REFORMA

No Chile, Previdência privada prejudicou cidadãos e onerou ainda mais o Estado

Para cientista político chileno, modelo de capitalização que Bolsonaro quer copiar de país vizinho só beneficia empresas

Brasil de Fato | Brasília (DF) |
Recaredo Gálvez falou sobre o tema durante seminário em Brasília
Recaredo Gálvez falou sobre o tema durante seminário em Brasília - Jubileu Sul

Recaredo Gálvez, cientista político chileno e pesquisador da Fundación Sol, explicou os impactos da Previdência privada em seu país nesta terça (28) durante o seminário “Desmonte da Previdência Social no Brasil: a quem interessa?”, organizado em Brasília (DF) pela Rede Jubileu Sul.

Após o evento, ele conversou com Brasil de Fato e ressaltou que o modelo de Previdência que inspira o ministro Paulo Guedes e o presidente Bolsonaro (PSL) foi um fracasso.

Confira os melhores momentos da entrevista:

Brasil de Fato: Na América Latina, o Chile tem uma experiência de capitalização na Previdência Social. Você pode contextualizar como foi o processo de início da capitalização, como se deu a implementação? Foi um projeto da ditadura?

Recaredo Gálvez: Sim, a capitalização no Chile está funcionando desde 1981 e foi a ditadura militar que instalou esse sistema com o apoio de um grupo civil, de profissionais que se formaram na Universidade de Chigago, nos Estados Unidos, que chamamos de Chicago boys, que desenharam a parte técnica do modelo. Mas também é preciso pensar que a ditadura do Chile começou em 1973, e desde 1974 começou-se a fragilizar o sistema, que era um sistema de repartição. Nessa época, eles começaram a diminuir a contribuição dos patrões ao sistema de contribuição, o que elevou o gasto público e, por isso, criaram a justificativa de que o sistema era muito caro.

Começaram a gerar reformas dentro da própria ditadura para fragilizar o sistema público e substitui-lo em 1981. Então isso é muito representativo de como precisam ser vistas essas transformações. Porque o primeiro que fazem é fragilizar o sistema público com reformas que parecem inofensivas, ou que parecem ser reformas de ajuste, mas o que buscam, a curto prazo, é fazer com que o sistema público pareça caro e inviável.

Pode-se dizer que a ditadura também foi funcional para os interesses da capitalização porque freava a possibilidade de oposição?

A ditadura, em grande medida, não precisou de um parlamento, não precisou nada para instaurar a capitalização, além disso, se tivesse algum tipo de resistência, ia ser reprimida. Foi uma ditadura que prendeu, que assassinou muitas pessoas, então evitar o modelo de capitalização naquele momento era praticamente impossível. Depois, nos anos 90, começaram a ter governantes através do voto popular, quando Pinochet foi afastado. Mas durante os primeiros anos de 1990, Pinochet estava no Senado, tinha um cargo de senador vitalício, então ele conseguiu se manter no parlamento e mantendo uma influência do poder militar no poder político. Pelo menos até os anos 90.

Ainda existia muito a sensação de que a ditadura podia voltar. Isso impediu qualquer transformação, qualquer possibilidade de voltar a sistemas público ou reformar a capitalização.

Existia uma promessa de que a capitalização melhoraria, dentro de algumas décadas, e os trabalhadores conseguiriam se aposentar com o salário que recebiam no momento da aposentadoria.

Como foi o papel desse discurso ideológico, claro, sob censura, mas houve um processo de mistificação em torno da capitalização?

Sim, teve um processo de desenhar, através das equipes técnicas, profissionais e sociedade civil, uma ideia de que a capitalização teria grandes benefícios. Que se você contribuísse por 40 anos, e tinha pelo menos uma rentabilidade de sua poupança, que fosse cerca de 5% real, poderia ter uma aposentadoria que estivesse cerca de 80% de seu último salário. Isto é, 40 anos de contribuição e 5% de rentabilidade real eram os requisitos básicos. Hoje em dia, quase 40 anos depois do regime, vemos que aquelas pessoas que cotizaram até 35 anos tinham uma rentabilidade média anual de 7%,8%, superior a 5%, não conseguem financiar aposentadorias maiores do que o salário mínimo.

Quanto é o salário mínimo em dólares?

436 dólares. Mas também é preciso ter em conta que provavelmente é mais alto que aqui no Brasil, mas é insuficiente para viver no Chile. No Chile, o custo de vida é muito alto por não ter salário social, por pagar a maioria dos direitos para empresas privadas. Então os custos são altos e o salário, mínimo. Se pensamos, por exemplo, numa família de 4 pessoas em que só uma pessoa trabalha e tem dois filhos, uma mãe, um pai que cuida das crianças, e o pai ou a mãe trabalha. Se um deles recebe um salário mínimo, essa família não pode sair da pobreza, ainda que esteja trabalhando e contribuindo, sua família pode continuar na pobreza por essa situação.

