado como "As Dez Medidas Contra a Corrupção" de forma publicitária, continha propostas de modificação legislativas estruturais do Código de Processo Penal e que isso afetaria todo o processo e direito penal brasileiro. Afetando, fundamentalmente, aqueles que são nossa clientela, a maioria das pessoas privadas de liberdade no país.

O projeto recrudesce a legislação penal e processual, razão pela qual reunimos um grupo de 17 defensores e, com apoio institucional, se debruçaram sobre o projeto e o estudaram, confirmando que se trata de um retrocesso do ponto de vista do que está consagrado não só na Constituição, mas também na tradição jurídica brasileira.

Qual a principal crítica da Defensoria do Rio ao PL 4850?

O PL vem sendo vendido como dez medidas, mas não se tratam de apenas dez, tampouco se restrigem ao combate à corrupção, porque mexem em questões gerais. Essa é uma primeira crítica, a forma publicitária como vem sendo vendido.

Quanto ao conteúdo, o direito penal tem algo a oferecer no combate à corrupção. Coloca a pena de prisão como carro chefe dessa política criminal. O terceiro aspecto e talvez principal, e que nos dá legitimidade para fazer as críticas que fazemos, é que o projeto desconsidera a seletividade inerente ao sistema processual penal. O direito criminal não atinge a todos de maneira igual: mira-se no crime do colarinho branco, que é 1%, mas se vai atingir toda a população brasileira, na medida em que a alteração é para todos os crimes.

Se um PL se diz voltado para o combate à corrupção, mas pode alterar as coisas de forma estrutural, gerando impactos sobre todos, pode-se chegar a conclusão que os autores da proposta consideram toda sociedade brasileira como corrupta, ou inclinada à corrupção.

Quando a gente diz que essas alterações não se restrigem ao combate à corrupção, estamos dizendo que toda sociedade pode ser atingida. São restrições ao direito de defesa e de se defender do poder punitivo estatal.

Não estamos advogando a impunidade. Não se trata disso, mas sim de garantir o devido processo legal, o direito de defesa e o julgamento justo. Quando se restringe o direito ao Habeas Corpus, algo que só ocorreu nos Anos de Chumbo, com o Ato Institucional Número Cinco [AI-5], o que se está ameaçando, diminuindo e limitando são direitos de toda a sociedade brasileira, afinal de contas essa é uma garantia individual prevista na Constituição. São restrições muito drásticas.

Vocês têm acompanhado o debate legislativo em torno da questão?

É preciso que a gente seja justo. Uma análise preliminar do substitutivo apresentado pelo relator do PL acolhe muito de nossas críticas, embora ainda tenhamos muitas críticas. As restrições ao Habeas Corpus diminuíram, bem como os casos de admissão de provas ilícitas. Afastou-se a possibilidade de ampliação da prisão preventiva e também se eliminou o uso de teste de integridade para fins criminais. Mas o Projeto original, que tinha cerca de 70 artigos, agora, no substitutivo, tem mais de 200.

Qual a avaliação em torno do substitutivo?

Esses três pontos que eu coloquei anteriormente continuam presentes no substitutivo. Como eu disse, ele agora tem mais de 200 artigos. É preciso que a gente estude, até para fazer uma crítica abalizada. É igualmente açodada a forma pela qual está se querendo aprová-lo.

Já é pouca a discussão em relação ao projeto original. Agora, o substitutivo - que é maior ainda, com muitos temas complexos, diversas inovações - não pode ser aprovado sem a devida discussão, participação da comunidade jurídica.

Na opinião da Defensoria, o projeto não poderia realmente auxiliar no combate à corrupção?

Falta ainda um amparo em pesquisa científica, em estatísticas que justifiquem essas modificações. Isso é algo que vem ocorrendo ao longo de todas essas propostas de mudança legislativa: quase sempre - para aumentar pena, prazo prescricional, reduzir direito de defesa -, e não é de hoje, não há fundamento científico, apenas discurso que é preciso recrudescer.

Isso não se mostra eficaz. Nós temos a quarta maior população carcerária do mundo, e estamos crescendo enquanto os três primeiros - EUA, China e Rússia - têm reduzido. O que a gente sustenta, e isso é bastante evidente, é que não há uma relação de direta proporcionalidade entre os índices de encarceramento e a melhoria na segurança pública. Ou seja, as ocorrências criminais passam por determinações que não são alcançadas com endurecimento da legislação penal. Mais uma vez, aposta-se no direito penal, para combater a corrupção, quando vemos que outros problemas atacados a partir dessas premissas não são suficientemente solucionados se partindo dessas premissas.

É possível afirmar que o projeto fere a Constituição?

Sem dúvida nenhuma. Há violação expressa ao texto constitucional. Há medidas propostas que a Constituição veda, a realidade não recomenda e, do ponto de vista técnico, são heterodoxas. É justamente por isso que criticamos. Ela fere de morte algumas garantias e direitos fundamentais previstos taxativamente. Além disso, não há qualquer discussão com a sociedade.

É preciso que se diga que algumas dessas medidas, por exemplo, a admissão de prova ilícita quando colhida de boa-fé, foram afastadas. Talvez até porque, de tão absurda e draconiana, ela tenha sido retirada pelo relator.

A campanha "Dez Medidas em Xeque" compara a proposta de limitar o Habeas Corpus com a Ditadura Militar. Você também fez referência a isso. Por que esse instrumento é tão importante?

