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Sangue no chão do Brasil

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Não se trata de um cenário de violência excepcional, mas de uma política deliberada de extermínio
Não se trata de um cenário de violência excepcional, mas de uma política deliberada de extermínio - Divulgação/MST
Não aceitemos a banalidade do 'mal'

Dia 19 de abril: nove trabalhadores são mortos próximos a um assentamento em Colniza, Mato Grosso, na divisa com os estados do Amazonas e Rondônia. Dois foram exterminados a facadas e sete com tiros de calibre 12, por matadores encapuzados. Foram constatadas torturas nos corpos das vítimas. A região é conhecida por conflitos agrários. De acordo com a Comissão Pastoral da Terra (CPT), há registros de expulsão de famílias de assentamentos, destruição de lavouras, extração ilegal de madeira, torturas, trabalho escravo, cárcere privado e assassinatos na região nos últimos anos.

Dia 24 de abril: Silvino Nunes Gouveia, dirigente regional do MST, é assassinado com 10 tiros na porta de sua casa, no Assentamento Liberdade, município de Periquito, no Vale do Rio Doce, em Minas Gerais. A região é palco constante de conflitos pela terra, com mais de 1.200 famílias vivendo precariamente em cinco acampamentos. Poucas semanas antes, em 9 de abril, no município de Capitão Enéas, no Norte de Minas, uma emboscada contra famílias acampadas na Fazenda Norte América deixou três feridos a bala.

São apenas os mais recentes episódios de um crime que parece não chocar mais as pessoas. Ganham espaço na imprensa quando recebem interesse internacional e depois passam a fazer parte das estatísticas. As duas regiões, Minas e Amazônia, têm sido palco constante da barbárie.

Em Minas Gerais, os conflitos agrários são permanentes, com histórico de atentados e mortes em várias regiões. Em 2004, no Vale do Jequitinhonha, cinco trabalhadores foram mortos pelo fazendeiro Adriano Chafick Luedy, réu confesso e condenado a mais de 100 anos de prisão, que continua em liberdade. De acordo com a direção estadual do MST, atualmente existem 47 acampamentos com aproximadamente 7 mil famílias acampadas, em nove regiões do estado

Na Amazônia, completou-se este mês 21 anos do massacre de Eldorado dos Carajás, que deixou 19 sem-terra mortos e mais de 60 feridos, numa ação comandada pela Polícia Militar. Em 2005, a missionária Dorothy Stang, de 73 anos, foi assassinada com seis tiros, um deles na nuca, para confirmar a marca da execução. Em junho de 2016, Nilce de Souza Magalhães, mais conhecida como Nicinha, foi encontrado no lago da barragem da Usina Hidrelétrica Jirau, em Porto Velho (RO). A liderança do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) havia sido assassinada no início do ano e seu corpo estava desaparecido desde o dia 7 de janeiro.

Há motivos políticos, econômicos, jurídicos, ideológicos e até psicológicos que tentam explicar a situação. É possível denunciar o projeto de desenvolvimento direcionado para a grande propriedade e monocultura. É também verdade que se trata de um modelo fundiário concentrador, garantido pelo uso espúrio de processos de legitimação da terra. Ou mesmo apontar a utilização do poder de influência dos grandes latifundiários para destruir as poucas garantias existentes em termos de sustentabilidade, preservação de áreas demarcadas ou de resistência a projetos de grande impacto ambiental.

Mas nada explica a persistência da maldade, a capacidade de destruição, a ausência de valores mínimos de humanidade. É preciso buscar paralelo em outras experiências limítrofes. Assim como a pensadora alemã Hannah Arendt nomeou o comportamento Eichmann, típico funcionário nazista, de portador da “banalidade do mal”, há uma insensibilidade ao horror em torno da forma como vem sendo tratada a questão da terra no Brasil. Só que aqui o tempo se conta em séculos e a história parece não ter fim.

Alguns elementos são típicos desse cinismo que rompe com a civilização. Um deles é a tendência a desumanizar as vítimas das chacinas. Elas quase sempre perdem sua dimensão pessoal para se tornarem uma categoria, um conjunto de pessoas marcado por um comportamento condenável em alguma medida. Outra forma estúpida de desqualificar os crimes é naturalizar as falhas intrínsecas do sistema penal, como se não houvesse nesses casos uma sobrecarga de lentidão, parcialidade e certeza da impunidade, mesmo em casos de condenação.

A situação quase sempre é vista também como se fosse algo distante da realidade da maioria de pessoas, por se tratar de um conflito por razões consideradas ultrapassadas. Como se de um lado estivesse o progresso e de outro o atraso. Sem falar na forma sempre preconceituosa de considerar o que está longe como algo inatingível e que não diz respeito aos homens civilizados. Os conflitos são sempre descritos como “em regiões de difícil acesso”, e por isso longe da Justiça e da responsabilidade da imprensa. As coberturas são sempre remotas e com informações oficiais de segunda mão.

Alguém acompanhou alguma reportagem séria sobre o massacre em Colniza, com presença de equipes de reportagem e pesquisa sobre a região? Entidades ligadas aos trabalhadores rurais foram ouvidas? A Polícia Federal, tão atilada em casos midiáticos, demonstrou o mesmo interesse na investigação das mortes de nove trabalhadores torturados e mortos em área sem lei? Ouviu-se o choro de filhos que perderam pais? Suspeitos – que todos na região conhecem, mesmo escondidos por máscaras – foram identificados e presos?

O Ministério da Justiça parece seguir uma linha compósita que emana do caráter de seus mais recentes mandatários. Do ministro anterior, Alexandre de Moraes, premiado com uma cadeira no STF, conhecido pelo tratamento de estudantes e movimentos sociais a bala de borracha e cassetete, herdou a truculência e seletividade; do atual ministro, Ormar Serraglio, com suas ligações intestinas com a bancada ruralista, vem o desprezo ao trabalhador e a proximidade com a banda podre da agroindústria, como indica a denúncia de sua relação com as falcatruas na fiscalização dos frigoríficos.

Este lado, por assim dizer, público, avulta a injustiça da sociedade brasileira. Mas há outro, que vem de regiões profundas de nossa violência constitutiva como nação, que vem amortecendo a capacidade de indignação. Enterramos irmãos mortos, contamos vítimas do arbítrio, padecemos a impunidade. E a vida continua. Apenas neste mês, pelas contas oficiais, 10 trabalhadores rurais brasileiros foram assassinados por serem trabalhadores e brasileiros.

Não se trata de um cenário de violência excepcional, mas de uma política deliberada de extermínio. Se tudo que sustenta o latifúndio e a exploração econômica entra com o “mal”, possivelmente a passividade frente ao horror está entrando com a carga de “banalidade”. Não há nada mais triste que perder a capacidade de entristecer.

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