Balbúrdia boa

Artigo | Parceria entre MST e UFBA estimula consumo de alimentos sem agrotóxicos

Feira Agroecológica da Reforma Agrária que ocorre na universidade mostra importância de valorização da educação

Brasil de Fato | Salvador (BA) |
Feira Agroecológica da Reforma Agrária acontece todas as quartas-feiras no Campus de Ondina da UFBA
Feira Agroecológica da Reforma Agrária acontece todas as quartas-feiras no Campus de Ondina da UFBA - Arquivo Projeto

Em declaração feita no último dia 30 de abril ao Estado de S. Paulo, o ministro da Educação, Abraham Weintraub, justificou o corte nas verbas em universidades federais com o argumento de que estariam promovendo balbúrdias e citou, como um dos exemplos, a presença dos sem-terra dentro dos campi.

Weintraub tenta criminalizar as universidades públicas e os movimentos sociais do campo e desconsidera o quanto a parceria entre o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e a Universidade pode ser positiva, sobretudo ao se olhar para o aumento desenfreado da liberação de agrotóxicos que coloca em risco a saúde da população brasileira.

Os ataques do governo Bolsonaro aos movimentos sociais do campo refletem o comprometimento com os grandes ruralistas do agronegócio. Em menos de cinco meses, foi liberado o registro de 197 agrotóxicos. A nomeação de Tereza Cristina ao Ministério da Agricultura também expressa essa aliança. Como deputada federal, Tereza comandou a bancada ruralista e presidiu a comissão especial responsável avançar a PL 6299/2002, conhecida como “PL do Veneno”, que busca flexibilizar ainda mais a concessão de registros de agrotóxicos no país, permitindo, por exemplo, a liberação mesmo sem a análise da Anvisa.

Caso esse projeto de lei seja aprovado, agrotóxicos de alto risco serão liberados em uma frequência cada vez maior, mesmo representando risco de câncer, má-formação fetal ou distúrbios hormonais. O Brasil está entre os maiores consumidores de agrotóxicos do mundo e, infelizmente, o governo atual sinaliza para o agravamento do problema. Tendo em vista esse cenário, iniciativas que dialogam com a sociedade acerca dos riscos oferecidos pelos agrotóxicos são extremamente necessárias.

É o que acontece na Universidade Federal da Bahia (UFBA). A UFBA recebe no campus de Ondina, todas as quartas-feiras, das 7h30 às 14h, a Feira Agroecológica da Reforma Agrária, onde são comercializados produtos agroecológicos produzidos pelo MST, como raízes, hortaliças, verduras, frutas e grãos. Nas quartas, o movimento em torno da feira já se tornou rotineiro: estudantes, técnicos-administrativos, funcionários terceirizados, professores e visitantes circulam nas instalações da feira, conversam diretamente com os produtores dos alimentos e levam para casa produtos sem veneno por um preço justo.

Foto: Arquivo Projeto

A feira surgiu em 2014 a partir de ações de extensão universitária desenvolvidas por professoras e estudantes em conjunto ao Núcleo de Estudos e Práticas e Políticas a Agrárias (NEPPA), contribuindo na capacitação para a produção agroecológica e na geração de renda para famílias de assentamentos da região metropolitana de Salvador.

A Feira do MST surge de um lógica de produção completamente distinta da indústria do agronegócio. Enquanto para o agronegócio o lucro prevalece sobre a vida -- o que se verifica num modelo predatório de monocultura latifundiária que concentra e destrói terras, expulsa comunidades de seus territórios, explora trabalhadores/as, contamina o solo, os alimentos e ameaça a saúde da população com o uso abusivo de agrotóxicos --, o MST prova que, através da democratização da terra, é possível uma produção diversificada de alimentos sem uso de venenos, com relações de produção solidárias e que coloca o bem viver em primeiro lugar.

A presença da Feira Agroecológica da Reforma Agrária na UFBA é uma importante forma aproximar as pessoas da luta dos movimentos sociais do campo e do consumo de alimentos saudáveis. Em Salvador, ainda são poucas as feiras populares que oferecem alimentos orgânicos a baixo custo. E o que a experiência do MST na UFBA mostra é que as universidades podem ser uma das fomentadoras do acesso da população à alimentos sem veneno.

Além da Feira do MST, acontece outra feira agroecológica na UFBA às sextas-feiras, através de uma disciplina de Ação Curricular em Comunidade e Sociedade (ACCS), que também desenvolve ações de extensão com o objetivo de colocar a sociedade em contato com alimentos sem agrotóxicos produzidos pela agricultura familiar. Considerando todas as contribuições que os projetos desenvolvidos dentro das universidades públicas podem oferecer à sociedade, das quais as feiras agroecológicas que acontecem na UFBA são dois dentre tantos exemplos Brasil afora, é necessário ampliar os investimentos no ensino superior e os incentivos à pesquisa e extensão, não reduzi-los.

O governo Bolsonaro vem cortando sistematicamente verbas das universidades federais, colocando em risco o funcionamento dessas instituições e, consequentemente, ameaçando ações importantes desenvolvidas por meio do Ensino, da Pesquisa e da Extensão. Além dos cortes orçamentários em todas as universidades federais, a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) anunciou um bloqueio de mais de 3.000 bolsas de pesquisa no país.