Por isso falamos de um desastre na aposentadoria. É um caos, porque algumas dessas pessoas podem ter um subsidio estatal, sempre que sejam 60% mais pobre. Se não está nesse grupo, não tem subsidio estatal e pode, inclusive, ter uma aposentadoria zero. Não há uma garantia à aposentadoria. Com a capitalização, não existe uma aposentadoria definida nem garantida.

Você pode contribuir um ano e ter uma aposentadoria. Pode contribuir 10 e ter uma aposentadoria. A maioria das pessoas no Chile, cerca de 33% daqueles que contribuíram, contribuíram 16 ou mais anos, o resto contribuiu menos do que isso. As pessoas contribuem por pouco tempo devido à frágil estrutura do mercado de trabalho que cada vez é mais flexível, que cada vez utiliza mais os empregos temporais e informais.

Os patrões não contribuem com a capitalização? É uma poupança individual?

Não, desde 1981 o empregador não contribui nada para a capitalização. Só o trabalhador, cerca de 10% de seu salário. É uma conta individual. É uma poupança individual obrigatória. Porque, além disso, a poupança está em empresas privadas, que administram essa arrecadação previdenciária, não em empresas estatais. E toda a administração é feita através de contas individuais.

Em 1981, um incentivo para que as pessoas mudassem para o sistema de capitalização, do público para o privado, era que a contribuição seria menor na capitalização. Porque, no sistema público, alguns contribuíam com 12% e o empregador com 10% ou 20%. Então os empregadores pressionaram os trabalhadores dizendo que teriam mais renda, porque iam contribuir menos, mas, na realidade, era um benefício para o empregador, porque não teria que contribuir.

Aqui no Brasil existe um discurso de que a Reforma da Previdência geraria muito mais empregos. Esse discurso também existiu no Chile?

Sim, e no Chile os dados sobre emprego demonstram que, atualmente, o que predomina é o emprego terceirizado. O maior número de empregos criados na última década, tanto de empregos destruídos, quanto de criados, é principalmente através de subcontratos ou trabalhos autônomos.

Esses trabalhos autônomos, somados aos subcontratos e outras formas de terceirização, representam cerca de 67% dos empregos da última década. Ou seja, é uma estrutura precária, profundamente precária.

Na lógica da capitalização, tem algum sentido de rentabilidade, apesar da perversidade de não ser uma lógica solidária. As pessoas estão colocando dinheiro, está rendendo, mas elas não estão recebendo. Para onde vai esse dinheiro? A rentabilidade está indo pra algum lugar?

O que acontece é que a capitalização individual não é suficiente para financiar uma aposentadoria, apesar de ter boa rentabilidade. Isso, por um lado, faz com que o resultado da capitalização convertido em aposentadoria, seja sempre insuficiente. Isto é, se é capitalização individual, com uma taxa de 10%, as contas nunca vão fechar. Isso demonstra, além de tudo, que quando esse modelo foi instalado, em 1981, não houve projeções reais. Não teve nenhum tipo de análise concreta do que isso significaria. E outra coisa importante é que o gasto público seguiu aumentando com esta reforma, não diminuiu. Se consideramos o custo para o Estado, de ter feito essa reforma, esta transformação custou o equivalente a 136% do PIB de 1981; e é o que custará por pelo menos durante 70 anos, de 1981 a 70 anos para frente. Porque o Estado deve pagar aqueles que estavam no regime público e que mudaram para a capitalização.

A transição?

Sim, a transição. Então esse custo é enorme. Se essa reforma for aprovada no Brasil do modo como foi no Chile, seria um gasto do Estado que definharia outro tipo de financiamento público. Então a capitalização, no sentido estrito, gera um lucro direto para as empresas e para o capital financeiro onde esta arrecadação é investida.

Porque um trabalhador, durante 20, 30 ou 40 anos, o tempo que dura sua vida no trabalho, e contribui, acumula a arrecadação em uma conta. Ele não vê nem pode receber esse dinheiro até aposentar-se. Enquanto isso, esse dinheiro é investido. Cerca de 48%, 49% do fundo da aposentadoria está fora do país, principalmente nos Estados Unidos. Cerca de 88 bilhões de dólares.

E o resto está investido no Chile, mas em empresas privadas. Principalmente no sistema bancário. E eles são quem recebem esta poupança e pagam taxas de rentabilidade bastante baixas.  Ou seja, durante a ultima década, a poupança para aposentadoria rendeu menos de 4%. O sistema bancário também oferece créditos de consumo e de imóveis para as pessoas, com taxas de até 30%, de 40%. Isso mostra como os bancos se beneficiam duplamente, pela poupança dos trabalhadores e também pelo crédito que oferece aos trabalhadores.

Então, é uma espécie de "coesão financeira" através da poupança da aposentadoria, que atualmente no Chile já está em cerca de 91% do PIB. Ou seja, toda a poupança da capitalização mais as companhias de seguro é equivalente a 91% do PIB chileno.

É praticamente capital fictício?

Em grande medida, é capital que está investido em infraestrutura. E há uma proporção que está no setor estatal, mas através de créditos e através de investimentos no Tesouro direto, pequenos investimentos nos ministérios, mas a maior parte pertence aos bancos, ao sistema financeiro, e fundos de investimento, cerca de 60%.

