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A vida é sempre maior que a teoria

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Pesquisadores decidiram ouvir os próprios sujeitos da história
Pesquisadores decidiram ouvir os próprios sujeitos da história - Mídia Fora do Eixo
Há uma nova subjetividade que precisa ser captada por uma nova política

Noel Rosa já tinha cantado a pedra: “Quem acha, vive se perdendo”. Achar é fácil, barato e, quase sempre, a melhor maneira de estar errado sem perder a convicção. Por isso a pesquisa realizada pela Fundação Perseu Abramo, “Percepções e valores políticos nas periferias de São Paulo” chega no momento certo. Num tempo de valorização de fatos alternativos e incapacidade para o diálogo produtivo, os pesquisadores decidiram ouvir os próprios sujeitos da história. Agora, com os resultados no papel, é hora de deixar os achismos de lado e colocar a cabeça para funcionar.

Pelo visto, pares antagônicos como esquerda e direita, progressistas e conservadores, individualistas e coletivistas, liberais e estatizantes e outros inimigos de morte não são capazes de explicar a vida real. Para ficar na inspiração da canção popular, desta vez com Belchior, “a vida realmente é diferente, ao vivo é muito pior”. Pelo visto, o melhor caminho não é simplesmente aceitar ou rejeitar, mas compreender.

Ciência não é garantia de consenso. Os dados levantados pela pesquisa, em sua complexidade humana, levaram a interpretações que na verdade trataram de reafirmar os julgamentos que já estavam disseminados de antemão.

Para os alinhados com a direita, a síntese foi cristalina: acabou a luta de classes. O brasileiro da periferia quer ser empreendedor, defende o Estado mínimo, os valores tradicionais e a economia de mercado. É meritocrático e conservador.

Para os mais próximos à esquerda, a pesquisa flagra um momento de transição, possibilitado pelas estratégias de distribuição de renda, que alteraram o padrão político em direção à inclusão pelo consumo. Sem solidariedade de classe, o novo trabalhador tenderia ao individualismo.

Na verdade, essas conclusões não dissecam os resultados da pesquisa, mas as limitações dos analistas. Como na observação de Freud, o que Pedro diz de Paulo diz mais de Pedro que de Paulo. A saída desse impasse, além do estímulo à construção coletiva e plural do conhecimento, é a abertura à complexidade.

Na maioria das vezes, não se trata de apenas escolher entre um dos lados, mas da capacidade de ler a realidade como formada por mil imagens fragmentadas, que se concentram num único foco. Como nos olhos multifacetados de uma mosca.

A defesa do empreendedorismo, por exemplo, pode ser mais um sinal de dissolução do mercado formal de trabalho do que a defesa do protagonismo individual. O novo trabalhador precisa se virar e, por isso, quer ser o próprio patrão porque não há emprego disponível e os direitos atravessam um período de forte retração.

A crítica às políticas públicas não significa um alinhamento automático com a redução do Estado, mas a constatação do fracasso na oferta de serviços de qualidade. O escape para o setor privado, mesmo em alternativas de segunda linha, é sintoma e não causa. O que se observa com o vaivém do trabalhador empurrado pelas crises entre SUS e planos saúde, escola pública e particular etc.

No campo moral, o aparente reforço de comportamentos conservadores, de modelos familiares mais tradicionais e de religiões de códigos mais estritos e repressivos convivem com a abertura social à transformação desses valores. O cenário de conservadorismo está o tempo todo contraposto com a tendência à tolerância e à afirmação de novos direitos de cidadania e expressão de identidades.

No caso do individualismo, celebrado como uma atitude moderna, competitiva e na contramão das ações solidárias, a pesquisa não permite essa inferência. Se a busca por melhoria profissional se alimenta numa perspectiva de afirmação do mérito individual, ela sempre se insere num movimento mais geral marcado por valores coletivistas, que apontam para a universalização dos direitos.

A pesquisa traz ainda outros elementos que precisam ser analisados e abre campos para novos levantamentos e análises. A constatação é que conhecemos muito pouco o novo trabalhador brasileiro, suas motivações e visões de mundo. Não é de hoje que os intelectuais carregam, mesmo com boa vontade, o desígnio de falar em nome do povo. Talvez esteja na arrogância de achar muito e ouvir pouco um dos sentidos da crise de representatividade que parece definir nosso momento.

Há uma nova subjetividade que precisa ser captada por uma nova política.

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