Tecnologia

Navegar é preciso, se expor não é preciso: reflexões sobre segurança e hegemonia.

Não é coincidência que a maioria dessas empresas e serviços está baseada nos Estados Unidos

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |
Desde os anos 60, a estrutura física e os protocolos técnicos que hoje formam a base dessa rede de comunicação foram patrocinados por iniciativas militares, públicas e privadas
Desde os anos 60, a estrutura física e os protocolos técnicos que hoje formam a base dessa rede de comunicação foram patrocinados por iniciativas militares, públicas e privadas - Brasil de Fato

É fácil ignorar o que acontece com as informações que enviamos por Whatsapp, e-mail, Facebook, Instagram, Snapchat, etc.. Tudo que precisamos saber é que, quando apertamos o botão enviar, as mensagens (texto, áudio ou foto) chegam do outro lado. Magicamente, como se saltassem dos nossos computadores ou celulares para o da pessoa com quem estamos nos comunicando. A verdade é que há mais coisas entre enviar e receber bits do que supõe nossa má compreensão coletiva.

A nuvem é bem concreta

A Internet surgiu nos anos 60 em um centro de pesquisa militar como uma rede física de informações construída debaixo da terra, cuja principal necessidade era continuar funcionando mesmo que parte da infraestrutura do sistema não estivesse disponível. Para atingir esse fim, a Internet foi arquitetada como uma rede que não necessita de um controle central para seu funcionamento e que pode crescer com a adição de novas redes que usem os mesmos protocolos de comunicação. Em outras palavras, a Internet é uma rede de redes que usam a mesma tecnologia para se comunicar, e cada uma dessas redes é composta por computadores e roteadores.

Versão simplificada da estrutura da Internet. Dispositivos como celulares e laptops são conectados através de vários níveis de roteadores (equipamento que negocia a transferência de dados) e servidores (equipamento que armazena dados)

Além da falta de controle centralizado, também é importante entender como as redes se conectam e como os dispositivos (celulares, tablets ou computadores) se comunicam entre si. No mundo "offline" a maioria das pessoas tem endereços que permitem que correspondências sejam enviadas e recebidas. Na Internet, cada dispositivo também possui um endereço que o identifica e permite que dados sejam enviados a ele. Como os endereços do mundo "real", os endereços da Internet estão conectados por várias vias e caminhos alternativos.

Diferentemente do que nos querem fazer pensar com metáforas sobre nuvens, não há nada de nebuloso ou fantástico sobre essas vias e endereços. Elas são desse mundo e têm a forma de ondas de rádio no ar, luz em cabos de fibra ótica ou eletricidade em fios de cobre.

O que acontece quando enviamos qualquer coisa pela Internet? Como na brincadeira de telefone sem fio essa informação passa de roteador em roteador até chegar ao destino. Mas a principal diferença entre o "telefone sem fio” e a Internet é que, no último caso, existem fios - muitos fios - que são controlados por poucos dos participantes, e esses participantes são os únicos que podem reter ou modificar a informação que passa pela rede.

Centralização do poder sobre a Internet

Mas nem sempre foi assim. Até o começo dos anos 2000, antes da popularização das redes sociais e smartphones, a Internet parecia ser um meio de comunicação mais democrático e participativo. Durante os anos 90, deixou de ser uma tecnologia de uso militar e de pesquisa para se tornar um serviço comercial, usar a Internet e programar a Internet eram quase a mesma coisa. Quem quisesse ter uma presença online precisava aprender a escrever HTML (uma linguagem de programação usada para construir páginas web) e ter alguma familiaridade com serviços de hospedagem e armazenamento de arquivos.

Não existia Messenger, Hangouts ou WhatsApp. A principal ferramenta de bate-papo na Internet era o Internet Relay Chat (IRC), um protocolo de comunicação que permitia a troca de arquivos, conversas públicas em grupo e conversas privadas.