O Habeas Corpus foi suspenso com o AI-5. Daí decorre nossa preocupação quando se fala em restringi-lo. Ele está previsto na Constituição. Não é um recurso, é uma ação autônoma, um mecanismo de impugnação de decisões largamente utilizado pela defesa, tendo em vista que o Código de Processo Penal é de 1941, com inspiração no texto italiano fascista, e muitas das decisões podem ser impugnadas por recursos da acusação, ao passo que, para as mesmas decisões, não há previsão para a defesa. Nesses casos, se usa o HC como substitutivo de um recurso que não existe. É uma forma muito rápida de superar eventuais ilegalidades a partir de decisões judiciais.

[Nos casos em que se usa o HC substituindo recursos existentes], embora o STF tenha decidido em 2012 a impossibilidade desse expediente, a defesa continuou impetrando. Os Tribunais Superiores passaram a dizer: "Essa não é a via adequada, no entanto, como está se trazendo uma ilegalidade tão evidente, eu concedo a ordem de ofício, ou seja, não pelo Habeas Corpus, mas porque isso chegou ao meu conhecimento". Isso resulta na prática, no resguardo do direito de defesa e da legalidade democrática. O projeto original eliminava essa possibilidade. Por isso, alguns juristas vem chamando o Projeto de "Código da Acusação". Acho que eles têm razão. Ele representa uma visão corporativa do Ministério Público. Pior, uma visão limitada: mira no colarinho branco, mas as restrições são gerais. Em uma frase metafórica eu diria: se pretende matar pardais com tiro de canhão.

O quão desequilibrado o processo penal se tornaria caso o PL seja aprovado?

O substitutivo muda todo dia na comissão. A gente não sabe o que efetivamente vai ser votado e aprovado. Eu faço a crítica do espírito [do PL], que permanece e aposta no direito penal.

Eu não tenho dúvida que isso gerará um desequilíbrio ainda maior no processo penal. Pesquisas científicas indicam que se deve diminuir o encarceramento. Mesmo depois da edição de leis como a das Medidas Cautelares, no sentido de combater a cultura de aprisionar, na operacionalidade prática do sistema de Justiça criminal - que o autores do Projeto parecem ignorar -, o número de encarceramento provisório aumenta. Nesse sentido, se desequilibraria ainda mais, porque o texto é expresso no sentido de limitar ainda mais o direito de defesa.

Boa parte das pessoas não se vê como alvo de um processo penal. Existe a ideia de que defender garantias é proteger criminosos. Por que é importante preservar direitos fundamentais no processo penal?

As garantias e direitos fundamentais não são para bandidos ou inocentes, são de qualquer indivíduo contra o eventual arbítrio estatal.

Essa leitura perde de vista a questão central de que o cidadão, perante o Estado, precisa ser preservado contra eventuais ilegalidades. É a lógica do Direito Penal do Inimigo, a ideia de que certos indivíduos não devem ter os direitos previstos na Constituição, criando uma espécie de subcidadão. O projeto constitucional foi pensado para todos. Defender a Constituição em um momento de excepcionalidade é não só uma obrigação da cidadania, mas também uma missão institucional da Defensoria Pública prevista em lei.

Você criticou a velocidade com que o debate tem sido feito. Poderia explicar mais?

Estamos vivendo um contexto delicado, extraordinário. Os próprios autores do Projeto reconhecem isso. Querem aproveitar essa conjuntura para aprovar uma legislação igualmente extraordinária. De exceção em exceção a gente vai construindo um Estado de Exceção. Isso vai de encontro a toda racionalidade que deve permear o processo legislativo.

Há comissões próprias no Congresso Nacional discutindo modificações no Código Penal e no Código de Processo Penal. Por que não deixar essas matérias para análise dessas comissões? Por que se quer passar de atropelo? Esse açodamento é muito ruim.

Qual seria uma alternativa eficiente de combate à corrupção?

Nossa posição é de resistência a avalanche de recrudescimento penal. Correndo o risco de falar do que não entendemos, seriam políticas públicas de adotar mais transparência, talvez a diminuição da discricionariedade na nomeação de cargos. São questões que passam ao largo do endurecimento das leis penais. É preciso apostar em medidas de transparência, etc. Reforçá-la é mais condizente com o efetivo combate à corrupção. O direito penal não tem muito, ou melhor, nada a oferecer nesse aspecto.

Para não dizer que o projeto não tem nada [de bom], há a previsão de destacar parte do orçamento dos entes federativos em publicidade para ações e programas voltados a estabelecer uma cultura de intolerância com a corrupção. Isso não passa pelo recrudescimento do direito penal. É algo que entendemos como saudável, não criticamos.

Para finalizar, dá para dizer que o PL é autoritário?

Nossa tradição é autoritária. A Constituição de 88 estabelece garantias justamente para limitar esse autoritarismo estatal. Eu creio que, com a restrição dessas possibilidades, se aumenta e se facilita chance de arbítrio. [Na prática], a Constituição não conseguiu romper completamente com essa tradição. É preciso ter cautela com propostas de aumento do poder punitivo.

Nós, da Defensoria Pública, impetramos Habeas Corpus para processo andar. Um dos motes do Projeto é a morosidade processual, alegando que os recursos são protelatórios. Mas muitos dos assistidos da Defensoria, que representam quase 80% dos processos em curso nas Varas Criminais no Rio de Janeiro, estão presos. Quando eles estão em cumprimento de pena a gente impetra para que o juiz decida o processo. Se se restringe essa medida, vai se ampliar o poder punitivo. Se daí você quiser tirar a conclusão de que isso aumenta a possibilidade de arbítrio e autoritarismo estatal, seria um conclusão razoável.

Edição: José Eduardo Bernardes

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