Minas Gerais

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Sonhos de ontem e de hoje na luta pela educação

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Makota Celinha: "Todos sabem que sem o educador, nunca haverá nenhuma outra profissão"
Makota Celinha: "Todos sabem que sem o educador, nunca haverá nenhuma outra profissão" - Agência Brasil
Vejo professor recebendo salário a prestação. Que Estado é esse?

Comecei a lecionar ainda muito menina, nos idos anos de 1978. Era a época do MOBRAL – Movimento Brasileiro de Alfabetização e lembro-me bem das dificuldades impostas a nós professoras naqueles idos anos de chumbo. Tínhamos que arranjar praticamente tudo para montar nossas salas de aula. Eu lecionava na Escola Estadual Sílvio Fonseca, no bairro Nova Vista, na região Leste de Belo Horizonte, e nossos salários eram pagos por alunos frequentes. O pagamento deixava a desejar, mas éramos muito pobres e aquele dinheiro nos ajudava, sem contar, é claro, o amor pelos meus alunos e alunas, alguns já bastante idosos.

Eles se espantavam com a professora que precisava de um banco para conseguir escrever no quadro - sempre tive pouca estatura. Sem contar que de vez em quando ainda dava uns belos cochilos, enquanto meus alunos faziam exercícios. Naquela época eu também trabalhava fazendo pequenos bicos, quando saía do colégio. Mas eu gostava muito de poder ensinar a quem não sabia o be-a-bá. Foi uma das experiências mais gratificantes de minha vida. Sem contar a merenda escolar, um espetáculo: sempre apreciei muito o trabalho das cantineiras da escola, que colocavam muito amor no pouco que tinham nas despensas.

Depois de alguns anos, fui trabalhar como professora contratada do Estado, não sem antes passar por várias escolas de pré-escolar. E conto tudo isso aqui para poder falar das semelhanças e da repetição da história, quando o assunto é o tratamento dispensado aos profissionais da educação. Vivemos fases muito semelhantes com as passadas, em relação ao descaso com aqueles e aquelas que são imprescindíveis em qualquer sociedade que se pretende de fato ser uma sociedade. Todos sabem que sem o educador, nunca haverá nenhuma outra profissão. Até os que se acham os donos da verdade foram educados para estarem onde hoje estão, e, se assim se acham, garanto que não aprenderam a lição.

Vivemos em nossa Minas Gerais um processo esquisito de repetições de histórias que hoje vão na memória do que vivi, e sei de cor, e que achava distantes, mas que se apresentam como meras repetições de um desrespeito para com o que nos há de mais caro: a educação. Eu vivi e vi um governador que nos deu banho de mangueira na Praça da Liberdade, outro que nos chamou de mal amadas e mal casadas, um que soltou cachorros nas professoras e ainda um outro que se esqueceu que era professor. Estive na greve de 79, a maior de todas em nossa história, pelo menos assim acho pelo seu significado político. Vivi nas décadas de 80 e 90 a realidade de professora contratada do Estado, que à época atrasava tanto nossos salários, tanto, mas tanto, que consegui pagar meu parto em uma única parcela com salários atrasados. Recebíamos quase que uma vez ao ano.

Brigávamos e contestávamos, achavam que professora não precisa comer, vestir, andar. Juntava esta ideia a de um machismo execrável, tipo: “elas têm os maridos para lhes pagarem as contas”, quantas vezes ouvimos isso. Nunca nos entenderam e compreenderam que para além do pensamento machista, sempre fomos mulheres de ir à luta, de construirmos nossas histórias e nossas famílias. Trabalhadoras, dedicamos nossas vidas à construção de novas mentalidades e cabeças, na esperança que educando as crianças de hoje não precisaremos punir os homens de amanhã. Acreditamos que também só através da educação conseguiremos assegurar governantes melhores para a sociedade. Sonho? Utopia? Esperança? Quem sabe todas as opções juntas.

Aí, como dói ver a história se repetindo. Há poucos dias, vi a polícia repetir a história do banho de água fria em pleno centro da cidade e no século XXI. A mesma polícia bater em professor, tirar sangue daqueles para quem no mínimo deveriam era tirar o chapéu. Vejo professor recebendo salário a prestação, tal qual os mascates que passam em minha porta vendendo utilidades domésticas, com cartãozinho na mão para anotar os pagamentos. Meu Deus, que país é esse? Que Estado é esse? Que cidade é essa? A pólis do caos? Da brutalidade desenfreada e da desumanidade? Será que realmente preciso ser testemunha ocular de tudo isso?

E para piorar um pouco a situação há o desnorteamento político. Vivemos um momento em que perdas políticas, sociais, trabalhistas em muito contribuem para nosso desequilíbrio emocional, estamos adoecendo vendo as coisas acontecerem sem nada poder fazer. Há um sentimento de inapetência, incompetência, impaciência e de tristeza. Estamos tristes pois vemos nossas conquistas, tão duramente estabelecidas, irem pro ralo construído por um Estado golpista.

Mas, temos que dar a volta por cima, conquistar nossos sonhos novamente. Buscar o sentimento e o desejo da luta. E eu tenho visto isso, na luta dos educadores, que sabem ser bravos, sem perder a ternura, de oferecer àqueles que lhes agridem as flores da resistência. Precisamos trazer à tona o sentimento de rebeldia contra as agressões sofridas, sejam elas de que parte vierem. A rebeldia é necessária para nos acordar dos sonhos incompreendidos. Não podemos nem vamos permitir que a cultura do ódio, da intolerância, do desrespeito dê lugar ao encantamento de poder ver o nascer do sol. O sol nasce para todas e todos, independentemente do local de onde se fala. E acho que é um pouco isso, que buscamos num momento tão difícil em nossa conjuntura, um lugar, um cantinho para ver o sol nascer. E para ver o sol nascer minha barriga tem que estar cheia, minhas contas pagas, meu trabalho reconhecido e valorizado.

Sou de uma tradição que diz que a desorganização contribui para a organização de uma nova ordem, quem sabe não é este o ponto máximo pretendido pelos nossos sonhos, nossas esperanças e muito mais. E por tudo isso, acredito na construção do Congresso do Povo, acho que ele se apresenta como um desafio para deixar para trás a saudade de como era ser militantes aguerridos. Ele se apresenta como a real possibilidade de deixar para trás a saudade desta época e vivê-la com intensidade de uma realidade que não quer se calar: o problema de Minas Gerais, de BH, não é só desta terra do pão de queijo, mas de um país desfolado em sua subjetividade política, um país que vive o desmantelamento da sua jovem democracia, vítima de uma (In)Justiça das togas, de um parlamento medíocre e numa mídia golpista.

Edição: Joana Tavares