Paraná

Lava Jato

É possível combater a corrupção sem destruir a economia?

Continuação da série "Lava Jato e desindustrialização" mostra como o Judiciário lavou as mãos para o desemprego

Brasil de Fato | Curitiba (PR) |
O ex-ministro José Eduardo Cardozo e o juiz Sérgio Moro divergiram, em 2015, sobre a necessidade de suspensão de contratos da Petrobras
O ex-ministro José Eduardo Cardozo e o juiz Sérgio Moro divergiram, em 2015, sobre a necessidade de suspensão de contratos da Petrobras - Divulgação

– Doutor Moro, o senhor se sente responsável pela Lava Jato ter destruído a indústria de construção civil desse país? – disse o ex-presidente Lula, na condição de réu da Lava Jato, em depoimento ao juiz Sérgio Moro em Curitiba no dia 10 de maio. – Eu tenho certeza que não.
– Mas o senhor entende que o que prejudicou essas empresas foi a corrupção? – rebateu o juiz de primeira instância.
– Não. Foi o método de combater a corrupção.
– A que o senhor se refere? – questionou Sérgio Moro, alheio os impactos econômicos da operação.
Dois milhões de postos de trabalho fechados, segundo a Secretaria de Política Econômica do Ministério da Fazenda. Noventa bilhões de reais jogados fora, devido à paralisação de obras. Conforme demonstrado no primeiro capítulo desta série, os prejuízos decorrentes da Lava Jato congelaram a economia brasileira e alavancaram o desemprego em várias regiões do país.
Economistas, sindicalistas e os próprios operários desempregados afirmam que a operação deveria punir apenas os políticos e executivos corruptos, em vez de destruir as empresas e provocar demissões em massa. Mas será possível combater a corrupção em grandes corporações sem afetar a economia?
Para responder a essa pergunta, a reportagem do Brasil de Fato buscou entender como se dão as punições em caso de propina, fraudes, caixa 2 e desvio de dinheiro nos países mais bem colocados no ranking da corrupção elaborado pela ONG Transparência Internacional (TI). Entre os dez primeiros da lista, a Alemanha é a única que enfrentou escândalos de corrupção recentes, de repercussão internacional, e que permitem comparação com a operação Lava Jato.
O ranking é baseado no chamado Índice de Percepção da Corrupção (IPC), calculado anualmente pela TI desde 1995. O cálculo é feito a partir de relatos de cidadãos e de informações extraídas de funcionários públicos, políticos e especialistas no tema em cada país. Segundo os organizadores, medir a corrupção a partir da experiência e da percepção das pessoas é uma maneira de evitar que os países que mantém delitos graves “debaixo do tapete” sejam beneficiados no ranking.

Caso Siemens

(Crédito: Divulgação Siemens)

Em 2005, o conglomerado industrial alemão Siemens foi acusado de pagar mais de um bilhão de euros em propinas para fechar contratos de obras internacionais. No Brasil, o grupo foi citado em investigações de corrupção há quatro anos – executivos da Siemens confessaram participar de um cartel para superfaturar em 20% as obras de metrôs e trens em São Paulo, durante os governos PSDB.
Ao descobrir que o caixa 2 era uma prática institucionalizada na empresa, a Justiça alemã condenou a Siemens a pagar uma multa equivalente a 395 milhões de euros. Do Poder Judiciário dos Estados Unidos, veio outra multa: cerca de 800 milhões de dólares. Entre penalizações e gastos com advogados, o escândalo custou ao conglomerado mais de 2 bilhões de euros.
A multa não chegou nem perto de abalar a saúde financeira de empresa, cujo faturamento era superior a 70 bilhões de euros. Nenhum trabalhador foi demitido, mas os executivos corruptos não passaram impunes: a Siemens foi obrigada a trocar toda a diretoria – do presidente-executivo, Klaus Kleinfeld, ao presidente do conselho de supervisão, Heinrich von Pierer. Vários diretores foram presos, e dezenas respondem até hoje na Justiça pelo crime de suborno.