Qualquer governo comprometido com a sociedade brasileira deve reconhecer as contribuições que as universidades públicas e os movimentos sociais podem dar para a construção de um país melhor. No caso da UFBA, a balbúrdia citada pelo ministro é, na verdade, uma parceria que expressa o compromisso da Universidade e do MST com o acesso justo à terra, com o meio ambiente e com a saúde da população brasileira.

A entrevista realizada com Rita Felicíssima, de 53 anos, agricultora do assentamento Recanto da Paz, ajuda a compreender os equívocos da fala de Weintraub e a importância da feira.

Brasil de Fato: Poderia falar um pouco da sua trajetória e do significado do MST pra você?

Rita Felicíssima: Eu faço parte do MST há 16 anos. Sou filha de produtores rurais, mas meus pais sempre trabalharam pra latifundiários, não tinham terra. E aí me casei, vim morar em Salvador, passou um tempo eu morando na cidade, voltei pra roça de novo. E a única maneira que eu encontrei de fazer esse regresso pra zona rural foi o MST. Eu tenho o MST como uma coisa boa, pra mim foi a válvula de escape pra voltar pra roça.

Você participa da Feira Agroecológica da Reforma Agrária desde quando?

Desde o início. Quando começou a ACCS da professora lá no recanto, há mais de 10 anos, e só de feira a gente tem 5 anos. A primeira feira que a gente fez foi na reitoria, num congresso que teve contra os agrotóxicos, e aí formalizou essa ideia de ter a feira agroecológica. E, desde então, eu tô aqui.

Você gosta de participar da feira?

Eu conto os dias da semana pra vir pra cá. Dois dias antes eu fico assim, bem alegre, fazendo as coisas pra vir pra feirinha. Aqui vendo temperos, conservas naturais, hortaliças, tudo produzido lá no assentamento recanto da paz, graças a deus. Tudo trabalhando na terra, tudo com respeito à natureza.

Qual a importância da feira na sua opinião?

É importante porque cada dia que passa a gente tá envelhecendo e adoecendo rápido. O ser humano não busca os valores de proteger a natureza, de ter uma vida saudável. E a gente tá fazendo aquele papel certo. Hoje eu tenho orgulho de mim porque sei que eu tô ajudando um pouquinho, fazendo a minha parte.

A população perdeu com todo esse investimento nesse pacotão do agronegócio que só gera o lucro. Se eles quisessem eles tinham todos os meios de pesquisa pra transformar e não ser esse veneno todo. Pra onde a gente tá indo? Para a destruição da natureza e, se não tem natureza, não tem a gente, não tem a água boa, não tem o alimento bom, não tem o ar bom, não tem nada bom.

Como você enxerga a fala do ministro de que a presença do MST nas universidades seria “balbúrdia”?

Essa pessoa não tá preparada para falar com a massa. Eu fui lá ver o que é balbúrdia e achei no dicionário: é bagunça. Mas às vezes existe a boa bagunça. A bagunça que não faz mal à ninguém, leva informação, leva o bem viver das pessoas. A gente como MST, dentro da universidade, a gente só agradece, porque aqui é um espaço de liberdade, de conhecimento, de estudo. Aqui sai tudo. Aqui sai a pesquisa pro agronegócio, mas sai a pesquisa lá pra roça, a pesquisa da saúde. E aí é isso, eu tô aqui numa boa bagunça.

Eu não tive oportunidade de estudar em uma universidade, talvez hoje eu poderia saber o que significava balbúrdia, que o ministro falou, mas tive que procurar no dicionário. Aqui tem cinco mulheres trabalhando que não trouxe nenhum gasto pro governo em educação, porque a gente não teve a oportunidade de estudar. E hoje a gente tá trabalhando aqui dentro da universidade, isso é crime? Ir lá pra roça, trabalhar, estender a nossa bandeira de reforma agrária, uma luta de classe dos trabalhadores rurais. E aí vai criticar o MST pra quê? Agradece por tá fazendo o papel que eles não fazem.

Se a reforma agrária fosse levada a sério, quanto bem trazia pra esse país. Dar dignidade, porque o movimento ocupa uma terra, mas as pessoas sofrem porque não tem o respaldo do governo. Mas tá tudo na constituição, tá tudo no estatuto da reforma agrária.

Às vezes eu perco a noite pensando “oh, meu deus, não é pra tanta dor”. Olha só como os trabalhadores vão sofrer com essa previdência, com essa mudança toda caindo no colo das pessoas que nada fizeram de errado, só trabalhando. E vai ter mais que trabalhar, não ter mais tempo pros seus filhos, não ter tempo pra suas famílias. Que vida é essa? Só cai nos nossos colos. Não devia ser assim, as pessoas deviam viver bem. Mas aqui tô eu, e eu resisto, e eu passo tudo pra quem eu conheço. Se eu tivesse que voltar e fazer tudo que eu faço, morar lá na roça, eu faria tudo de novo.

 

*Nataly Pinho é estudante de Ciências Sociais da UFBA e participa do grupo de pesquisa "A práxis está na mesa: ativismos alimentares na cidade de Salvador (BA)"

Edição: Aline Carrijo