Especial | Na expectativa da terra indígena Guasu Guavira

Iniciado em 2009, processo de demarcação envolve os Avá-Guarani de 14 aldeias do extremo oeste do Paraná

Júlia Rohden e Matheus Lobo

A Fundação Nacional do Índio (Funai) tem até final de setembro para divulgar, sob risco de multa aos responsáveis, os relatórios de identificação e delimitação da terra indígena Guasu Guavira, nos municípios de Guaíra e Terra Roxa, oeste paranaense. O prazo foi fixado pela Justiça Federal do Paraná, em sentença de outubro de 2017, na qual a Funai é acusada pelo Ministério Público Federal (MPF) de protelar os estudos demarcatórios iniciados em fevereiro de 2009. Publicados os relatórios, abre-se um período de 90 dias no qual qualquer pessoa pode pedir indenização ou contestar a demarcação das terras; em seguida, os documentos são enviados pela Funai ao Ministério da Justiça para possível demarcação.

O reconhecimento da terra indígena é a principal esperança dos indígenas Avá-Guarani, que atualmente ocupam 14 aldeias, para viverem melhor e conforme sua cultura e costumes. O professor guarani Edilino Mertino explica que o reconhecimento das terras é o que pode transformar a vida da comunidade. “O que significa a demarcação para nós: manter nossa cultura, nossa crença, nossa língua, nossa natureza, nosso mato, nosso remédio. Isso é a nossa vida”, resume. Ele acrescenta que, com o processo, também esperam a construção de uma escola para as crianças. “Como vocês veem, a gente não tem uma escola ainda”, indica Mertino.

Atualmente, a maioria dos Avá-Guarani de Guaíra e Terra Roxa vivem em terras formalmente privadas, em disputa judicial nos vários processos de reintegração de posse contra os ocupantes. “A gente está na luta para manter nossa cultura e, para isso, precisamos de terra, terra demarcada. Porque a terra em que estamos tentando sobreviver é considerada particular, então corremos o risco de ser despejados a qualquer momento. Corremos o risco de ser expulsos pelos próprios fazendeiros”, explica o cacique da Tekoha Porã, Ilson Soares.

Como se não bastassem os riscos de despejo, os proprietários pressionam o poder público para impedir que serviços básicos cheguem até as aldeias, como água encanada, energia elétrica e construção de escolas. “O fazendeiro fala que, antes de demarcação, não quer que cheguem projetos para a aldeia, moradia, água. Não quer aprovar escola para nós na aldeia”, reclama o cacique José Carlos, da Tekoha Tatury, em Guaíra.

O secretário de Segurança Pública de Guaíra, Edson Manoel Auler, diz que, na maioria dos casos, “o poder público não pode ajudar” no atendimento aos “invasores”. “Chegou recomendação do estado [do Paraná] para que o prefeito fizesse escola. Mas como vamos construir escola numa área particular, privada? Improbidade administrativa para o prefeito!”, alega.

Em apenas uma das aldeias foi construída uma escola indígena de ensino fundamental pelo poder público. Foi na Tekoha Marangatu, ocupada em outubro de 2004, em área de preservação reivindicada pela Usina de Itaipu. Na sentença sobre ação de reintegração de posse, de três anos depois, o juiz federal negou o pleito da usina e autorizou a construção de uma escola, que seria inaugurada em 2010, após uma série de mobilizações da comunidade, liderada pelo cacique Inácio Martins.

Processo demarcatório evita despejos

Além de garantir a permanência na terra e encaminhar a construção da escola, a decisão da Justiça Federal, de dezembro de 2007, passou a ser referência para as retomadas seguintes, ao reconhecer a presença ancestral dos guarani nas áreas em litígio. O juiz Luiz Carlos Canalli declarou que “as terras ocupadas pelos índios Avá-Guarani constituem terras indígenas tradicionalmente ocupadas, não podendo ser objeto de domínio ou posse, senão pelos próprios índios, conforme disposição constitucional, independente de prévia demarcação”.

