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Cartas de maio: da égide da escravidão às estruturas escravocratas na sociedade atual

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Idealizada pela diretora Joyce Prado e desenvolvida pela Oxalá Produções, a primeira temporada da websérie contará com treze episódios.
Idealizada pela diretora Joyce Prado e desenvolvida pela Oxalá Produções, a primeira temporada da websérie contará com treze episódios. - Reprodução
Para 51% da população, hoje ainda é 14 de maio de 1888, o dia do abandono

Imagine se pudéssemos escrever cartas para nossos ancestrais relatando como vivem os negros brasileiros, passados 130 anos da abolição da escravatura. 

Essa é a proposta da websérie Cartas de Maio, que será lançada no próximo domingo, dia 13 de maio, data na qual se rememora a abolição da escravatura no Brasil. 

Idealizada pela diretora Joyce Prado e desenvolvida pela Oxalá Produções, a primeira temporada da websérie contará com treze episódios, sendo lançados dois por semana, no canal da Oxalá Produções no Youtube e na Fanpage homônima à websérie. 

Segundo Joyce Prado, não será definido um dia para a divulgação dos episódios. “Como cartas não têm data certa para chegar, os vídeos também não terão, gerando assim, aquela expectativa de quem aguarda uma correspondência”, afirma.

Com o objetivo de problematizar a proximidade temporal desta geração, daquelas que viveram sob a égide da escravidão e, de questionar a permanência de estruturas escravocratas na sociedade atual, Cartas de maio recorre às narrativas subjetivas e afetivas, para dar voz a uma questão objetiva e concreta para a população afrobrasileira: Qual o real legado da abolição? 

Para responder a essa questão, Joyce Prado convidou Ana Claudia Luiz, Alysio Letra, Daniela Andrade, Débora Andrade, Elizandra Souza, Odara Delé, Patrícia Almeida, Vilma Lúcia Warner e eu, Débora Garcia, para redigirem cartas aos seus ancestrais falando sobre essa questão a partir de uma perspectiva subjetiva e empírica. 

O critério para o convite foi o de reunir pessoas afrodescendentes, de ambos os sexos, idades e vivências variadas, mas que convergem no fato de utilizarem o seu espaço social, o seu lugar de fala para problematizar a questão racial no Brasil. 

Os convidados foram chamados a escreverem uma carta à mão propondo um diálogo a partir do que vivemos agora. As gravações ocorreram em abril deste ano, na Ocupação Nove de Julho, no centro velho de São Paulo e também no litoral paulista. Achei simbólicos esses elementos da websérie por serem significativos enquanto legado do 13 de maio. 

Durante um longo período pós-abolição os libertos não tiveram direito à alfabetização. Direito este que somente se efetivou de forma ampla e irrestrita a partir da Constituição de 1988. Não ser alfabetizado significa não poder registrar a sua própria história às gerações futuras, mesmo que através de uma carta, por exemplo. 

Ler essa carta em uma ocupação, local no qual a luta e a resistência por moradia é travada diariamente, também me remeteu a um importante ponto do legado pós-abolição, a restrição do acesso à terra. Em 18 de setembro de 1850, duas semanas após a promulgação da Lei Eusébio de Queiroz, que proibiu o tráfico de escravos no Brasil, foi promulgada a Lei de Terras. Esta lei determinou que qualquer terra somente seria utilizada ou comercializada por intermédio do estado, vetando a aquisição de terras através do trabalho. Dessa forma um negro liberto que obtivesse pecúnia através do seu trabalho, jamais teria acesso à terra. Esse legado do não acesso a terra se perpetua nas ocupações, nos assentamentos e nas centenas de milhares de pessoas, pretas ou quase todas pretas, que vivem em situação de rua, não somente na cidade de São Paulo, mas em todo o país.

 

Por fim, o mar, a última morada daqueles que sucumbiram à travessia pelo Atlântico, daqueles para os quais foi negado sete palmos da terra que semearam, o destino das Cartas de Maio foi ir de encontro àqueles cuja existência jamais saberemos. 

Esse é justamente, o ponto central da websérie Cartas de Maio, nos levar a refletir a partir dessas histórias não oficias, que não foram escritas por aqueles que não foram alfabetizados, que não foram ditas por aqueles que não tinham voz, mas que foram eternizadas nas cozinhas, ao redor das fogueiras, nas memórias das nossas mais velhas e transmitidas através das gerações. 

Para Joyce Prado, a principal expectativa é conduzir os expectadores a uma familiaridade emocional e espiritual com todos aqueles que viveram durante o período escravocrata brasileiro, em especial, os que viveram o dia 13 de maio de 1888. 

“Quando penso nas situações adversas pelas quais essas pessoas passaram, quando penso o quanto elas resistiram e lutaram, só consigo sentir respeito e gratidão. Tenho expectativa de que as pessoas percebam que temos um grande caminho a percorrer para que a abolição seja real para a população afrobrasileira. Mostrar que a escravidão ainda existe através do encarceramento em massa, da falta de habitação, da falta de direitos, do direito à própria vida”, disse.

Cartas de Maio é um convite à resignificar a forma como contamos nossas histórias, para além do açoute e do pelourinho. Traz narrativas de agradecimento aos que se foram e aos que permanecem na luta cotidiana. Traz narrativas de esperanças às gerações futuras. Traz narrativas conscientes de que, para 51% da população brasileira, hoje ainda é 14 de maio de 1888, o dia do abandono.

Edição: Simone Freire