Especial | Saberes da Terra

Escolas públicas em assentamentos do MST estão transformando a vida de milhares de jovens no campo

A série de quatro reportagens apresenta três experiências de escolas do campo em assentamentos do MST que são exemplares no ensino: Piauí, Pará e Paraná. Essas escolas estão entre as duas mil que resistem às dificuldades enfrentadas no meio rural, como longas distâncias, formação, falta de infraestrutura e preconceito, e rompem com imaginário de que as escolas do campo são atrasadas. O Brasil de Fato conversou com educadores, alunos, famílias assentadas e o MST sobre educação, e traz perspectivas sobre os desafios dessas escolas no governo Bolsonaro.

Capítulo 1: Como funcionam as escolas do campo que estão na mira do governo Bolsonaro

O lugar onde você mora fica a muitos quilômetros da cidade e você e outros meninos e meninas querem estudar, mas lá não existe escola. Você e as famílias da sua comunidade se juntam e coletivamente constroem uma, conseguem apoio e autorização do poder público e educadores da própria comunidade fazem parte do dia a dia escolar. É assim que nascem as escolas que atendem crianças e adolescentes sem-terra na zona rural brasileira. Ao ocupar uma terra improdutiva, uma das principais preocupações do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) é assegurar o direito à educação das famílias camponesas.

Foi assim, por exemplo, com a Escola Bernardo Sabino, no Assentamento Palmares, em Luzilândia, norte do Piauí. A alfabetização das crianças começou a acontecer pelos próprios assentados em um barracão de palha e hoje mais de 20 anos depois, se tornou uma referência na região pela qualidade de ensino.

“Em 1997, quando se estabeleceu o acampamento, buscamos quem tinha maior nível de escolaridade entre os acampados. Eu só tinha ensino médio. Começamos a alfabetizar as crianças e depois de três anos legalizamos a escola. Porém, professores da rede municipal se recusavam a dar aula no assentamento. Nós tivemos que nos organizar e fazer curso superior em outro estado. Voltamos pra escolinha com a proposta de ensinar voltado mais para a educação do campo”, lembra Ildener Pereira de Carvalho, assentada e educadora da escola que fica a 240 quilômetros da capital Teresina.

Um dos primeiros desafios das famílias é conseguir apoio do poder público para construção dos espaços de ensino, apesar das dificuldades enfrentadas, atualmente as aulas acontecem em um prédio de alvenaria. Porém, a infraestrutura em âmbito rural precisa ser compreendida em seu contexto. No sul do país, no assentamento Eli Vive I, no Paraná, a Escola Municipal do Campo Trabalho e Saber, as salas são de madeira, mas o envolvimento de educadores é grande e o mais importante acontece: o processo de aprendizagem independe das condições de infraestrutura que não são como da cidade.

“A escola é toda feita de madeira e foi construída pelos próprios assentados. As famílias quando chegaram no local se organizaram e construíram salas de aulas. A estrutura ainda é precária, as crianças merecem estruturas melhores, porém isso não impede que o trabalho seja realizado dentro da proposta pedagógica que o próprio município impõe para a educação no campo”, conta José Carlos de Jesus Lisboa, diretor da escola.

O conceito de educação do campo foi formulado a partir da iniciativa de movimentos populares do campo, que começaram a pressionar o Estado por políticas públicas específicas para as populações não-urbanas. Até então as escolas rurais era sucateadas e eram desassistidas pelo poder público. Além do MST, lutaram pelo direito à educação, a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (CONTAG), o Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA) e movimentos dos povos da floresta como indígenas, quilombolas e ribeirinhos.

“As famílias que foram chegando nos acampamentos desde a década de 1980 passaram a entender que não bastava só lutar pela terra, para poder plantar, para sobreviver, era preciso lutar por outras políticas públicas fundamentais para o desenvolvimento dos territórios.”, explica Erivan Hilário, da direção nacional do MST, do setor de educação. Foi assim que grupos que vivem no e do campo contribuíram para a efetivação da política, e também para denunciar o fechamento de escolas no campo na década de 1990. Hoje o ensino na zona rural é garantido pela legislação.