No mesmo ano de 2007, outras duas ações de reintegração de posse foram movidas contra indígenas – da Tekoha Porã, antiga aldeia que resistiu ao avanço da cidade de Guaíra, e da Tekoha Araguaju, em Terra Roxa, fruto de retomada de 2005. Em todos os processos, a Funai foi intimada a dar explicações e tomar providências. Nesse contexto, em fevereiro de 2009, foi constituído o primeiro Grupo Técnico (GT) para realizar os estudos de identificação e delimitação de possível terra indígena na região, em um primeiro momento, considerando as Tekohas Porã, Araguaju e Marangatu.

O MPF, que, segundo a Constituição de 1988, tem a função de “defender judicialmente os direitos e interesses das populações indígenas” passou a acompanhar o andamento do processo na Funai. Após três anos de diligências sem resultados concretos, o MPF ajuizou Ação Civil Pública, em 2012, contra a fundação indigenista a fim de apurar o atraso no processo demarcatório. É sobre este processo que, em 2014, a Justiça faria os estudos avançarem com decisão liminar e, em 2017, emitiria sentença fixando prazo final para publicação dos relatórios pela Funai.

Paralelamente, outras retomadas foram realizadas, chegando ao número atual de 14 aldeias em Guaíra e Terra Roxa. Sobre cada uma delas houve pelo menos uma ação de reintegração de posse. De acordo com o Relatório sobre Violações de Direitos Humanos contra os Avá-Guarani do oeste do Paraná, atualmente, há 11 pedidos de remoção em andamento na Justiça Federal contra as aldeias. A maior parte está parada, aguardando a definição dos estudos de identificação e delimitação da Funai.

Em um dos processos mais recentes, da Tekoha Tajy Poty, de Terra Roxa, o juiz afirma, em setembro de agosto de 2016, que “o julgamento da presente reintegração antes da finalização do processo demarcatório pode ter o efeito nocivo de acirrar ainda mais os ânimos entre os autores e os indígenas, provocando confrontos diretos e expondo a integridade física dos grupos envolvidos na disputa fundiária”.

O passo a passo da demarcação

A Constituição de 1988, em seu artigo 31º, garante o direito dos povos indígenas sobre as terras que tradicionalmente ocupam. Além disso, reconhece que a posse dos territórios é anterior à formação do Estado nacional e existe independentemente de qualquer formalidade. É o chamado direito originário. O processo administrativo de demarcação, portanto, tem caráter meramente declaratório. “A terra indígena não é criada por ato constitutivo, e sim reconhecida a partir de requisitos técnicos e legais”, como explica a Funai em seu site.

A procuradora Hayssa Jardim, do Ministério Público Federal do Paraná (MPF/PR) lembra que a Constituição estabeleceu um prazo de cinco anos para concluir a demarcação de todas terras indígenas do país, em suas disposições transitórias. Com 25 anos de descumprimento da meta, o Conselho Indigenista Missionários (CIMI) estima que há 530 terras indígenas sem providência do Estado para início do processo de identificação.

Atualmente, é o Decreto 1775, de 1996, que regulamenta o processo demarcatório. A primeira etapa, dos estudos antropológicos, históricos, ambientais e fundiários são de responsabilidade da Funai. Finalizados, os relatórios são remetidos ao Ministério da Justiça, para declaração, e, em seguida, à Presidência da República, para homologação.

Atualmente, há 462 terras indígenas regularizadas no Brasil, o que representa cerca de 12,2% do território nacional, concentradas a maior parte na região Norte. Outras 245 estão em alguma fase do processo. No Paraná, são 18 terras regularizadas, que representam apenas 0,43% da área do estado. Quatro terras (entre elas a Tekoha Guasu Guavira) estão em estudo; três estão delimitadas pela Funai (aguardando Ministério da Justiça) e duas declaradas pelo Ministério da Justiça (aguardando homologação da presidência).

No caso da Tekoha Guasu Guavira, que engloba as 14 aldeias de Guaíra e Terra Roxa, a presidência da Funai tem até o dia 31 de dezembro para despachá-lo ao Ministério da Justiça. Como o processo demarcatório inclui um período de 90 dias para possíveis contestações antes do envio ao Ministério, a fundação deve divulgar os relatórios, em Diário Oficial, até final de setembro, caso queira cumprir a sentença da Justiça Federal do Paraná.