Os programas de IRC tinham uma interface muito parecida com as dos programas que usamos hoje, mas por trás havia uma grande diferença: os servidores (os computadores que hospedavam e armazenavam os chats) não eram controlados por nenhuma empresa, mas por usuários da Internet. Qualquer pessoa podia subir um servidor de IRC e salas de chat.

Diferença topológica entre um protocolo de comunicação descentralizado (IRC) com vários servidores controlados por usuários, e um protocolo centralizado sob controle de uma empresa (WhatsApp)

Ao longo dos anos 2000, a organização da rede e de seus usuários se transformou. Com a chegada da Web 2.0 (nome dado para descrever o período em que se popularizaram sites como wikis, blogs e redes sociais que facilitam o compartilhamento de conteúdo dinâmico entre usuários.

Esses sites democratizaram a Internet porque permitiram a participação de pessoas sem conhecimento técnico, mas, por outro lado, as poucas empresas que lançaram essas plataformas iniciaram o processo de concentração de informação e poder que segue avançando até os dias de hoje. A rede que antes era composta por indivíduos, pequenos grupos, universidades e alguns empreendimentos comerciais, logo passou a ser dominada por um número pequeno de grandes empresas. Hoje, mais de 50% do tráfego de dados na Internet é gerado por apenas sete ou oito sites e, sempre que algum outro serviço começa a ficar popular, é absorvido por uma dessas grandes empresas --por exemplo: Google comprou YouTube em 2006 e o Facebook comprou o Instagram em 2012 e o Whatsapp em 2014).

Quantidade e procedência de usuários mensais dos oito sites mais visitados na Internet (fonte: ComScore Global).

O império e seu poder

Não é coincidência que a maioria dessas empresas e serviços está baseada nos Estados Unidos. Desde os anos 60, a estrutura física e os protocolos técnicos que hoje formam a base dessa rede de comunicação foram patrocinados por iniciativas militares, públicas e privadas.

Devido ao desenvolvimento econômico do país e políticas públicas que favorecem empresas privadas, a maioria dos servidores e os cabos que formam a Internet hoje, passam por território estadunidense. E apesar de toda a tecnologia "wireless" que existe, uma grande parte da transmissão de dados entre países é feita usando cabos submarinos que muitas vezes também passam por território Estadunidense.

Infraestrutura de cabos submarinos de fibra ótica que formam as conexões à longa distância da Internet (fonte: submarinecablemap.com).

Em 2013, o ex-administrador de sistemas da CIA e ex-consultor da NSA (Agência de Segurança Nacional Estadunidense) Edward Snowden mostrou porque é perigoso manter uma Internet centralizada em uma nação. Ele revelou vários documentos que mostram em detalhe que o governo norte-americano possui ferramentas para ler e armazenar por um longo período todo o imenso conjunto de dados que trafega por essas redes da Internet. Ou seja, todos aqueles nudes, conversas comprometedoras e hangouts picantes que, até quem não fez quer ter o direito de fazer sem ser vigiado, passam por computadores do governo estadunidense antes de chegar a seus destinos.

Você pode até não se importar em dar acesso a essas informações ao governo estadunidense, mas como toda informação digital, essas também estão sujeitas a vazamentos não previstos tanto por erros em software quanto por ação de administradores do sistema ou hackers.

Por exemplo, em 2013, a imprensa americana divulgou vários casos de funcionários de empresas ligadas ao serviço de inteligência e vigilância que estavam utilizando recursos de monitoramento para espionar pessoas sem autorização. Essa prática ficou conhecida como LOVEINT.

Até aqui vimos como existem várias possibilidades de violação da nossa privacidade e anonimato por parte dos atores que controlam a infraestrutura da Internet. Mas ainda não é hora de desistir da Internet ou da sua privacidade. No próximo artigo, vamos falar sobre algumas ferramentas relativamente simples que usam criptografia para complicar a vida dos bisbilhoteiros.

Edição: Camila Rodrigues