“A educação no campo foi conquistada no Brasil pelos movimentos sociais e camponeses como uma modalidade específica de educação formal na nossa legislação. A LDB, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, as resoluções do conselho nacional de educação, o plano nacional de educação reconhecem o direito das populações de camponeses, ribeirinhos, povos da floresta de terem uma oferta educacional que é adequada às suas condições de vida, aos seus territórios, antes de tudo ela é um direito assegurado na nossa legislação”, explica o professor de políticas públicas da UFABC Salomão Ximenes.

Em 2010, o ex-presidente Lula assinou regulamentou por decreto as políticas públicas voltadas ao meio rural. As escolas instaladas nos assentamentos e acampamentos não são do movimento, mas equipamentos públicos vinculados aos estados e municípios, assim como outras escolas rurais. Mais de 200 mil alunos acessam o ensino básico nas mais 2 mil escolas públicas construídas em acampamentos e assentamentos que atendem crianças, adolescentes, jovens e adultos. Essas escolas seguem regras das secretarias de educação, mas possuem as particularidades de cada região, de acordo com o território que estão inseridas.

Para o Coordenador do Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Educação no Campo da Universidade Federal de São Carlos, Luiz Bezerra, é preciso entender que essas escolas nasceram da luta pelo do direito à educação pública, de qualidade e não são propriedade do movimento, mas dizem respeito a uma demanda por educação na zona rural.

“É preciso desmistificar que a escolas do campo são do movimento, porque não são. As escolas são públicas e mantidas pelo estado ou município. Quem escolhe professor é o estado ou município, o movimento não interfere nessa escolha. Mesmo quando a escola é de assentamento, não é ele que designa o professor.”

O número de escolas no campo diminuiu significativamente nos últimos dez anos. De acordo com Censo Escolar, elaborado pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep/MEC), em 2008 existiam no Brasil mais de 85 mil escolas rurais públicas. Em dez anos esse número caiu para pouco mais de 56 mil escolas.De acordo com levantamento da UFSCar, o número é maior, pois entre os anos de 2002 a 2017 já havia sido registrado o fechamento de 38 mil escolas.

“Esse número pode ser maior. Esses dados de agora estão camuflados. Como tem uma lei que dificulta o fechamento de uma escola, que requer a concordância da comunidade, eles simplesmente suspendem as atividades na escola, mas não fecham. E quando está suspenso, ela não entra nos dados de fechamento. O argumento é que a qualquer momento as aulas podem ser retomadas, mas não tem alunos suficientes”, ressalta o pesquisador sobre os dados do Inep.

O pesquisador explica que não houve êxodo rural que justifique o fechamento nos últimos anos, mas atribui a redução ao custo aluno no campo ser maior do que na cidade. A lei que dificulta o fechamento de escolas rurais indígenas e quilombolas foi sancionada em 2014, pela presidenta Dilma Rousseff.

A assentada Gilda Maria Fernandes Pascoal, de 50 anos, têm dois filhos que estudam na Escola Municipal do Campo Trabalho e Saber que fica no assentamento Eli Vive I, no município de Londrina, Paraná. Ela conta da satisfação que tem quando os filhos, José e Daniel, chegam em casa, trazendo o que aprenderam. "O meu filho José, tudo que é trabalhado em sala de aula, ele chega em casa e passa pra gente, por exemplo alimentação saudável. Ele não é muito de comer verdura, mas, a partir das aulas, ele passou a comer. E ele pega muito rápido os conteúdos e leituras de matemática, história, português”.

A escola atende 185 alunos de quatro até os onze anos. No mesmo espaço, além da escola estadual funciona um colégio estadual que atende jovens do 6º ano ao ensino médio. Gilda diz que está satisfeita com o ensino que os filhos recebem, porque, ao mesmo tempo que ajuda a desenvolver visão crítica, valoriza as origens camponesas.

Segundo professor da UFABC, a educação no campo é uma modalidade que vem sofrendo um conjunto de ataques significativos nos últimos anos. Ele comenta que antes do golpe de 2016, eram “ataques mais velados”, pela ausência de apoio efetivo por parte dos governos estaduais e municipais,e pois, passa a haver “incentivo mais forte de fechamento de salas”.