O caso Embrapa

De 2009 (quando foi constituído o primeiro GT da Funai para identificação de terra indígena em Guaíra e Terra Roxa) até hoje, há dois momentos em que o governo federal buscou interferir diretamente no processo demarcatório para suspendê-lo. O primeiro, em 2013, no governo Dilma Rousseff (PT), teve como protagonista a então ministra-chefe da Casa Civil e atual senadora, pelo Paraná, Gleisi Hoffmann. O último, no ano passado, já no governo do golpista Michel Temer (MDB), envolveu os ministros da Justiça Osmar Serraglio e Torquato Jardim.

Em oito de junho de 2013, Guaíra e Terra Roxa apareceram no Jornal Nacional, da Rede Globo. O apresentador Evaristo Costa anunciou: “um relatório da Embrapa afirma que terras que a Funai quer ver demarcadas no Paraná não são ocupadas por índios”. Sem contextualizar a presença (e as sucessivas remoções) dos Guarani na região oeste do Paraná, a matéria indica que dez aldeias registram ocupação recente (a partir de 2007) e em quatro não há presença indígena. O repórter diz ainda que a equipe de jornalistas encontrou índios que “pareciam vir de fora do Brasil”, no caso, do Paraguai.

Com base no suposto relatório da Embrapa, a Casa Civil pediu ao Ministério da Justiça a suspensão dos processos demarcatórios em andamento no Paraná. Até hoje, o material não veio a público. Ficou restrito a referências da imprensa comercial.

Em resposta a um pedido de esclarecimento do Instituto Socioambiental (ISA), via Lei de Acesso à Informação (LAI), em 3 de julho de 2013, a Embrapa informou que o relatório, na verdade, era um “documento básico e preparatório, que compõe um amplo estudo em elaboração pela Casa Civil e, assim, é compreensível apenas no contexto desse estudo maior”. Tal estudo maior nunca foi disponibilizado.

Vereador de Cascavel (cidade a 140 km de Guaíra), o professor e indigenista Paulo Porto (PCdoB) também requereu o relatório na ocasião. “A Embrapa respondeu que não existia laudo. Essa coisa da Embrapa foi uma palhaçada”, recorda o parlamentar. Porto também é coordenador do Observatório Social das Terras Indígenas do oeste do Paraná e do portal Oguata Reguã.

Apesar da movimentação política, a Justiça Federal do Paraná faria os trâmites da demarcação avançarem, em janeiro de 2014, com liminar em processo do MPF contra a Funai. Nessa decisão, a Justiça caracterizou os estudos realizados pelo Grupo Técnico (GT) de 2009 como “imprestáveis” e determinou a constituição de nova equipe de trabalho. Contatada pela reportagem, a antropóloga responsável pelo primeiro GT não quis se pronunciar.

O novo GT foi constituído pela Funai pouco menos de um mês depois e efetivamente realiza o trabalho de campo. Os estudos antropológicos e históricos seriam entregues à presidência da Funai no início de 2015 e protocolado na Justiça Federal em meados de 2016. Com a justificativa de evitar o acirramento do conflito entre indígenas e produtores rurais, a Funai requereu, e conseguiu, segredo de justiça para seus relatórios.

Faltava o levantamento fundiário e cartorial, etapa dos estudos sobre a ocupação e a titulação das áreas que podem ser demarcadas. Nesta fase, além da Funai, participam representantes do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), do governo estadual e das prefeituras.

Ultimato da Justiça

O planejamento previa início no segundo semestre de 2016, mas o primeiro passo é dado apenas em março do ano seguinte, com resistência dos governos municipais de Guaíra Terra Roxa, que se recusaram a indicar servidores para acompanhar o trabalho no primeiro momento. Em 15 de maio de 2017, os prefeitos vão a Brasília para tratar da demarcação com a presidência da Funai, sob comando de Wallace Bastos. Três dias depois, solicitam, por ofício à fundação, a suspensão do processo, alegando não terem acesso aos relatórios prévios produzidos pelos grupos técnicos. No fim do mês, o então Ministro da Justiça Osmar Serraglio, atualmente deputado federal (PP) pelo Paraná, atende ao pedido e determina a suspensão dos estudos. A interrupção dos trabalhos, a mando do ex-ministro, foi formalizada no mesmo dia em que os membros do Grupo Técnico viajariam ao oeste do Paraná, 29 de maio. Curiosamente, Serraglio também estava de malas prontas, já que seria exonerado, em 31 de maio, por conta de envolvimento no escândalo da Operação Carne Fraca.