Não faz sentido punir a empresa, tratá-la como se ela fosse uma pessoa física

Caso Volkswagen

(Crédito: Divulgação)

Em setembro de 2015, o governo estadunidense denunciou uma fraude em 500 mil veículos da montadora alemã Volkswagen que circulavam no país. Em cada carro, era instalado um software para burlar a emissão de poluentes, para atingir os níveis exigidos na fase de testes.
A Volkswagen admitiu que a fraude foi aplicada em 11 milhões de veículos a diesel em todo o planeta. O presidente do grupo, Martin Winterkorn, renunciou ao cargo em menos de uma semana. Engenheiros encarregados de adequar os carros às metas de emissões de poluentes em cada país foram investigados e punidos. Da noite para o dia, as ações do grupo na bolsa de valores de Frankfurt caíram 19%.
A União Europeia processou, em dezembro do ano passado, sete países do bloco que não aplicaram sanções a Volkswagen e suas subsidiárias após a comprovação de que a empresa havia trapaceado nos testes. Economistas alemães apontavam que, dada a desvalorização das ações do grupo na bolsa e o volume de multas que a montadora teve que pagar em outros países – inclusive no Brasil –, era recomendável que o Poder Judiciário “aliviasse” as penas à pessoa jurídica e concentrasse os esforços em punir somente aqueles que eram responsáveis diretos pelas fraudes.
Resultado positivo
Penalizar os altos executivos e prezar pela sobrevivência das empresas, para evitar o desemprego, funcionou como estratégia de combate à corrupção na Alemanha, que voltou a figurar entre os dez melhores países do mundo na última edição do IPC. A Itália, palco da operação Mãos Limpas – considerada uma inspiração para o modelo de investigação e punição da Lava Jato – não está sequer no grupo dos 60 melhores do ranking. Empatados com a Alemanha, em uma posição privilegiada da lista da TI, estão Luxemburgo e Reino Unido, dois dos países questionados pela UE por não aplicarem sanções rigorosas à pessoa jurídica Volkswagen.
O Ministério Público de Munique e o Poder Judiciário alemão não foram menos rigorosos com a corrupção, nos casos Siemens e Volkswagen, que a Mãos Limpas ou a Lava Jato. A diferença é que, na Alemanha, só quem pagou a conta foram os criminosos. Para os trabalhadores do chão de fábrica, não mudou nada: só o nome do patrão.
“A Siemens teve problemas muito graves, e os alemães acertaram ao proteger a empresa. Ela está lá funcionando”, analisa o economista Luiz Gonzaga Belluzzo. “Não faz sentido punir a empresa, tratá-la como se ela fosse uma pessoa física. Ela é uma entidade social, que tem relações com fornecedores, empregados. No caso da Lava Jato, tinha que se tomar muito cuidado com os efeitos colaterais. Dizer que, com esse argumento, eu estou a favor da corrupção, seria uma coisa primária. Eu estou a favor que a vida das pessoas não seja prejudicada de maneira tão brutal como está acontecendo”.
De volta ao Brasil
Os juízes e procuradores da Lava Jato optaram por um caminho contrário ao da Alemanha, e as consequências foram trágicas para milhões de operários.
Quando se pune a pessoa jurídica, em muitos casos, os altos executivos sequer sentem no bolso os prejuízos da suspensão dos contratos e a paralisação das operações financeiras. O estaleiro Mauá, que foi fechado em Niterói, no Rio de Janeiro, por exemplo, pertencia ao grupo do milionário boliviano naturalizado brasileiro Germán Efromovich. Lá, 14,5 mil trabalhadores foram demitidos da indústria naval, enquanto o empresário manteve seu faturamento em alta através de outras fontes. Citado na delação premiada do ex-presidente da Transpetro, Sérgio Machado, Efromovich também é um dos donos da empresa aérea Avianca e de uma rede de hotéis de luxo na Colômbia, além de explorar petróleo no Equador e gás natural nos Estados Unidos.
Embora a investigação sobre as ilegalidades na Petrobras tenha contornos diferentes do caso Siemens, o dilema é semelhante: o Judiciário deve ou não se preocupar com os impactos econômicos de suas decisões?
No dia 28 de janeiro de 2015, dez meses após a deflagração da Lava Jato, o governo Dilma Rousseff (PT) fez o primeiro alerta oficial para os prejuízos que a operação poderia causar à economia. O então ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, defendeu naquele dia, em entrevista coletiva, que os corruptos fossem punidos “com o rigor da lei”, sem que isso atrapalhasse a “vida econômica dos brasileiros”.
Sérgio Moro não esperou nem 24 horas para dar uma resposta à altura. Em ofício entregue ao Superior Tribunal de Justiça (STJ), o juiz de primeira instância insistiu pela suspensão imediata dos contratos da Petrobras com grandes empresas – mesmo aquelas que tinham obras em andamento, ou quase finalizadas.
Parem as máquinas!
Luiz Gonzaga Belluzzo atribui essa postura a um problema na formação profissional dos juristas, que são incapazes de enxergar a sociedade de maneira mais ampla, para além do seu ramo de atuação. “Eu não posso supor que eles [juízes e procuradores da Lava Jato] estão agindo de má fé. Mas, ainda que com boas intenções, eles estão produzindo uma série de ações que estão produzindo efeitos muito negativos na vida de outras pessoas”, interpreta. “Se for levar em conta os efeitos sobre as cadeias produtivas, a possibilidade de recuperar R$ 38 bilhões [valor de ressarcimento divulgado pelo MPF] é uma coisa ridícula perto dos 5 a 7 milhões de desempregados que foram produzidos por essas ações. Além da recessão e da entrega do pré-sal”, completa.