“Hoje há uma intenção de um ataque mais direto a oferta de educação do campo, sobretudo aquela oferta que é organizada pelo movimento dos trabalhadores do campo, quilombolas, como espaço de resistência e defesa do seu modo de vida e modo de produção. Há necessidade de fortalecer políticas públicas dessa modalidade de ensino e de resistência desses povos que na prática que mantêm viva a educação no campo”. Uma reportagem da Record acusou o MST de doutrinação socialista de crianças. Desde a campanha eleitoral do ano passado, o presidente Jair Bolsonaro (PSL), já apontou o movimento, como um dos seus inimigos e já enfatizou que irá acabar com escolas do campo que estão em espaços onde vivem as famílias sem terra onde plantam alimentos para sua própria subsistência e comercializam produtos agroecológicos.

“Há uma falsa ideia de que o MST atua como estado paralelo. Todas as escolas que existem em assentamentos e acampamentos são públicas e assim defendemos. O MST virou referência por ter lutado para ter escolas públicas em seus territórios, por ter formulado um projeto de educação conectado com a realidade do campo de tal modo que ganhou o prêmio UNICEF como melhor projeto educação ”, comenta o dirigente do MST.

As escolas em assentamentos têm sido exemplares na qualidade de ensino se destacando em olimpíadas da Língua Portuguesa, História e atualmente tem se destacado nas pesquisas de educação. Através do método cubano 'Sim eu Posso', que o MST promove junto ao governo do Maranhão, mais de 50 mil adultos já foram alfabetizados.

Capítulo 2: Protagonismo das escolas em assentamentos quebra preconceitos sobre ensino no campo

Os saberes da terra, ligados ao território onde os alunos estão inseridos, são tão importantes quanto o conteúdo de matemática, português, história e outras disciplinas curriculares. É assim o entendimento sobre educação nas escolas do campo: o conhecimento deve servir também para vida camponesa.

Nas mais de duas mil escolas públicas construídas em assentamentos e acampamentos, o ensino também é guiado pela Base Nacional Comum Curricular (BNCC) – documento que define os conteúdos essenciais em escolas de todo o Brasil. No entanto, na modalidade de educação no campo, são valorizados também conteúdos conectados a própria realidade dos alunos, como agroecologia, alimentação saudável e sem veneno e valores como cooperação, solidariedade e valorização cultural.

Essa pedagogia que propõe uma visão emancipadora, crítica e ligada à realidade dos estudantes era preconizada pelo educador Paulo Freire. Conhecimentos que Gilda quer ajudar a passar para outros jovens. Atualmente auxiliar de limpeza na escola, está prestes a concretizar o sonho de ser educadora. Ela está no quarto ano de graduação do curso de licenciatura em educação no campo na Universidade Federal da Fronteira Sul, no campus de Laranjeiras do Sul, no assentamento 8 de junho. No meio deste ano, apresenta o Trabalho de Conclusão de Curso (TCC), com o tema das cotas raciais.

“Sempre foi um sonho, desde jovem. E minha vida sempre esteve ligada a escola. Já trabalhei como merendeira, educadora, secretária, mas meu sonho foi sempre estudar e agora estou realizando esse sonho”, conta.

Duas escolas em assentamento no Piauí se destacaram na qualidade de ensino. Elas obtiveram, em 2017, os maiores índices na educação básica do município, segundo o Índice de Desenvolvimento na Educação Básica (IDEB): a Escola Sabino Bernardo, no Assentamento Palmares, município de Luzilândia; e a Escola Amadeus Carvalho no Assentamento Marrecas, em São João do Piauí.

Para o agricultor, Nemoel Klessler Costa Silva, assentado e diretor da Unidade Escolar Bernardo Sabino, um dos diferenciais da unidade é autonomia dos professores no processo de ensino, que ele considera essencial para o aprendizado dos alunos. Porém, ele ressalta que há muito preconceito em torno das escolas em assentamento.

“Uma escola do campo é considerada por muitos como rebelde, por causa da nossa filosofia e nosso trabalho. Isso acontece porque a gente não cala, não consente muito e luta pelo que a gente acredita. Então, muitas vezes, a gente é considerado rebelde, essa ‘escolinha do campo’, do interior, que ficou em primeiro lugar no Ideb, com notas maiores que escolas do próprio município que são consideradas boas e grandes e ficaram abaixo”, comenta o diretor.

Segundo a educadora da escola Ildener Pereira de Carvalho há dificuldade em admitir que uma “escolinha de assentamento” tenha conquistado boas notas. Ela reforça que isso acontece, porque a educação praticada no campo não segue somente os moldes curriculares, mas está conectada ao território onde vivem esses meninos e meninas.

