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Pratos de matriz africana, tapioca e abará tentam resistir à gourmetização

Receitas idealizadas durante a escravidão perderam a essência, analisa chef de coletivo negro

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Recheios inusitados e preços abusivos têm descaracterizado a tapioca, explica Ciça Alves
Recheios inusitados e preços abusivos têm descaracterizado a tapioca, explica Ciça Alves - Divulgação/Pixabay
Receitas idealizadas durante a escravidão perderam a essência, analisa chef de coletivo negro

Não é difícil encontrar na internet vídeos que expliquem como fazer uma tapioca rosa, usando corante natural, com recheios de morango, doce de leite e outros alimentos.

A essência da tapioca, enquanto modo de fazer e dos ingredientes utilizados, no entanto, está distante de todas as transformações ocorridas ao longo dos últimos anos.

As mutações ocorridas nesse prato são um exemplo de como alimentos trazidos por negros ao Brasil, e que serviram como resistência cultural durante a escravidão, estão sendo descaracterizados.

A chef Ciça Alves, responsável pela culinária do coletivo Aparelha Luzia, afirma que há uma desfiguração da tapioca e a respectiva gourmetização de outros pratos históricos

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“A tapioca é um prato afro-indígena, que foi gourmetizada com essa coisa das tapiocarias, com recheios inusitados. A tapioca tradicional é feita com côco ou manteiga de garrafa. Agora, além de cara, a tapioca também perdeu toda a essência”, diz.

Glauco Ricciele, mestre em políticas públicas, acredita que as mudanças alimentares têm ocorrido há mais tempo e por motivações distintas.

Uma delas, aponta o estudioso, é o fato de que ingredientes de matriz africana não eram encontrados no Brasil. A substituição desses alimentos gerou um processo de aculturação, diz Glauco.

“Isso foi uma maneira de incorporar alimentos nessa culinária, inclusive os portugueses, que acabou por mudar a culinária africana. Todo conhecimento trazido de lá foi adaptado para a nossa localidade. Alimentos como milho e mandioca foram incorporados ao cotidiano”, comenta.

Entre a aquisição de novos ingredientes e a descaracterização de outros, Ciça Alves destaca o processo de resistência negra na cozinha, especialmente frente ao poder do capital.

“Os grandes chefes de cozinha têm muitos recursos para investir em cursos, viagens, para se apropriarem do conhecimento gastronômico de diversas culturas. Mesmo aqui no Brasil eles conseguem ir a lugares distantes para encontrar novos ingredientes”, critica.

Ainda que o monopólio financeiro e operacional possa ter mudado de mãos, Ciça Alves e Glauco Ricciele destacam pratos que seguem fiéis ao modo de preparo original criado na matriz africana. A chefe do coletivo Aparelha Luzia cita a “muqueca tradicional baiana” e o xinxin, espécie de cozido, que pode ser de galinha ou frango.

Glauco Ricciele lembra do acarajé, o abará, um bolinho feito com massa de feijão tipo fradinho e o aberê, semelhante ao abará e também consumido após processo de fritura.

No mês da consciência negra, comida, assim como cultura e política, também são formas de resistência

Edição: Guilherme Henrique