Neti Araújo: machismo, resistência e o direto ao lar

Militante conta a trajetória que a levou para o movimento de moradia e a liderar uma das maiores ocupações de SP

Por Rute Pina, de São Paulo (SP)

Por se sentir "dona do próprio nariz" desde pequena, Ivaneti Araújo foi apelidada de "macho-fêmea" pela mãe ainda menina. Hoje, aos 45 anos, ela coordena mais de 230 famílias em uma das maiores ocupações de moradia da cidade de São Paulo (SP), a Ocupação Mauá.

Neti, como é mais conhecida, recebeu a reportagem do Brasil de Fato vestida com uma camiseta preta que trazia estampado o rosto da jornalista Patrícia Galvão — a Pagu, importante ativista política e pela libertação das mulheres na década de 1960. Ao lado da imagem, a frase: "esse crime sagrado de ser divergente: nós o cometeremos sempre".

"A mulher tem que se valorizar e não ficar para baixo com qualquer tipo de crítica. Com a crítica que vier, ela constrói um castelo em cima. Foi o que eu fiz", disse a liderança.

A autonomia que demostrou desde a infância veio, na realidade, da obrigação de amadurecer cedo. Nascida na cidade de Guariba (SP), município de 39 mil habitantes localizado no interior do estado, Neti é filha mais velha de Rosália Araújo, boia-fria que cuidava sozinha de três meninas após o divórcio.

Para auxiliar a mãe, Neti começou a trabalhar aos 9 anos cortando cana-de-açúcar e torrando amendoim. "Eu tinha que ajudar a minha mãe, trabalhava na roça também. Então, eu chegava e a gente dividia as tarefas. Eu não tinha tempo de brincar. Não tive esse momento", recordou.

Despertar da consciência política

Ela parou de estudar aos 11 anos, quando estava no 5º ano do ensino fundamental. Doze meses depois, foi para Ribeirão Preto (SP), município localizado a 320 km da capital paulista, onde passou a trabalhar como doméstica.

Nesse período, pelas casas que trabalhou e morou, começou a despertar para a desigualdade social e para o preconceito racial que passou a reconhecer na pele. "Morava no emprego, no quartinho de empregado, com comida diferenciada. Ouvi até algumas patroas dizer, pelo fato de eu ser negra: 'Você vai para a cozinha depois. Você serve, vai para o seu quarto e depois você volta para a cozinha e come — aproveita e lava a louça'. Ou seja, eu sentia que eu tinha que esperar para poder sobreviver do resto."

Foi nessa época que o ativismo político começou a ganhar corpo na vida dela. A militância viria se consolidar com a participação de Neti no movimento de luta por moradia na capital paulista. Em 1996, já casada e mãe de três filhos, ela mudou-se para a São Paulo (SP), quando a empresa de seu primeiro marido, que era metalúrgico, faliu.

Mas, na capital, a vida não tomou os rumos que ela imaginava. Neti, o marido e seus filhos migraram do aluguel a hospedarias, de pensões a cortiços, até quando, definitivamente, não podiam mais pagar aluguel — o que os levou a ficar situação de rua por seis meses.

"Minha família não sabia, de fato, o que estava acontecendo comigo. Eu ligava para minha mãe, ela perguntava se estava tudo bem e eu dizia que sim", lembrou.

"O meu sonho, até de vir para cá, era de ter uma vida boa e melhor do que eu estava em Guariba e poder voltar para a cidade dando o melhor para minha família, para a minha mãe e para os meus filhos. Mas eu me deparei com a rua. E eu fiquei um pouco envergonhada de dizer para ela a situação."

A primeira participação da família no movimento de moradia aconteceu por acaso. Foi embaixo do viaduto, na região do Glicério, que Neti e o marido receberam o convite para participar de uma reunião sobre o tema. Essa foi a primeira de muitas.

Violência doméstica

Andando pela Ocupação Mauá, o olhar atento da coordenadora nota os problemas do edifício. A checagem do cano estourado no pátio é anotada como uma das tarefas pendentes, entre outras que ela assume no cotidiano do prédio localizado em frente à Estação da Luz.

A ocupação, feita no dia 25 de março de 2007, completa 11 anos com 940 moradores. No dia a dia, a liderança afirma que ditados como "briga de marido e mulher, ninguém mete a colher" não têm vez no local. As coordenadoras e os coordenadores da ocupação tratam publicamente, em assembleias com os moradores, dos casos de relacionamentos abusivos e de violência doméstica.

"Se a mulher procura a gente, a coordenação se unifica, notifica o homem para poder conversar com ele sobre isso. Isso é muito importante e tem dado certo o resultado."

Com isso, Neti pretende apoiar mulheres que passam pela mesma situação de violência e abuso que ela vivenciou no primeiro casamento e que resultou em divórcio.

"Ele falava que, se ele largasse de mim, ninguém ia me querer. 'Uma mulher com três filhos e com a barriga coberta de estrias', ele chegou a dizer isso", lembrou a liderança.

Neti é uma das muitas lideranças femininas no movimento de moradia. A presença massiva de colegas mulheres nas organizações é vista com entusiasmo pela coordenadora da Ocupação Mauá.

"A maioria das nossas mulheres é chefe de família, então, ela pensa em um todo, em um emprego, na escola para o filho, na comida, em um teto, então a luta da moradia só agrega o que a mulher defende", complementa.

Neti comemora o momento de tranquilidade na ocupação, cuja reintegração de posse está suspensa desde outubro de 2017, mas reconhece que, independentemente disso, a luta não para.

"A mulher, anteriormente, não conseguia nem ir à urna dar seu voto. Hoje, ela disputa o voto. Isso é importante e não pode parar. O passo ainda é pequeno, mas retroceder não pode."

Edição: Camila Salmazio | Foto: Marcelo Cruz

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