“Historicamente as pessoas consideram que quem vem do campo e tem origem camponesa é incapaz de aprender, de desenvolver o nosso espaço, principalmente com a escola no assentamento. Elas usam o termo sem-terra - que pra nós é motivo de orgulho - como se fosse uma coisa assim pejorativa. Ensinamos o que vai servir para a vida e nossa escola é a que mais prepara. As pessoas têm muita resistência a isso, por conta dessa cultura, de entender educação como conservadora, bancária, e que eles acreditam que é a certa”, ressalta Ildener.

Apesar de não ter tido divulgação e nem valorização por parte da prefeitura, o desempenho no Ideb fez com que a escola do Piauí quebrasse o preconceito na comunidade sobre o ensino das escolas de assentamentos e as matrículas nesse ano aumentaram. Segundo o diretor isso demostra que o trabalho está no caminho certo. "As comunidades do entorno perceberam essa evolução e isso quebrou de fato aquele preconceito de uma visão distorcida que as pessoas tinham. Os pais chegavam dizendo: ‘A gente pensava que aqui era uma coisa e a gente tem visto que a escola tem crescido, tem avançado e eu quero que meu filho estude aqui", conta.

A Escola Bernardo Sabino atende 205 alunos, que não são apenas assentados, mas também de comunidades rurais do entorno, desde o maternal até ensino de jovens e adultos. No assentamento onde está localizada, a escola produz e comercializa, para consumo familiar, produtos como feijão, milho, hortaliças, melancia, peixe, galinha e bovinos para corte e leite. Também, frutas e artesanatos.

A educadora Ildener tem três filhos e todos estudaram na escola do assentamento. Um deles é Gabriel Luís Carvalho Silva, 20 anos, que vai fazer faculdade de Medicina na Venezuela. Gabriel acredita que uma das diferenças entre a escola do campo e da cidade é que, nessa última, falta cooperação, algo que permeia o dia a dia dos camponeses. "Eu não gostei de estudar na cidade. É muito diferente, parece que os professores e alunos é cada um na sua, não tem tanto trabalho em grupo”, lembra.

Além disso, o ex-aluno da escola notou que na unidade do assentamento o aprendizado extrapola a sala de aula, principalmente na área cultural e sobre o próprio território. Para ele, é preciso desconstruir a ideia de que o ensino na escola do campo não é bom. "Acho que escola do campo não é atrasada, porque se fosse atrasada eu não teria passado em dois vestibulares em universidades públicas, até porque a maior da minha formação foi no campo.”

O filho da educadora pretende atuar como médico na zona rural, pois faltam esses profissionais na região para atender a população. “Eu pretendo de fato depois que formar, voltar para o campo, porque nunca vou esquecer as minhas origens. Acho que o campo é um melhor lugar para se trabalhar, onde se tem pessoas mais humildes”, explica.

Gabriel vai cursar Medicina através do Projeto Escuela Latinoamericana de Medicina (ELAM). Desde 2005, mais de 100 médicos sem-terra se formaram em Cuba e na Venezuela. Eles atuam em 16 estados brasileiros no Sistema Único de Saúde (SUS) e atendem principalmente a população mais pobre da zona rural e das periferias. Além disso, dois mil assentados estão cursando ou já concluíram cursos técnicos e superiores.

O professor Márcio José Barbosa, da Escola Municipal do Campo Trabalho e Saber, no assentamento Eli Vive I, começou a lecionar em escolas itinerantes do Paraná, que tem a proposta de garantir a escolarização de crianças nos acampamentos – fase inicial da ocupação, até que a terra seja regularizada pelo governo. Ele conta que, apesar das dificuldades, é gratificante ver a perspectiva de futuro para crianças e jovens assentados.

“Nessa trajetória toda como professor no ensino fundamental e médio, a gente vê a perspectiva dos alunos de continuar os estudos, de fazer uma faculdade e consegue demonstrar para sociedade que estamos fazendo um trabalho com qualidade garantindo o direito de educação para as crianças. Isso recompensa todo esforço e todas dificuldades que a gente encontra no dia a dia”, conta o educador, que também é pai de dois meninos que estudam na escola do assentamento.

