Entrevista

"O Brasil vive um pesadelo sem solução fora da democracia", afirma economista

Alfredo Filho defende Diretas Já e indaga se a população aprova a política econômica: "Quem está com medo de perguntar?"

Jornal da Unicamp |
O economista Alfredo Saad Filho, professor da Universidade de Londres: ‘Brasil está virando uma Grécia tropical sem a fantasia do Syriza’
O economista Alfredo Saad Filho, professor da Universidade de Londres: ‘Brasil está virando uma Grécia tropical sem a fantasia do Syriza’ - Antoninho Perri

“O Brasil entrou na divisão internacional do trabalho abaixo da China. Isso é um absurdo, para um país que tinha construído uma base industrial razoavelmente coerente e sofisticada. Agora, estamos presos debaixo de um colosso. Será muitíssimo difícil construir uma sociedade integrada e minimamente igual com essa base produtiva extremamente limitada”.

A opinião é do economista Alfredo Saad Filho, professor de Economia Política na Escola de Estudos Orientais e Africanos (SOAS) da Universidade de Londres e autor do livro O Valor de Marx – Economia política para o capitalismo contemporâneo (Editora da Unicamp). De passagem pelo Brasil, Saad concedeu a entrevista que segue ao professor Armando Boito Jr., docente do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp.

Armando Boito - Qual a sua impressão sobre a situação econômica e política do Brasil?

Alfredo Saad Filho – O Brasil vive uma tragédia sem precedentes no último século. A produção por substituição de importações foi destruída pela transição neoliberal nos anos 1990, e essa transição econômica rumo ao neoliberalismo veio na esteira da transição da ditadura para a democracia. Entretanto, a transição democrática era pouco compatível com a transição neoliberal: o neoliberalismo impõe uma economia com um padrão distributivo excludente e que cresce pouco, gera empregos ruins, e que produziu um padrão de especialização perverso: o Brasil entrou na divisão internacional do trabalho abaixo da China. Isso é um absurdo, para um país que tinha construído uma base industrial razoavelmente coerente e sofisticada. Agora, estamos presos debaixo de um colosso. Será muitíssimo difícil construir uma sociedade integrada e minimamente igual com essa base produtiva extremamente limitada.

Enquanto isso, a democracia significa uma sociedade inclusiva, relativamente igual, composta de cidadãos, e não de uns poucos sujeitos ricos e uma grande massa empobrecida. As desigualdades sociais extremas são incompatíveis com a democracia, mas o neoliberalismo é incompatível com a igualdade.

As tensões entre a democracia e o neoliberalismo explicam grande parte do desastre recente no Brasil: os governos do PT buscaram construir uma sociedade inclusiva numa base neoliberal, e o projeto entrou em colapso quando as condições internacionais se tornaram adversas, depois da crise global. O PT foi incapaz de entender essas tensões em tempo real, e incapaz de liderar a busca por soluções: o partido e seus governos continuaram, até o fim, a tentar improvisar alternativas temporárias, compatibilizar interesses cada vez mais distantes, e distribuir renda na margem sem mudar nada de fundo. Deu no que deu: a elite se rebelou, o Estado brasileiro foi sequestrado por uma quadrilha, um neoliberalismo turbinado está sendo imposto à força, e a sociedade está sofrendo prejuízos enormes.

O Brasil vive um pesadelo sem solução fora da democracia. Por isso eu sou a favor das eleições diretas já: elas abrem caminho para a sociedade fazer uma escolha de projetos, ao invés de ter que se subordinar, sem consulta alguma, ao projeto excludente de um grupo de bandidos.

Como o senhor vê, do ponto de vista da economia, a intenção do governo em implantar as reformas da previdência e trabalhista?

Em 2016, o Brasil sofreu um golpe de Estado de novo tipo. Antigamente golpes de Estado eram conduzidos pelos militares, mas no neoliberalismo as formalidades democráticas são importantes. Além do mais, existe uma institucionalidade desenvolvida e sólida no Brasil, e que continua legítima, e que torna muito difícil passar por cima do texto constitucional. Portanto, os golpistas tiveram que se ater a formalidades legais.

Como o poder institucional da quadrilha é muito grande, e eles querem aproveitar ao máximo a oportunidade, eles tendem a atropelar a institucionalidade e quaisquer interesses divergentes, usando a força bruta da maioria que têm no Congresso, e da hegemonia que exercem no Judiciário. Querem impor soluções violentas aos problemas nacionais, muitos deles criados pelo neoliberalismo, através da imposição de mais neoliberalismo.

Assim, o Brasil está virando uma Grécia tropical sem a fantasia do Syriza [partido de esquerda]; um Chile de Pinochet sem o general, mas com o mesmo conteúdo econômico e o mesmo projeto antissocial. Esse projeto excludente deve ser barrado, e a forma mais direta de fazê-lo é através de eleições. Vamos ver se a população aprova a catástrofe neoliberal. Quem está com medo de perguntar, e quem tem medo da resposta?

Por que um livro sobre a teoria do valor? Não se trata de um tema já suficientemente discutido?

A teoria marxista do valor oferece uma análise coerente das modalidades de reprodução da sociedade. É um tema abstrato, mas ele oferece um pano de fundo integrador, no qual análises mais detalhadas sobre a dinâmica da economia, da política e da sociedade podem ser inseridas. A teoria do valor é um instrumento, um método, e uma forma de ver o mundo.

Ela é rica, e enriquece a nossa percepção da realidade. É preciso retornar à teoria do valor regularmente, para confirmar a nossa compreensão do real, e também para reconhecer as limitações do nosso conhecimento. Portanto, a teoria do valor precisa ser estudada em detalhe, e ela não se esgota nunca. Precisamos de mais trabalhos nessa área, mais debates, e mais troca de opiniões. Se o meu livro puder contribuir nesse sentido, meu trabalho estará bem feito.

