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Repórter SUS | Tratamento para hepatite C em risco

Remédio patenteado para a doença é cinco vezes mais caro que o produto genérico produzido no Brasil

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Ativistas protestaram, em 23/08, em frente ao escritório da farmacêutica Gilead, em São Paulo
Ativistas protestaram, em 23/08, em frente ao escritório da farmacêutica Gilead, em São Paulo - Foto: Agência Aids
Remédio patenteado para a doença é cinco vezes mais caro que o produto genérico produzido no Brasil

Uma liminar da Justiça Federal em Brasília anulou, na segunda-feira passada (24), a concessão da patente à indústria farmacêutica norte-americana Gilead do principal medicamento utilizado no tratamento da hepatite C, o Sofosbuvir.

A autorização à farmacêutica estadunidense para a produção do medicamento, oferecido pelo Sistema Único de Saúde (SUS), foi concedida pelo Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI), no dia 8 de setembro.

Essa decisão passa a impedir a fabricação de um genérico tão eficaz quanto a medicamento patenteado, a um custo quatro vezes menor, pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e uma farmacêutica brasileira.

As duas instituições já haviam obtido o registro da Agência Nacional de Vigilância em Saúde (Anvisa) para a fabricação do genérico. Diversos países do mundo já não reconhecem a patente do Sofosbuvir por entender que confronta o interesse de saúde pública.

No Repórter SUS desta semana, produzido em parceria com a Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio da Fiocruz, o médico e doutor em Saúde Pública Jorge A. Zepeda Bermudez, coordenador do Departamento de Política de Medicamentos e Assistência Farmacêutica da Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca, fala sobre os impactos que a concessão de patente teria sobre o SUS, como o aumento dos custos para o tratamento da hepatite C, e quem perderia com a medida.

Confira trechos da entrevista:

Vimos nestes últimos dias toda uma confusão, uma polêmica em relação à concessão de patente pelo INPI a um produto para tratamento da hepatite C, o Sofosbuvir. Os [medicamentos] antigos de ação direta, o Sofosbuvir sendo o principal deles, foram lançados no final de 2013 no mundo inteiro, inicialmente a um preço de 84 mil dólares pelo custo de tratamento. São 84 dias [a duração] do tratamento, de maneira que foi chamado de "pílula de mil dólares".

Logo depois, com a reclamação de todo mundo, a própria Gilead [farmacêutica], que era a detentora da patente, embora não tenha feito pesquisa; ela [Gilead] comprou uma firma por 13 bilhões de dólares, em três anos de [produção e comercialização do] Sofosbuvir já faturou mais de 40 bilhões de dólares; sublicenciou 11 companhias indianas para produzir a 800 dólares, baixando assim 100 vezes o preço.

Aí é possível observar a cobiça, a voracidade da indústria e a falta de referência. Nesse sentido, há uma coisa muito importante, a diferença entre custo e preço. Custo é possível medir, preço, por ser um monopólio, é arbitrado pela companhia da forma que ela quiser e sai por aí comercializando.

Aqui no Brasil, a Fiocruz junto com o consórcio BMK -- três empresas do setor privado de capital nacional -- fizeram um acordo de cooperação para desenvolver o Sofosbuvir, e conseguiram desenvolver tanto a matéria-prima quanto a formulação, registraram na Anvisa, foi autorizado e está sendo ofertado ao SUS a um preço cinco vezes menor que o preço atualmente fornecido pela multinacional ao Sistema Único de Saúde.

Toda a pressão foi feita, da sociedade civil, da academia, das indústrias de capital nacional, para que a patente não fosse concedida pelo Instituto Nacional de Propriedade Industrial. Tudo indicava que a patente não seria concedida, até porque a Anvisa, que tinha um instituto de anuência prévia com o INPI, havia indeferido esse pedido. Mas isso não foi levado em consideração pelo INPI e fomos todos surpreendidos com o deferimento da patente.

O que joga por terra uma estratégia de baixar o custo, de fornecer o produto, aumentar o número de pessoas que tomariam esse medicamento, e onera o Sistema Único de Saúde em torno de 1 bilhão por ano a mais. Além de ser um monopólio, e todo o monopólio não tem competição, portanto, não sabemos o que pode acontecer depois que a indústria começar a fornecer. Poderá aumentar o preço e ficaremos nas mãos deles [farmacêutica Gilead].

Temos que considerar que, além do acesso ao medicamento, para um Brasil com 200 milhões de habitantes interessa também deter a tecnologia, deter a produção nacional, [dar] capacitação, gerar empregos, [defender] a soberania nacional; não podemos depender de um produto eternamente importado.

É um baque o que nós estamos sofrendo. Não sabemos o que realmente pode acontecer, porque se transformou no que eu estou chamando de "maior emaranhado jurídico e político dos últimos tempos". 

Já houve ação popular para revogar essa decisão do INPI, já teve um juiz em Brasília que deferiu essa liminar cassando a patente, e é claro que a indústria vai entrar com recurso. Então, temos que acompanhar muito de perto e esperamos que tudo se solucione a partir de uma visão de saúde pública, que a saúde prevaleça acima dos interesses comerciais.

Embora nós tenhamos na Constituição, muito mais importante que o direito do inventor, que a saúde é um direito de todos e dever do Estado, temos que ter nesse exemplo uma repercussão internacional. O mundo inteiro está acompanhando o que está acontecendo no Brasil. Esperamos, realmente, que essa patente seja revogada, indeferida de uma ou outra maneira, e prevaleça a visão de saúde pública.

Edição: Cecília Figueiredo