Apesar dos avanços, um dos maiores desafios nos assentamentos ainda é promover educação superior, já que as universidades na maioria das vezes estão concentradas nas cidades. No assentamento onde funciona a Escola Municipal do Campo Trabalho e Saber há dez anos, vivem 501 famílias nas duas áreas Elivive I e Elivive II. No local, elas produzem diversas culturas agroecológicas como batata doce, milho, arroz, feijão, café, hortaliças e produção de leite e soja.

Capítulo 3: Longas distâncias e formação de educadores impõem desafios às escolas do campo

Amanhecer com sol ou chuva define a rotina das crianças e adolescentes que estudam em escolas rurais. Muitas delas ainda enfrentam quilômetros de estradas precárias e muitas horas pra chegar nas unidades de ensino.

A Escola Municipal Maria Salete Moreno, em Paraupebas (PA), atende 289 crianças da educação infantil dos três aos cinco anos. A unidade fica no assentamento Palmares 2 e recebe crianças de outras 11 comunidades. As mais distantes ficam a cerca de 42 quilômetros da escola, e o tempo de deslocamento pode chegar a duas horas.

A diretora Deusamar Sales Matos avalia que as crianças chegam cansadas e, se o dia é de muita chuva, os alunos têm dificuldades de frequentar as aulas. “No dia que têm chuvas fortes eles perdem aula. Não é todo dia que o ônibus consegue chegar. Nós não temos ainda um calendário escolar que possa fugir do período de chuvas intensas de janeiro até março. Para a criança é cansativo”, conta a assentada.

Dificuldades que acontecem em todas as regiões do país. O educador Márcio José Barbosa, da Escola Municipal do Campo Trabalho e Saber que fica no assentamento Eli Vive I, no Paraná, reforça que a condição das estradas também é um dos grandes problemas por lá. “Têm dias que os próprios professores tem dificuldade para chegar devido às condições intransitáveis das estradas, principalmente em dias de chuva. Isso é o que a gente precisa cobrar o poder público", conta.

Para chegar até as escolas, os alunos vão das mais diferentes formas: barco, bicicleta, ônibus sucateados e até a pé, como explica o professor Luiz Bezerra Neto, do Departamento de Educação da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) e integrante do Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Educação no Campo (Gepec).

“A questão não é só se o transporte tem qualidade ou não. As estradas não são necessariamente bem cuidadas, aí os alunos sofrem com a seca, por conta da poeira, e no tempo das chuvas por causa dos atoleiros provocado nas estradas. Além disso, esses alunos costumam ficar muitas vezes, mais tempo no transporte do que em sala de aula, o que ocasiona vários problemas. O aluno pode ficar até 7 horas dentro do transporte escolar [ida e volta] para ter quatro horas de aula, aí ele já chega exausto. Esse é um pouco o retrato das nossas escolas do campo”, relata.

Para o pesquisador, houve um avanço das escolas rurais com o programa Luz para Todos, implementado em 2003, mas nos últimos anos não houve prioridade do poder público para essas políticas. “Muitas escolas receberam luz elétrica e equipamentos de informática para o campo. No entanto, como essas unidades são mantidas pelo município, não necessariamente há uma convergência com o que foi feito e com a disponibilidade de verbas pelo Governo Federal. Muitas escolas fecharam porque havia o entendimento que poderia ter somente um núcleo ou eles poderiam estudar na cidade.”

Além disso, o número reduzido de alunos e o trabalho com salas multiseriadas, em que são agrupadas diferentes faixas etárias e um só professor, também dificultam o avanço na conquista do espaço como um direito a educação. Para Neto, o desafio, nesses casos, é a formação de professores.“O problema não é o conteúdo, mas a metodologia. O professor não tem formação adequada para trabalhar com essas salas multisseriadas, se tivesse aproveitaria melhor o tempo."

A diretora Deusamar Sales Matos, da escola do Pará, ressalta que é necessária a formação continuada principalmente para professores que vêm da cidade e não estão inseridos na realidade da educação no campo. “Muitos professores são concursados e precisaria ter formação para que possam se envolver e se inserir na vida dos povos do campo. Porque, se escolheram trabalhar com a gente, não pode ter uma relação de só dar aula e ir embora”.