Você trabalha há muitos anos numa universidade inglesa. Qual a situação atual dos estudos sobre a teoria econômica de Marx na Inglaterra?

Dentro da economia, há muito pouco espaço para a heterodoxia em geral e o marxismo em particular. Tendo dito isso, a situação das abordagens heterodoxas melhorou bastante desde a crise global iniciada em 2008. Houve uma percepção das insuficiências das abordagens convencionais, exemplificada pelo desafio colocado pela famosa pergunta feita pela rainha Elizabeth II aos economistas convencionais, questionando a incapacidade deles em antecipar e prevenir a crise. Houve também um questionamento por baixo, vindo de um grande número de estudantes que rejeitam a hegemonia neoclássica.

Essas dificuldades vindas, digamos, “de cima” e “de baixo” abriram um pouco mais de espaço em vários departamentos de economia que, anteriormente, estavam completamente fechados. Mas os maiores avanços para as abordagens marxistas têm ocorrido em outros departamentos de ciências sociais: nas relações internacionais, na sociologia, na geografia, na política, nos estudos do desenvolvimento, e assim por diante.

Uma nova geração de acadêmicos e estudantes tem produzido material excelente nessas áreas, e isso traz muito conforto e satisfação para os acadêmicos da minha geração. Existe, também, um interesse crescente dos estudantes em estudos que questionem a economia atual e a sociedade neoliberal, de um ponto de vista de esquerda e compromissado com a igualdade humana. O mainstream fracassou: é preciso reconhecer isso e construir uma academia nova, e uma sociedade nova, para além do neoliberalismo.

Qual é o debate marxista sobre a crise econômica iniciada em 2008? Qual é a sua análise da crise?

Dois debates dominam o campo marxista. O primeiro é sobre as causas da crise. A grande maioria dos marxistas, e eu me somo a esse grupo, concorda que a crise de 2008 se deve às instabilidades impostas pela globalização neoliberal, em particular pela financeirização. Essa é uma crise de superprodução de ativos fictícios, pedaços de papel que representam riqueza e que se superimpõem ao processo produtivo para sugá-lo, e para remunerar uma casta financeira que está profundamente mesclada com o grande capital industrial.

Essa é também uma crise do neoliberalismo, que perdeu a capacidade de gerir a economia de maneira construtiva ou estável e, depois da crise, demonstrou grandes limitações em liderar a recuperação da economia global. Claro que o pior da crise já passou há algum tempo, pelo menos nos países do centro. Entretanto, a economia mundial está caindo no que até mesmo economistas neoclássicos reconhecem ser uma “Grande Estagnação” sem final previsto. Uma tragédia: a crise mostra que o neoliberalismo é capaz de gerar grandes lucros para poucos, mas não é capaz de dinamizar a economia, ou de construir sociedades coesas.

Outra interpretação, de uma pequena minoria de marxistas, é que a crise se deve à queda contínua das taxas de lucro desde os anos 1960; portanto, não se trata de uma crise especificamente neoliberal, e a financeirização não tem papel significativo: o capitalismo caminha para o colapso final há meio século, ou talvez desde sempre. Essa interpretação é implausível teoricamente e não se relaciona com os fatos evidentes das transformações da produção e das finanças no período relevante. Nesse sentido, eu a descarto.

Dito isso, eu enfatizo que o debate marxista sobre a crise atual é vibrante e muito rico. Um pequeno grupo de economistas, praticamente sem recursos ou apoio institucional, consegue oferecer interpretações da crise que são muito mais interessantes e férteis do que a grande maioria de economistas tradicionais, com todo o apoio de grandes instituições de pesquisa e financiamento, e contando com recursos comparativamente gigantescos. Apesar disso, eles não trouxeram nenhum elemento relevante para o debate, e não conseguem propor soluções. Essa é uma tragédia para a disciplina da economia.

Você acompanhou de perto o Brexit. Como avaliou esse acontecimento?

A votação sobre o Brexit foi uma aposta inventada pelo primeiro-ministro anterior, David Cameron, para tentar resolver uma divisão interna ao Partido Conservador. Desde há muito tempo, uma ala crescente do partido, dominada pela extrema-direita nacionalista e racista, exigia a saída da UE, sugerindo que a Europa era a causa do declínio relativo do Reino Unido. Evidentemente isso é falso. Mas esse discurso ganhou bastante tração política devido à pressão da grande imprensa de direita, os famosos tabloides, que são na sua maioria extremamente xenófobos.

A população foi convidada a culpar os estrangeiros – enquanto indivíduos e enquanto países – por todos os males do neoliberalismo. Se a saúde, a habitação, os salários e a assistência social estão ruins, é culpa dos estrangeiros no país. Se a economia não cresce, perde empregos, e a capacidade manufatureira declina, é culpa dos estrangeiros em outros países. Ora, isso é uma fantasia: é como se o neoliberalismo global, liderado em parte pelo Reino Unido, não tivesse transnacionalizado a produção, exportado empregos para lugares mais baratos, e imposto políticas destrutivas de austeridade fiscal para reduzir impostos para os ricos e para transferir riqueza para os interesses financeiros. A culpa das falhas do neoliberalismo foi projetada para onde ela não cabia.

Com isso, e com uma campanha recheada de falsidades, o Brexit venceu – um Brexit de direita, excludente e regressivo socialmente. O país e a maioria da população vão perder muito nos próximos anos. Digo isso sem ilusões com relação à UE, que afinal de contas impôs o austericídio na Grécia, em Portugal, e em outros países. Mas a solução passa por construir uma União democrática, e não buscar um caminho fora dela, liderado pela extrema direita.

Edição: Jornal da Unicamp