Intimada a dar explicações, a Funai explicitou a intervenção do ministro. À Justiça, disse que os estudos fundiários da Tekoha Guasu Guavira “não foram realizados no primeiro semestre do corrente ano (2017) por motivos alheios à vontade desta ré” e que “a suspensão dos atos do processo demarcatório se deu por determinação de autoridades superiores da administração pública federal a que está vinculada”.

O cacique da Tekoha Y’Hovy Ilson Soares resume a situação. “A Justiça determina que a demarcação aconteça, mas a política manda parar. Querendo ou não, a gente está em uma região em que predomina o agronegócio, soja e milho. Os políticos têm trabalhado com os fazendeiros pra oprimir o movimento indígena. Não tem avanço porque tem prefeito que vai a Brasília pedir ao Ministério da Justiça, Funai, não sei quem mais, para parar o processo de demarcação ou para revogar alguma portaria de GT. A gente não tem essa capacidade, a gente está aqui na ponta. A nossa luta tem surtido pouco resultado por causa disso”, analisa o jovem cacique de Guaíra.

Ainda assim, a Justiça destravaria o processo novamente, desta vez em sentença definitiva de primeira instância, em 13 outubro de 2017. Nessa decisão, a juíza federal Mariana Contessa afirma que “o longo prazo decorrido para a realização do processo de demarcação, assim como os fatos noticiados pela FUNAI demonstram que a sua atuação tem encontrado inúmeros entraves de cunho político nas diversas esferas do governo”. A sentença determina que “até o final do ano de 2018 deve estar concluída, ao menos, a etapa de tramitação do procedimento no âmbito da FUNAI, com o processo já no Ministério da Justiça”. A juíza considera que a conclusão no tempo previsto é “absolutamente razoável”, “se não forem impostos empecilhos políticos externos”.

Os setores anti-demarcação não se dariam por vencido. Em 25 de outubro, o presidente da Funai, Franklimberg de Freitas, pede nova suspensão do processo, alegando pedido de vistas do Ministro da Justiça, Torquato Jardim. Desta vez, os técnicos já estavam em Guaíra e foram convocados a retornar a suas cidades de origem.

A resposta da Justiça, contudo, foi rápida. Em dois dias, novo despacho intima o presidente da fundação e o ministro para retomarem os trabalhos, sob pena de multas pessoais “num valor considerável e suficiente para impedir novas suspensões”, pois não havia “argumento plausível que justifique a interrupção dos trabalhos já iniciados, em prejuízo à programação dos membros do grupo de trabalho”.

Finalmente, em 14 de novembro foi formado novo Grupo Técnico para o levantamento fundiário, que foi concluído apesar das manifestações anti-indígena e da contrariedade das prefeituras.

A Funai confirmou à reportagem que os relatórios dos Grupos Técnicos estão finalizados, restando análises administrativas antes da divulgação. Quanto ao prazo, por outro lado, a assessoria de comunicação da fundação afirmou que “ainda não há uma data estabelecida para isso”.

O cacique Ilson Soares, da Tekoha Y’Hovy, se preocupa com a indefinição e sabe que há setores que vão seguir trabalhando contra a demarcação. “Enquanto os processos de demarcação se arrastam, o conflito ora fica intenso e ora dá uma acalmada. Mas a gente sabe que nesse silêncio eles estão articulando alguma coisa. Só não sabe o quê. E, de alguma maneira, a gente não pode fazer nada”, prevê a liderança guarani de Guaíra.

Leia as cinco reportagens do especial Avá-Guarani: Território em disputa

Este especial foi produzido com apoio do Edital de Jornalismo Investigativo e Direitos Humanos, do Fundo Brasil