Parcerias entre universidade e comunidades rurais podem fortalecer a educação do campo. É o que vem acontecendo em um município do Piauí, na cidade de José de Freitas. O Instituto Federal do Piauí, a prefeitura e sindicatos de trabalhadores rurais e agricultura familiar se uniram para capacitar os agricultores a implantar tecnologias de baixo custo para que os trabalhadores e seus filhos possam se manter no campo.

O filho de agricultor José de Santos Moura, diretor geral do Instituto Federal do Piauí, campus José de Freitas, que fica a 48 quilômetros de Teresina, capital do Piauí, fala da importância de se ter esse tipo de parceria entre universidade e comunidade, que acontece há dois anos.

"As parcerias são fundamentais para chegar até as comunidades, porque às vezes não têm transporte, não têm recursos para viabilizar as atividades e cursos de extensão. A parceria fortalece o desenvolvimento de atividades. O Instituto Federal quer colaborar para mudar a vidas dessas pessoas de assentamentos. Esse é o único meio de transformar a educação. E o objetivo é levar conhecimento, tecnologia e inovação de baixo custo para que essas comunidades possam se desenvolver e se manter nas suas localidades. Não tem emprego para todo mundo na cidade.”

Localizado na zona rural, o Instituto é voltado para a pesquisa na área agrícola, com os cursos técnicos em agroecologia e agricultura e beneficia cerca de 600 famílias de comunidades rurais.

Capítulo 4: Proposta de Bolsonaro para educação no campo está alinhada com o agronegócio

Letícia Maria Fortes de Campo sempre teve vontade de ler o mundo. Seus olhos percorriam desde rótulos de embalagens de produtos a livros infantis. Com isso aprendeu a ler e escrever muito rápido, já no primeiro ano escolar. Aos dez anos, Leticia é filha de assentados e estuda na Escola Municipal do Campo Trabalho e Saber, que fica a 60 quilômetros de Londrina.

Sua disciplina favorita é o português. Ela conta que adora as aulas de redação e para escrever se inspira em histórias da vida real. O texto que ela mais gostou de fazer, por exemplo, foi a história de uma professora que lecionou em sua escola antes mesmo dela nascer.

Letícia conta que Cidinha morreu defendendo o direito à educação e sua luta serve de inspiração pela força que a professora teve como mulher. “Eu gosto de escrever sobre pessoas que marcam a história. Escrevi sobre a professora que lutava pelo direito dos educadores, mas sofreu um acidente de carro quando voltava da cidade. Ela foi uma mulher muito lutadora e a história dela é muito bonita”.

Agora, no entanto, a educação e as histórias de Letícia, Cidinha e de milhares de crianças que vivem em assentamentos e acampamentos rurais estão ameaçadas. E desta vez os ataques não partem de pistoleiros do agronegócio, mas do próprio governo federal. Desde a campanha eleitoral o presidente Jair Bolsonaro (PSL) já atacava as escolas do campo afirmando que iria fechá-las. Em entrevista à revista Veja o secretário especial de Assuntos Fundiários, Luiz Antônio Nabhan Garcia, afirmou que pretende fechar as escolas do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), e chamou as escolas públicas do campo de “fabriquinhas de ditadores”.

Além disso, o governo Bolsonaro qualifica o MST como organização criminosa e defendeu o direito dos fazendeiros utilizarem armas de fogo quando tiverem propriedades improdutivas ocupadas.

Mesmo antes da eleição de Bolsonaro, a educação no campo já vinha sofrendo um conjunto de ataques significativos, especialmente após o golpe de 2016, que tirou Dilma Rousseff da presidência. Os principais retrocessos foram na qualidade de ensino, na redução de verbas destinadas às unidades rurais e no desinvestimento na formação de professores. Agora, encaram a criminalização de sua proposta educacional.

Erivan Hilário, do setor de educação do MST, explica que há uma política intencional de fechamento das escolas do campo que está alinhada com o agronegócio.

"O projeto defendido por esse governo e até pelo governo Temer é um projeto predador que destrói a natureza e esse projeto tem nome: é o agronegócio. É o que temos de mais perverso e atrasado em termos de desenvolvimento humano.Ele não respeita a natureza, cada vez mais libera agrotóxicos e cria um campo sem gente e sem vida. E nesse projeto de desenvolvimento não há lugar para escola do campo”, protesta.

