Situações de rua: histórias de quem tenta sobreviver à crise debaixo do viaduto

Recessão e desmonte de políticas públicas fazem disparar o número de pessoas sob o Minhocão, em São Paulo

Beatriz, de 24 anos, está na rua há nove meses. Depois de ir morar embaixo do Minhocão, pretendia seguir trabalhando como operadora de caixa no supermercado Extra, mas acabou sendo demitida: “Até três meses atrás eu trabalhava, mesmo morando na rua”, diz. “A cada dia, você vai perdendo uma coisa dentro de casa, daqui a pouco você perde a casa. Aí, optei por deixar minha filha com a minha mãe, porque achei que era o melhor para ela, e fui pro abrigo. Hoje se eu tiver uma casa de volta, eu dou valor, não saio mais”.

Do início do Minhocão, oficialmente chamado de Elevado João Goulart, antigo Costa e Silva, na altura da Rua Consolação, até o final, na Avenida Pacaembu, são três quilômetros de caminhada. No fim da manhã de segunda-feira (18), a reportagem do Brasil de Fato percorreu esse trajeto a pé, ao longo das ruas e avenidas que correm sob o Elevado. Ao longo do percurso, contamos 109 pessoas morando entre os carros, ônibus, bicicletas, e os pedestres que atravessam apressados.

Segundo estimativas da Prefeitura de São Paulo, 25 mil cidadãos em situação de rua vivem na capital. Em 2007, data do último censo, eram 15 mil. Entre as causas apontadas, estão a crise econômica, o aumento do desemprego e o desmonte de programas sociais de amparo aos mais pobres.

O objetivo desta reportagem é mostrar, por meio de depoimentos de homens e mulheres, a luta diária de quem vive ali, sob as arcadas do Minhocão. Buscamos entender qual foi a trajetória de cada um dos entrevistados até chegarem nessa situação, quais são as principais dificuldades vividas no cotidiano, como é o preconceito, a opressão e, por fim, o que diriam para quem hoje se encontra em uma posição mais confortável.

Por Marcos Hermanson. De São Paulo (SP).

As origens

Espremidos entre a ciclovia que ocupa o amplo meio-fio debaixo do viaduto, entre os pontos de ônibus, o fluxo de carros nas seis pistas das avenidas General Olímpio da Silveira, Amaral Gurgel e São João, e seus dois corredores de movimento e fumaça incessante, as pessoas em situação de rua vão improvisando modos de viver, se esquivando das goteiras que escoam a água de durante o verão chuvoso de São Paulo. O lixo que se acumula na região, os pés esticados durante a noite que invadem o espaço dos ciclistas, os móveis provisórios, as rodas de baralho, os restos de comida, um filhote de cachorro e um jogo de baralho - ou uma cozinha - inventada, vão aquecendo as vidas daqueles que não tiveram alternativa.

“Faz quatro para cinco anos. Eu fiquei desempregado, o local onde morava era de aluguel, tive que entregar. A única opção que tive foi a rua. Trabalhava em restaurante e como promotor de vendas em um supermercado. A minha esposa estava comigo aqui na rua, ela faleceu”, conta Rosias Monteiro, 48. Enquanto fala conosco, segura a cadela Estrela nas mãos. Cuidar dela foi o último pedido de sua esposa.

Ele vende livros na calçada da Avenida São João durante o dia, e dorme sob a estrutura do Minhocão durante as noites. “Desde o tempo que estou nesse local aqui, aumentou [os moradores de rua] uns 300%. Era só eu e mais quatro, de repente apareceu um monte”, afirma.

Isabel Cristina da Silva tem 38 anos. Ela fala conosco sentada sobre um grande sofá-cama cinza encostado nas grades do terminal Amaral Gurgel, região da Santa Cecília. Ela atribui à dependência química sua chegada à rua: “Há uns quatro anos eu andava de carro importado, só usava ouro no corpo, e agora estou aqui. Eu achei bom Deus ter permitido eu chegar até aqui, porque eu não era humilde. Antigamente eu não comia do prato de ninguém, e não dava nada pra ninguém. Hoje eu sei receber e dividir.

Davi Albuquerque tem 28 anos. Fã de Vivaldi e Beethoven, ele vive entre discos de música clássica, que não consegue escutar porque não tem uma vitrola: “Sou pai de família, tenho uma filha que tem cinco anos de idade e vou ganhar mais uma na rua. Hoje eu luto por um emprego, um trabalho, uma moradia digna. Estou em São Paulo há cinco anos, trabalhei na Linha 4-amarela, trabalhei na prefeitura como roçador. Vim parar na rua por falta de estrutura. Bolsa Família cortado, Renda Cidadã cortado”.

Levando tudo de quem nada tem

Um aspecto comum em todos os relatos é ação do “rapa”, que é a ação dos agentes de limpeza urbana e da Guarda Civil Metropolitana (GCM). Os moradores de rua relatam abusos frequentes, como xingamentos, retirada de documentos, objetos pessoais e itens básicos de higiene.

Isabel Cristina já desistiu de discutir com os agentes do Estado responsáveis pela remoção. Hoje, ela cuida para não ficar distante dos pertences por muito tempo. Quando suas coisas são levadas, aguarda novas doações: “Eu tenho um problema com o rapa. A gente já não tem quase nada ou nada, e pouco que a gente ganha e tem, eles encostam o caminhão e levam tudo, largam a gente dormindo no chão. Ninguém é bicho aqui”

“O rapa passa aqui todos os dias, leva as coisas de todo mundo, deixa ninguém sem nada. Levam tudo, até documento. GCM, prefeitura, rapa, por que não levam [a população de rua] para a casa do Dória, do Bruno Covas?”, diz Monteiro

“O rapa vem pra desmoralizar. Ele não quer saber se você só tem aquela calça, aquela blusa. Aí você tem que correr atrás tudo de novo, fica bem mais difícil você conseguir um serviço, concorda? Se você foi no banheiro, deixou sua bolsa com documentos e não tá aqui, o rapa passou e levou”, diz Beatriz. A ex-atendente decidiu não revelar seu sobrenome.

Lições

“Aproveitar o máximo o que tem, porque quando você perde é horrível”, conta Beatriz, quando perguntada se haveria algo que gostaria de dizer para as pessoas que hoje não moram na rua. “Se eu falar que é uma vida ruim na rua, é mentira. Porque você tem tudo: Comida, roupa, banho. Mas se falar que é uma vida de felicidade também é mentira”.

Isabel Cristina contraria o senso comum, e afirma que é possível encontrar a felicidade vivendo na rua: “Eu sou feliz na calçada, porque através de uma calçada conheci a pessoa que eu amo. Os dois eram usuários de droga, hoje em dia não usamos mais. Eu tô com uma pessoa que eu amo, então não importa aonde”, conta ela ao lado do companheiro Júlio César, que chega depois para acompanhar a entrevista.

Sobrevivendo às margens no centro da grande metrópole, estes homens e mulheres carregam uma consciência política afiada. “Quem faz a política é nós, quem faz a justiça é nós. Sou cidadão, sou morador de rua. Tudo que eu preciso pra sair da rua é um país com igualdade”, encerra Davi.

Edição: Pedro Ribeiro Nogueira Vídeo: Juliano Vieira