Aqui no Brasil, recebemos algumas notícias por conta do debate da reforma da previdência, sobre suicídios de aposentados. Eu queria perguntar até que ponto essa realidade é simbólica do modelo previdenciário e se existe no Chile alguma discussão para reverter a questão da capitalização.

Bom, no Chile não foi um tema tão discutido porque faz muito tempo que os meios de comunicação e a imprensa falam de nossas altas taxas de depressão. Foi pactuado que as pessoas estejam estressadas e deprimidas. Houve um aumento substancial de licenças médicas por doenças psicológicas. Então para quem trabalha há uma série de depressões, e para quem se aposenta, e perde sua autonomia financeira, porque começa a depender dos filhos, dos amigos, porque a aposentadoria é muito baixa, e chega à conclusão de que isso gera problemas na velhice, vinculados à depressão. Também estes estudos mostram que as taxas de suicídio entre os distintos níveis de faixa etária da população se apresentam com maior incidência na população adulta idos. 

Então há muitas notícias nos meios, mas elas são apresentadas como pontuais, de casais de aposentados que se suicidam juntos por perda da autonomia, que deixam cartas... Mas quando isso aparece nos meios, não aparece diretamente ligado ao problema do financiamento da aposentadoria. Geralmente, relacionam com a pobreza ou abandono. Mas dão pouca ênfase à autonomia financeira para seguir desenvolvendo a vida assim que se aposenta.

O que constroem os meios e as empresas que administram a capitalização, as chamadas AFP [Administradoras de Fundos Previdenciários] é um chamado para que as pessoas continuem trabalhando. Isto é, que não se aposentem aos 60 anos, se são mulheres, e nem aos 65, se são homens, como estabelece a lei. Mas que façam isso ao 70 porque ainda têm vitalidade e suas aposentadorias podem melhorar. É claro que sim, porque diminui suas expectativas de vida, então vão ter menos tempo para usar a poupança previdenciária. Provavelmente, morrendo antes de usar toda a poupança.

E tem algum processo político de tentar debater a capitalização ou ele é muito reduzido?

Sim, desde 2016 começou a aparecer com mais força um movimento contra a capitalização, chamado Coordenação de Trabalhadores e Trabalhadoras Não Mais AFP. Isto é, não à capitalização. Eles conseguiram que o governo de Bachelet apresentasse uma proposta de reforma que incluía um esquema público, mas era bem pequeno, um pequeno sistema misto para incorporar público solidário e coletivo ao sistema de capitalização, como uma pequena parte. Mas esta reforma foi apresentada no final do governo da Bachelet e não foi aprovada no Congresso. Hoje em dia, o presidente Sebastián Piñera, um empresário, um dos homens mais ricos do Chile, que faz parte do ranking Forbes, propôs uma reforma que mantém a capitalização, propondo que os patrões contribuam 4%. Hoje eles não contribuem e passariam a contribuir 4%. Ou seja, aumentar a poupança da capitalização, é o que propõe o governo.

A reforma vai completar 40 anos em 2021. Há várias evidencias das dificuldades ou do fracasso das promessas que haviam no momento de sua implementação. E no Brasil essa discussão, 40 anos depois, é trazida com perspectivas muito próximas. Dá para dizer, fundamentalmente, que é um discurso ideológico, que tem pouco amparo em dados econômicos?

É um discurso ideológico que considera que indivíduos devem ser os responsáveis pela financiamento de sua aposentadoria, sem a contribuição dos empregadores, por um lado, que é como foi pensada. E, por outro, que ao serem responsáveis, transfiram recursos para o capital privado. Isto é, privar as pessoas de um direito, que é o de ter uma aposentadoria. A aposentadoria já não é um direito, porque você só tem aposentadoria se contribuir.

Recentemente, no ano 2008, foi criada uma aposentadoria do Estado para 60% das pessoas mais pobres. Mas antes existia apenas um benefício social que era muito baixo. Isso é uma amostra de como esta ideologia de um capitalismo baseado em indivíduos de maneira atomizada, que financiam a aposentadoria com o salário atual, e com isso beneficiam o capital, é um aspecto que desconhece qualquer elemento de bem estar-social, que contraria o bem-estar social.

Contraria o coletivismo e a solução de problemas mediante uma transferência de recursos das classes mais ricas para aquelas que mais precisam. Isso é ideológico, evidentemente. É político. Porque é uma maneira de organizar a sociedade, mas que é apresentada como se fosse algo tecnicamente viável. Mas onde estão os estudos técnicos que digam qual vai ser o custo de transição no Brasil deste sistema? Onde estão as simulações que podem ser discutidas com respeito a qual será a aposentadoria para os diferentes setores de trabalhadores? Como é possível permitir uma reforma dessa importância sem nenhum respaldo técnico para discussão? Não estou dizendo "se for demonstrado tecnicamente, então é válido". Não. Então outros técnicos terão que discutir e ver se está certo.

*Com a colaboração de Luiza Mançano.

Edição: João Paulo Soares