O dirigente acrescenta que a primeira conquista dos camponeses foi mudar o imaginário desse trabalhador rural que passou a reconhecer que eles têm direito à educação. Para Salomão Ximenes, professor de política públicas da UFABC, o atual governo ameaça censurar e cercear comunidades camponesas, indígenas, quilombolas, ribeirinhas e caiçaras de acessar a educação e com isso afirmar seus direitos e seu modo de vida.

“Há uma tentativa de impor até pela medida de força uma visão de educação que é dita como neutra, não política, mas que visa silenciar qualquer perspectiva político-pedagógica que seja questionadora, como são muitas das escolas do campo. Sobretudo as que estão organizadas pelos movimentos sociais e criticam o modo de produção, os agrotóxicos, a grande monocultura, ou seja, o agronegócio”, analisa Ximenes.

De acordo com dados do MST, já foram realizados 320 cursos via Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (Pronera) em 40 instituições, e se formaram 165 mil educandos no ensino fundamental e médio e em cursos técnicos e de nível superior, como agronomia, agroecologia, medicina veterinária, história, direito, serviço social e cooperativismo. Atualmente, existem mais de 100 cursos de graduação em parceria com universidades públicas por todo o país.

O Pronera foi um marco na educação do campo, pois possibilitou a elevação do nível de escolaridade das famílias camponesas e formou educadores que podem atuar nos territórios onde vivem. O programa, que apoia projetos de educação voltados para o desenvolvimento das áreas de reforma agrária, é um dos que está sob risco de ser extinto, segundo o coordenador do setor de educação do movimento.

“Concretamente não existe uma posição que o Pronera acabou, mas um das formas de acabar com uma política de combate a desigualdade é não financiar, não colocar recursos nessas iniciativas”, explica.

Outros ataques também partiram de emissoras alinhadas com o bolsonarismo, como foi o caso da reportagem da Record que atacou as escolas do MST e os Sem Terrinha, como são conhecidas as crianças que fazem parte do movimento, acusando as escolas do campo de fazerem “doutrinação ideológica”.

No entanto, o que a série de reportagens “Saberes do Campo” constatou foi que essas escolas públicas, mesmo em assentamentos, oferecem aprendizados baseados no currículo das escolas cidades, mas também ligados território.

O educador Márcio José Barbosa defende que a escola cumpre um papel essencial no acesso à educação na zona rural. “A gente não doutrina ninguém. Queremos que as crianças aprendam o máximo possível. Eu vi essa reportagem da Record e não concordo em nada com ela. É uma matéria preconceituosa, que atende ao desejo do governo de criminalizar o movimento e precisamos fazer o contraponto. O que a gente faz é trabalhar os conteúdos e garantir a escolarização das crianças no assentamento e no acampamento”, reforça o professor da Escola Municipal do Campo Trabalho e Saber, Paraná.

Bolsonaro já afirmou que poderia transformar o ensino do campo em uma modalidade “à distância”. Para o pesquisador em educação do campo da UFSCar, Luiz Bezerra Neto, a educação à distância só seria uma alternativa viável em locais onde os estudantes têm dificuldades de deslocamento, como no caso de comunidades ribeirinhas do interior do Amazonas. Porém, é exatamente nesses lugares é que existe falta de condições que viabilizam a EAD — desde energia elétrica até a falta de sinal de internet. Ele acredita que o projeto do governo Bolsonaro é destruir a escola pública e o caminho para não ter mais retrocessos é a mobilização popular.

“É preciso muita luta para impedir a criminalização de movimentos sociais que são os que lutam por melhorias nas políticas públicas, sobretudo à educação no campo. Não vejo muitas perspectivas de melhora com esse pessoal no MEC. Porque parece que o objetivo deles é destruir a educação, não só a educação no campo, mas a que leve o povo a pensar, a ter uma escola a ter um mínimo de qualidade”, avalia o especialista.

A reportagem entrou em contato com o Ministério da Educação solicitando informações sobre as propostas e programas voltados à educação no campo, assim como os desafios e o que está previsto na área pelo governo Bolsonaro, mas não obteve resposta até o fechamento desta matéria.

Expediente:

Reportagem: Anelize Moreira | Edição: Pedro Nogueira, Aline Carrijo, Katarine Flor, Tayguara Ribeiro e Daniel Giovanaz | Fotografia: Escolas do Campo | Artes gráficas: Gabriela Lucena | Operação de áudio: André Paroche