Realidade

Artigo | Na Saúde Pública, a “pena de morte” continua

Valorização do sistema público de saúde é essencial para construção de um projeto político popular no Brasil e no mundo

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |
Demora no atendimento, estrutura física precária, carência de recursos e, sobretudo, falta de vagas em UTIs são recorrentes
Demora no atendimento, estrutura física precária, carência de recursos e, sobretudo, falta de vagas em UTIs são recorrentes - Marcello Casal Jr/Agência Brasil

Em maio de 2015, no artigo Falta de vagas em UTIs: ‘pena de morte’ para trabalhadores/as, escrevia: “A Saúde Pública encontra-se em estado de descalabro total. É um caos generalizado. É uma situação de calamidade, que clama por justiça diante de Deus. A omissão de socorro por falta de vaga em UTIs é uma realidade de todo dia”.

Em agosto de 2016, no artigo Uma desumanidade gritante: a ‘pena de morte’ na Saúde Pública, de novo escrevia: “Infelizmente, essa realidade não mudou, continua a mesma”.

Hoje, em agosto de 2017, sou obrigado, mais uma vez, a dizer a mesma coisa: “Na Saúde Pública, a ‘pena de morte’ continua”, por causa da demora no atendimento, da estrutura física precária, da carência de recursos e equipamentos e, sobretudo, da falta de vagas em UTIs.

Entre as muitas situações que poderiam ser lembradas, só cito algumas - já divulgadas nos meios de comunicação - mais do que suficientes para mostrar o estado de descaso em que se encontra a Saúde Pública. Faltam desde remédios usados para tratar o enfarte até materiais básicos de primeira necessidade. “A falta de medicamentos e materiais de trabalho tem se tornado um problema cotidiano nas Unidades básicas de Saúde de Goiânia e atingem casos de urgência ou não. São antibióticos, medidores de glicose, reguladores de pressão arterial, até luvas e esparadrapos” (O Popular, 05/08/17, p. 12).

“O pedreiro Lindomar Alves dos Santos, de 36 anos, morreu na quinta-feira (dia 3) no Hospital Salustiano, no Setor Aeroporto, depois de passar por uma série de dificuldades em seu atendimento médico. Parentes denunciam que houve omissão de socorro do Atendimento Móvel (Samu). Além disso, o paciente enfrentou, de forma improvisada, dias para conseguir um leito em uma UTI, problemas cotidianos do SUS” (Ib., 08/08/17, p. 12).

“Tem UTI sem doente, tem doente sem UTI”. “Leitos (de hospitais) estão parados por conta de morosidade em cadastro no SUS e erro em sistema faz ministro achar que Goiás tem vagas suficientes. Enquanto isso, pacientes aguardam em fila”. “Na noite da última sexta-feira (dia 11), nove bebês aguardavam em UTIs em Goiás. Enquanto isso, 16 incubadoras de uma UTI neonatal estavam vazias, no Hospital Jacob Facuri, Setor Central de Goiânia”. “Hospitais reclamam de diárias atrasadas”. “Vagas fechadas ainda constam no sistema”. “Leitos de UTI que não existem ou que não são mais utilizados por pacientes do sistema público, continuam a constar no Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (Cnes) (Ib., 15/08/17, p. 12).

Discute-se a aprovação de uma lei que estipule prazos para o atendimento e o tempo máximo de espera para cirurgias, exames e consultas médicas. Que absurdo! A questão da Saúde (que é a questão da Vida) não é uma questão matemática! O único critério para o atendimento deve ser o grau de gravidade da doença. 

Apesar das argumentações que sempre são apresentadas, na Saúde Pública não existem razões que justifiquem essa situação de descaso. Na realidade, o Poder Público (Municipal, Estadual e Federal) não considera a Saúde como a prioridade das prioridades. O problema não é pessoal, mas estrutural e inerente à lógica perversa do sistema capitalista neoliberal, que - como diz o Papa Francisco - ninguém aguenta mais e precisa ser mudado. 

Mesmo nessa verdadeira calamidade pública, graças a Deus, temos profissionais de Saúde (médicos/as, enfermeiros/as e outros trabalhadores/as) - infelizmente, não todos - que trabalham com muita dedicação e amor e que, por fazerem diariamente a experiência de sua impotência diante da situação, sofrem pelo descaso do Poder Público.

Frente a essa realidade, os Sindicatos de Trabalhadores/as, os Movimentos Populares, os Conselhos de Saúde, as Comunidades, as Pastoris Sociais e Ambientais e todas as Entidades de defesa dos Direitos Humanos precisam se unir, cada vez mais, na luta por uma Saúde Pública de qualidade para todos/as: direito do cidadão/ã e dever do Estado.

A lei da preservação da vida está acima de qualquer lei humana, inclusive da lei de responsabilidade fiscal. Do ponto de vista ético, em caso de urgência e emergência, o que deve prevalecer sempre é a lei da preservação da vida, mesmo que seja necessário - às vezes - “desobedecer” à lei de responsabilidade fiscal ou a outras leis humanas.

Nesses casos de urgência e emergência, é obrigação do Poder Público atender a pessoa doente imediatamente, mesmo que - para fazer isso - tenha de pagar por uma vaga em UTI particular e “desobedecer” a outras leis da administração pública. A omissão de socorro é crime e - acontecendo isso - o Poder Público não só pode, mas deve ser processado e responsabilizado criminalmente. O não atendimento ou a demora no atendimento é a decretação silenciosa da “pena de morte”. A vida em primeiro lugar!

Por fim, como a “pena de morte” na Saúde Pública só existe para trabalhadores/as - sobretudo os/as mais pobres - faço um pedido aos advogados/as, principalmente aos criminalistas: dediquem algumas horas do seu tempo à prática do voluntariado na área da Saúde Pública (que é um vasto campo de atuação para vocês) e ofereçam-se aos interessados/as para assumir gratuitamente os casos de “pena de morte”, processando criminalmente o Poder Público e exigindo - se necessário - a devida indenização para as famílias vítimas dessa gritante desumanidade. Será um trabalho muito gratificante para vocês e um testemunho que nos edificará a todos/as. Com esse trabalho, vocês colaborarão eficazmente para extinguir a “pena de morte” na Saúde Pública e para construir o Projeto Político Popular no Brasil e no mundo.

 

(*) Marcos Sassatelli é frade dominicano, doutor em Filosofia pela USP e em Teologia Moral e professor aposentado de Filosofia da UFG.

Edição: Brasil de Fato