Mulheres em situação de rua organizam rodas de conversa feministas

Iniciativa do Movimento Nacional da População de Rua, reunião desta semana será na marcha do 8 de março

Por Julia Dolce, de São Paulo (SP)

A capital paulista ganhou, no último ano, quase 70 mil novas pessoas em situação de rua, de acordo com uma pesquisa do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

Apesar de as mulheres ainda não passarem de 15% da população de rua na cidade, elas estão cada vez mais ocupando esse espaço, principalmente devido ao aumento do desemprego. A última Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), do quarto trimestre de 2017, mostrou que o índice de desemprego entre as mulheres é 13,4% contra 10,5% entre os homens. Além do desemprego, os relatos de violência doméstica como causa da situação de rua também são muitos.

Nas duas últimas semanas, mulheres em situação de rua vem se reunindo no Centro de Inclusão pela Arte, Cultura, Trabalho e Educação (Cisarte), instalado sob o Viaduto Pedroso, em São Paulo, para discutirem questões feministas e denunciarem violações.

A iniciativa, que acontece às 14h30 das quinta-feiras, partiu do Movimento Nacional da População de Rua (MNPR), e tem como objetivo pautar as necessidades e problemas específicos desse grupo, inserindo as mulheres no debate feminista.

Nesta quinta-feira (8), Dia Internacional das Mulheres, parte das mulheres que começaram a frequentar os encontros marcharão em conjunto com os movimentos feministas paulistanos, uma ação inédita, que tem como objetivo denunciar também o aumento da população de rua, principalmente feminina.

O Brasil de Fato fotografou algumas dessas mulheres e ouviu suas histórias. Confira:

Heluiza Rodrigues da Silva - 50 anos

“Eu fiquei na rua por seis anos. Tenho um casal de filhos. Eu denunciei meu marido e não fui acolhida pelo poder público, deixei meu marido e fiquei em situação de rua. Fui para um abrigo e ele me encontrou e me esfaqueou. Então me jogaram na rua de novo porque eu era uma ameaça. Eu fiquei como o monstro da história. Preferi voltar para a rua. Hoje estou viva porque me escondi nas ruas. O povo da rua me acolheu bem e hoje eu tento defender a mulher da rua porque eu fui acolhida.

Eu saí da rua há dois anos e meio. Na época, conheci um pessoal de ocupação, fui acolhida lá da violência que eu vinha sofrendo. Até hoje estou lá. Também faço parte do Movimento Nacional da População de Rua. Desde que entrei no MNPR eu não via uma participação grande das mulheres em situação de rua. Eu sempre estou incentivando a participação delas, mas elas precisam de garantia de que se fizerem denúncias terão um acolhimento.

Já participo há um tempo de coletivos e grupos de mulheres, e nunca tinha ouvido falar de um grupo desses formado por mulheres em situação de rua. Começamos a roda de conversa há duas semanas, estamos espalhando os convites nos abrigos e ocupações para unirmos forças, já que o grupo de mulheres em situação de rua só está crescendo.

Violência e preconceito são os maiores problemas das mulheres em situação de rua. Há mais abrigos para homens do que para mulheres. Sempre que eu procurava vagas em abrigos elas já estavam ocupadas. Com a crise e o desemprego a população de rua aumentou muito, são muitas mulheres desempregadas, com filhos. O que nos resta é ocupar. É nosso direito, se há prédios vazios. Não podemos ficar sentadas e esperar. Nossos direitos são negados e a gente tem que batalhar”.

Madalena Maria de Andrade - 49 anos

“Tô em situação de rua desde 2014. Fiz tudo ao meu meu alcance, procurei todos os órgãos de São Paulo, nenhum me deu ajuda. Sofri violência doméstica por 17 anos, tive que fugir com as minhas crianças pequenas porque o pai delas ia passar o carro em cima de mim. Fiquei em uma ocupação por sete meses, mas chegou o despejo. Desse dia em diante eu to até hoje lutando. Consegui auxílio aluguel por um tempo, mas cortaram, e minha situação ficou muito precária. Hoje eu faço alguns bicos, mas não alcanço um salário, tem meses que eu ganho R$200, tem meses que eu ganho R$150.

Agora tá piorando muito. Tá bem mais difícil, tem muito mais gente na rua. Não é que eu não queira trabalhar. Eu tenho problema psiquiátrico, depressão profunda, devido a tudo que eu sofri, tomo quatro remédios controlados. Meu sonho é ter um cômodo para dizer: é meu. Acho que meu maior trauma é não ter um teto na minha cabeça. Tenho seis filhos, todos menores de idade. Às vezes eu fico na casa de amigas que militam em movimentos sociais, mas é tudo na amizade.