Em última instância, quem acaba afetado são os trabalhadores

O economista e cientista político William Nozaki não descarta a hipótese de intencionalidade na destruição da economia nacional. “No caso da Lava Jato, existe um diagnóstico equivocado do que é a corrupção do Brasil. Tratam como um problema moral, e não um problema próprio da relação entre empresas estatais e empresas privadas. E isso não é uma característica brasileira: é típico da economia de mercado, com o agravante da falta de regulamentação no Brasil”, analisa. “Isso se somou a uma disposição de implementar um projeto que favorece a chegada do capital estrangeiro no Brasil, beneficiando interesses internacionais”.
Vale a pena delatar
Nozaki afirma que a Lava Jato utiliza um mecanismo conhecido como cláusula de performance, para atrair os investigados a fazer acordos de delação premiada. Essa cláusula estabelece que os delatores podem receber um percentual do dinheiro restituído pela operação. O doleiro Alberto Youssef, por exemplo, receberá 2% do valor que ajudar a localizar e a devolver aos cofres públicos.
“Essa negociação de valores é problemática. É muito diferente da lógica da Alemanha, em que se punem as pessoas físicas sem parar as atividades das empresas”, critica o economista. “Na prática, os empresários estão em prisão domiciliar, em apartamentos e condomínios luxuosos, e as empresas estão impedidas de fazer contratos e realizar operações internacionais. Em última instância, quem acaba mesmo afetado por isso são os trabalhadores”.
Youssef foi condenado por corrupção passiva na Lava Jato. Ele e dezenas delatores, como Paulo Roberto Costa, ex-diretor de abastecimento da Petrobras, Pedro Barusco, ex-gerente de serviços da estatal, e o lobista Fernando Baiano, operador do PMDB no esquema de desvio de dinheiro, assumiram crimes e cumprem pena em casa.
Na próxima reportagem da série, na semana que vem, conheça alternativas para retomada de industrialização e do crescimento – apesar da Lava Jato.

Edição: Ednubia Ghisi