Coluna

O choro de Alice

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Roberto Efrem Filho – ou Beto, como gosta – é do Recife e, vez ou outra, desajeita-se na palavra.
Roberto Efrem Filho – ou Beto, como gosta – é do Recife e, vez ou outra, desajeita-se na palavra. - Reprodução
Alice, no entanto, não estava mais no quarto

A cidade consumiu a casa. Não os anos, este passado empilhado e enfileirado nos corredores de minhas lembranças. A cidade consumiu a casa, a sombra gorda das duas mangueiras, a terra úmida do quintal, as manhãs em que Alice pulava o muro entre nossas casas e batia à janela do meu quarto para andarmos de bicicleta. Os enormes olhos de Alice amanhecendo domingo. Não fosse a inclinação do alpendre à porta de entrada; não fosse a desbotada imagem de Nossa Senhora de Fátima presa à fachada, agora incrustada numa reluzente parede revestida de porcelanato bege; não fosse, enfim, este meu conjunto de certezas inamovíveis, eu sequer reconheceria a casa em que me criei. Os edifícios espelhados de trinta andares, quatro deles destinados apenas para estacionamento, sugaram até o talo do jasmineiro. Os canos de escape, as buzinas e o medo cerraram de grades as passagens, o oxigênio e a oportunidade do silêncio. Hoje, eu não ouviria o choro de Alice. Daqui, olhando para o oitão que separava nossos quartos, que distancia aquela minha janela do letreiro iluminado da farmácia levantada sobre a garagem de Dona Marta, percebo que não conseguiria escutar o rasgo da batida do portão, às noites em que Seu Osvaldo chegava trôpego, urrava, urrava desde a acidez do estômago, e confundia suas mãos no rosto da esposa. “Osvaldo!”, eu ouvia a exclamação de Dona Marta, imediatamente anterior às marcas que, amanhã à calçada, provocariam um não haver palavra entre ela e minha mãe. Da cama, eu parecia sentir Alice acordando no susto, fechando-se no quarto, rodando a chave na maçaneta que Dona Marta pedira a meu pai, por favor, para instalar. “É só uma maçaneta, vida, não há nada demais em ajudar” – a voz de Mainha na cozinha, a meu pai, durante o café da manhã de uma terça-feira. [Sim, sei que era uma terça-feira porque faltei à prova de geometria. Com o choro de Alice, eu também não consegui dormir]. Meu pai consentiu com o pedido e, no tempo que se passou, ao rasgo do portão, ao “Osvaldo!” de Dona Marta e à confusão de corpos, seguia-se o som da chave na maçaneta precedendo ritualisticamente o choro de Alice. No tempo que se passou, uma infância, até a sexta-feira em que Seu Osvaldo resolveu confrontar a porta do quarto da filha. [É, sei que era uma sexta-feira porque assistíamos ansiosos, na sala, ao último capítulo da novela das oito]. O homem esmurrava o compensado e, “abra a porta, Alice, abra a porra dessa porta”, conseguiu arrombar a fechadura. Alice, no entanto, não estava mais no quarto. De camisola amarelinha, posta contra o “FIM” estampado no nosso aparelho de televisão, ela e seus enormes olhos já não choravam. Brilhavam de temor e raiva mais do que o letreiro dessa farmácia, do que os faróis expandidos nos prédios que se refletem uns aos outros e tentam impedir que eu não a ouça.

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