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Artigo | O verde dos olhos verdes de meu pai

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Eu gosto especialmente de uma sequência de fotografias. As da praia...
Eu gosto especialmente de uma sequência de fotografias. As da praia... - Arquivo Pessoal
Nessa tarde habitam minhas primeiras memórias

Meus pais guardam dezenas de álbuns de retratos numa mochila coloridíssima que Seu Roberto trouxe de uma viagem de trabalho a Isla de Margarita, do caribe venezuelano, em 1991 ou 1992. Eu os procuro – falo dos álbuns, não de meus pais – assim que o Recife me desconcerta ou se torna úmido demais para eu suportar isto aqui, esta insistência, esta nódoa. Porra, esta manhã.

Já meus pais, eu os procuro às quartas-feiras, para o almoço, ou nas palavras amiúde. “Nódoa”, por exemplo, minha mãe dizia quando tomávamos água de coco e ela, irremediável, preocupava-se com as ameaçadoras manchas nas roupinhas novas com que meu irmão e eu éramos levados a passear no calçadão de Boa Viagem.

Nódoa é doce como a tarde da carne do coco, mas mancha como esta cidade, talvez como uma mensagem não respondida, “então, separei os teus discos, fiquei só com o da Gal de 1971, sei lá, porque ‘sua estupidez não lhe deixa ver que eu te amo’ e eu julguei que o drama todo me caberia melhor, tu vens buscar?” – CRI, CRI, CRI, tão cafona é a ansiedade da espera. Eu gosto especialmente de uma sequência de fotografias.

As da praia, de uma tarde de sábado de 1988, acho, porque o Rafa com a pazinha vermelha à mão não passa dos dois anos e eu sou um pirraia de uns quatro anos brincando com um sapinho verde-encardido de borracha. Nessa tarde habitam minhas primeiras memórias. Ou o que fabulei delas, em meio às reuniões familiares em que a mochila caribenha era aberta e o passado retecido à mesa de centro da sala de estar.

Painho levou uma queda tentando se pendurar numa folha de coqueiro-anão. Mainha usava óculos escuros e vaticinou “Roberto”, como ainda hoje o faz, num insofismável tom de “vai dar merda, tô avisando”. Apesar do susto, Painho não se machucou e nós rimos até o sol baixar contra os prédios da avenida e amarelar as lentes da máquina fotográfica.

Eu apareço sorrindo em duas imagens. Numa delas, estou deitado no chão, com os olhos fechados por conta da areia que eu mesmo sacudia. Os dedos do pé direito de Painho aparecem no canto da foto e denunciam quem flagrava a graça.

Na outra imagem, eu fito – nos meus, o verde dos olhos verdes de meu pai – a câmera. Pareço em movimento, rodando de braços quase abertos em torno do eixo que era o fotógrafo. Iran também revelou essa fotografia. Era 2009, nós namorávamos havia menos de um ano e ele precisou viajar a trabalho para Salvador.

Seriam dois meses longe do Recife. Dinheiro contado de estudante de mestrado, pude visitá-lo apenas duas vezes. Na primeira, encontrei aquela tarde familiar de 1988 no espelho da cama do quarto de hotel em que ele se hospedava. Engraçado, talvez Iran nem saiba. Ali, surpreendido ao meu retrato preferido de menino, eu confiei a ele cada uma das minhas tardes de sábado.

Edição: Monyse Ravena