Direitos e democracia

Reformas não podem ser analisadas de forma isolada, apontam especialistas 

Economias muito menores do que o Brasil são alvos de intervenção militar por causa do petróleo, alerta diretor do DIEESE

Brasil de Fato | Curitiba (PR) |
No cenário atual, acredita-se que a democracia e o direito do trabalho não são necessários, avalia Nasser Allan, doutor em Direito
No cenário atual, acredita-se que a democracia e o direito do trabalho não são necessários, avalia Nasser Allan, doutor em Direito - Gibran Mendes

Especialistas de todo o Brasil discutiram ao longo desta sexta-feira (12), em Curitiba, a reforma trabalhista e os retrocessos sociais em pauta no país. O encontro partir da iniciativa dos Institutos Defesa da Classe Trabalhadora (Declatra) e Democracia Popular (IDP). O misto de falas demonstrou um pensamento recorrente: trata-se de um equívoco analisar de forma isolada as reformas trabalhista e previdenciária e outros retrocessos sociais em curso no Brasil.

Segundo o diretor técnico do Dieese, Clemente Ganz Lúcio um dos fatores que tem passado desapercebido nas análises é o interesse dos grandes grupos econômicos no Brasil. O país esta entre as principais economias do mundo, com uma grande gama de recursos naturais disponíveis.

“Nós estamos tentando organizar a luta, mas não nos damos conta de que fazemos em uma das maiores economia do planeta. Economias muito menores que a nossa são alvos de intervenção militar para manter certos interesses, como no caso do petróleo”, ponderou. Com uma base industrial gigante, empresas estatais fortes, um amplo espaço urbano, colocam o País como uma oportunidade de “negócio inigualável”.

“Há um interesse claro, articulado mundialmente, para a reorganização produtiva em escala planetária, que é coordenada pela riqueza financeira. Neste caso, o investimento é para o máximo retorno no menor prazo possível”, seguiu Lúcio.

Retrocesso em direitos e na democracia

Neste cenário, a reforma trabalhista faz parte de uma estratégia ampla que tem início com a transferência de ativos, como o Pré-sal e a venda de terras para estrangeiros, passando pela PEC que congela gastos públicos em 20 anos e também pela reforma trabalhista e previdenciária.

“A reforma Trabalhista, do início ao fim, retira recursos da Previdência. O salário fixo foi uma conquista da classe trabalhadora. Mas a remuneração por produtividade e o trabalho intermitente diminuem a arrecadação”, comparou a juíza do Tribunal Regional do Trabalho da Quarta Região, Valdete Souto Severo.

Ela, inclusive, questiona se realmente há uma democracia no Brasil neste momento. “Estamos diante de um processo legislativo democrático? É claro que não. Tínhamos um PL (da Reforma Trabalhista) com 11 artigos que foi para uma comissão analisá-lo e ele volta com um relatório com mais de 100 artigos que altera mais de 200 artigos da CLT que são a soma de vários PLS e orientações que interessam à Confederação Nacional da Indústria”, criticou a magistrada.

A vice-presidente do Tribunal Regional do Trabalho do Paraná, Marlene Teresinha Fuverki, criticou a aprovação da Reforma Trabalhista na Câmara Federal. “Não se permitiu espaço de discussão para população diretamente atingida pelos efeitos da proposta. Mas, mesmo que se tivesse permitido, a impressão é de que nada valeria. É uma profunda irresponsabilidade do legislador em aprovar o relatório da forma como está. Ouso dizer que sem exato conhecimento do conteúdo do relatório final”, protestou a magistrada.

Precarização

O cenário é tão grave que o próprio direito ficará em xeque com as mudanças estruturais que acontecem no Brasil, segundo a professora de Direito da Universidade Federal do Paraná (UFPR), Aldacy Rachid Coutinho. “Uma das minhas grandes preocupações é em torno do próprio direito como fenômeno. Na verdade, ele se situa numa perspectiva de mudança paradigmática extremamente importante, se não nos dermos conta disso, vamos lutar para combater reformas, mas a questão central fica intocada”, alertou.

O advogado e Doutor em Direito pela UFPR, Nasser Allan, avalia que a democracia não é algo inerente ao sistema capitalista. “A democracia foi uma conquista, uma concessão e que em determinados momentos é prescindida. Vivemos um momento do capitalismo descomplexado, ou seja, em que acredita-se que não é necessária a democracia e nem o direito do trabalho. As amarras que o Direito do Trabalho impõe vão sendo rompidas para a superexploração da mão de obra”, argumentou.

A precarização do trabalho é um dos pontos-chave do caminho que está sendo trilhado no País. “Isso resulta da flexibilidade no mercado do trabalho, seja em relação ao salário, a empregabilidade ou em políticas sociais de proteção ao desemprego. E gera uma condição insegura de vida e do trabalho. A Espanha implantou isso nos últimos anos e observamos uma grande parte da classe trabalhadora em contratos precários, para não dizer quase toda. Isso levou a uma depressão geral no patamar de remuneração”, exemplificou.

Rompimento do "pacto" entre capital e trabalho

Toda essa precarização tem como objetivo ampliar a acumulação de riquezas pelos centros financeiros e produtivos. Nos últimos 30 anos, segundo o desembargador do Tribunal Regional do Trabalho da 10­ª Região, Grijalbo Coutinho, houve um pacto entre o capital e trabalho e que agora foi encerrado.

“Embora tenha propiciado – este período - revoluções tecnologias, acumulações de riquezas, PIB’s elevadíssimos, ao mesmo tempo essa paz se esgotou porque o regime não acumulava como antes. A crise do petróleo talvez seja o ponto de culminância”, avaliou. A saída para manter a acumulação de riqueza encontrada foi a recorrente na história da economia. “A mão de obra mais barata, procurando de novo no trabalho a sua força de riqueza, extraindo todas as vantagens possíveis”, apontou.

Um dos exemplos para isso é a terceirização que ganha contornos ainda mais dramáticos com a reforma Trabalhista, pois não haverá uma limitação sequer. Neste caso, onde o único objetivo é baratear a mão de obra, ganha força uma precarização que coloca em risco inclusive a vida dos trabalhadores. “Na Petrobrás, nos últimos 19 anos, há uma relação de 7.8 mortes em acidentes de trabalhadores terceirizados para cada trabalhador próprio da empresa. No caso dos estádios construídos no período da Copa do Mundo foram 12 mortes nas obras, 11 eram terceirizados”, atestou.

Programa democrático popular

Neste cenário, qual seria a alternativa a ser adotada pelas forças progressistas? Para o doutor em ciências sociais pela Unicamp, Giovanni Alves, é necessária a formulação de um programa democrático popular de reformas. “O Brasil que queremos”, resumiu Alves. De acordo com ele, é preciso buscar o debate com a sociedade, participar da disputa no espaço político. O professor ainda acredita que toda essa onda de retrocessos também pode servir como um despertador para a classe trabalhadora no Brasil. “Parece que esquecemos que o Brasil é um país capitalista e que existe luta de classes. Então, bem-vindos ao mundo real”, declarou.

Edição: Ednubia Ghisi