Essa é a primeira vez que venho nesse encontro de mulheres em situação de rua. Eu acho essa reunião importante, mas tem muitas pessoas que estão muito desacreditadas, eu tento conversar, trazer elas, mas elas tem alguns bicos e não conseguem acompanhar. Tenho muitas amigas sofrendo mesmo, violência doméstica mesmo, grave. As mulheres não podem ficar na rua não, tem muito assédio, e violência mesmo. Por isso tem noites que as pessoas aceitam deixar as mulheres dormirem na casa delas. Até os homens têm medo, imagina para as mulheres”.

Sueli Aparecida Correa - 59 anos

“Já morei em muitos albergues e em algumas ocupações, e agora tenho um quartinho alugado no bairro da Luz. Estou há 20 anos em situação de rua, ainda me considero nessa situação porque se eu não conseguir emprego eu estarei de volta na rua. Eu trabalhava com jardinagem nas praças e agora encerrou o contrato e estou desempregada, faço bicos. Estou há muitos anos no Movimento Nacional da População de Rua. A gente decidiu juntar as mulheres em situação de rua por conta de todo o sofrimento, desemprego, insegurança, violência, agressões, tudo que as mulheres sofrem, principalmente em situação de rua. A pior parte de ser mulher e estar morando na rua são os estupros. Para mim, a falta de uma oportunidade, uma chance, é a principal questão para eu permanecer na rua. A cada ano que passa aumenta mais a população de rua, há muitas mulheres na rua, por conta do desemprego”.

Cleusa do Carmo Rocha - 57 anos

“Tô na rua desde 29 de abril de 2014. O dono da casa que eu morava me humilhou de todas as formas, me proibiu todos os direitos. Ele me despejou. Sumiu com uma mala que tinha todos meus documentos, referências de trabalho. Eu trabalhava na área da saúde, cuidando de recém-nascidos e idosos. Eu fiquei tão mal, caí em depressão aguda. Falei para Deus que não ia aceitar remédio, que ia me curar. Mudei para Parelheiros, na zona sul, por um tempo. Tentava ligar para ele para conseguir minhas referências, e ele me xingava, ameaça chamar a polícia, me ameaçava de morte.

Estou tendo muita dificuldade para arrumar emprego, especialmente na minha área, por conta da minha idade e da falta de documentos. Aí acabou o dinheiro para o aluguel, não aparecia mais trabalho. Fiquei em situação de rua. Foi terrível. Depois de um tempo eu consegui uma vaga em um abrigo.

A gente tem que gritar, não podemos deixar a maldade humana fazer de nós, principalmente mulheres, lixo. A pior parte da rua é o tratamento, especialmente o preconceito, de todas as espécies. Me convidaram para essa reunião das mulheres, todas as quinta-feiras. Eu precisava disso, porque não aguentava mais. Há muitas que morrem de medo de abrir a boca.

Quanto mais reunião, aglomeração, quanto mais as sofredoras de abandono de todos os tipos, botarem a boca no trombone, melhor. Há muito desrespeito e humilhação nos abrigos, principalmente. É um direito meu e de qualquer outra mulher ocupar um espaço. O tanto que eu já sofri calada, ouvi calada, por necessidade de teto”.

Tatiane Colares de Oliveira - 40 anos

“Sou do Recife (PE). Estou em situação de rua há nove anos. Eu trabalhava de doméstica. Fazia um curso profissionalizante de enfermagem, mas não consegui concluir, e nem consegui mais emprego. Vim para São Paulo grávida tentar, mas não consegui trabalho, estou até hoje com meus filhos na rua.

O mais difícil é colocar em prática a organização dos movimentos. Muito se é dito e pouco praticado. Com certeza é muito importante as mulheres estarem se organizando, uma ajuda a outra no que pode, incentivar um curso, trabalho. Mas tudo isso colocando em prática. Se não não há luz no fim do túnel. Na rua, a ajuda às vezes vêm mais para as mulheres. Nesse patamar a gente se benificia, às vezes. Eu gosto de escrever. Tenho uma novela que chama Amor de Quebra Cabeça. Eu já terminei mas falta digitar os últimos capítulos. Agora estou escrevendo um roteiro de filme. Ele fala sobre homens dispostos, que não temem a dor física, mas que já sofreram a dor emocional”.

Edição: Simone Freire | Fotos: Julia Dolce