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Liberdade, use-a com moderação!

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A chamada MP da liberdade econômica pretende restringir o papel do Estado no controle e na fiscalização da economia
A chamada MP da liberdade econômica pretende restringir o papel do Estado no controle e na fiscalização da economia - Foto: José Cruz/Agência Brasil
Para que todos sejam livres, ninguém pode ser totalmente livre

Recentemente publicada, a Medida Provisória 881/2019 institui a denominada Declaração dos Direitos de Liberdade Econômica. Para quem não a conhece, esta MP traz várias medidas facilitadoras ao empreendedorismo e à livre iniciativa, como automatização de registros e agilização para constituição de empresas, redução de procedimentos, declaração de princípios, mas também traz medidas limitadoras ao poder de interferência das instituições do Estado. O próprio presidente da República declarou que essa MP pretende restringir o papel do Estado no controle e na fiscalização da atividade econômica e esse parece ser o ponto central da medida.

Em outras áreas, no entanto, o governo, por manifestações recorrentes de seus membros, dá sinais de que tem a clara intenção de vigiar, controlar e restringir comportamentos pessoais, opiniões, preferências sexuais, direitos de manifestação, atuação dos sindicatos e dos movimentos sociais, determinando, ideologicamente, o que é certo e o que é errado, o que pode ser ensinado e o que não pode, que cor de roupa as crianças devem usar, interferindo no conteúdo curricular das escolas e estimulando até mesmo a espionagem e a denunciação infantil contra professores. Sabemos muito bem onde isso pode nos levar.

Há uma evidente contradição na ideia de liberdade proposta nesta MP. Liberdade econômica já está garantida na Constituição Federal. Ao anunciá-la, como novidade, o governo propõe uma elevação da parcela relativa de liberdade para este setor, o que significa restrições de liberdades para outros setores, uma delas, expressamente anunciada, a liberdade do Estado, de controlar e fiscalizar a atividade econômica.

Aliás, é importante ter em conta que liberdades absolutas não existem. Para que todos sejam livres, ninguém pode ser totalmente livre. Este é um princípio fundante da vida em sociedade. Por outro lado, é preciso também considerar que só haverá liberdade substantiva na igualdade de condições e de oportunidades. Fazendo uma analogia com a riqueza, é possível afirmar que, assim como não pode haver extrema riqueza sem que exista extrema pobreza, a liberdade total para alguns implicará, necessariamente restrições de liberdade para muitos. Disso também se conclui que é de se esperar que o Estado promova uma justa distribuição tanto das riquezas quanto das liberdades.

Grande parte da interferência do Estado nas atividades econômicas se dá, justamente, para disciplinar e garantir liberdade a todos e não apenas para alguns. A fiscalização e o controle existem também proteger a livre concorrência entre os agentes econômicos. Na omissão do Estado, grande parte dos pequenos empreendimentos não sobreviveria à concorrência predatória dos grandes negócios, predominantemente estrangeiros, ou seja, a liberdade total compromete também a igualdade de condições e de oportunidades. As fiscalizações do Estado, nas áreas tributárias, aduaneira, ambientais, trabalhistas, sanitárias, regulatórias etc., são formas de garantir a liberdade de todos, ainda que cerceando a de alguns. Ninguém é livre para não pagar impostos, para descumprir leis ambientais, para realizar contrabando, ou para explorar o trabalho escravo, por exemplo. É um equívoco pensar que o Estado, ao fiscalizar e controlar, estaria cerceando a liberdade econômica. Ao contrário, estas atividades é que constituem o meio necessário para garantir maior liberdade para todos.

Nesta mesma toada, notícias recentes dão conta ainda de que o governo pretende reduzir 90% das normas vigentes de segurança e saúde no trabalho, o que certamente representará grande benefício ao setor empresarial, que ficará livre de muitos controles, mas, também, não há dúvida de que a liberdade de muitos trabalhadores estará seriamente comprometida.

A Declaração dos Direitos de Liberdade Econômica revela uma escolha política que fica também evidenciada quando governo exacerba a liberdade de proteção da propriedade privada aos grandes proprietários rurais, propondo excludentes de culpa para quem matar na defesa de suas posses. É emblemática a expressão “a propriedade privada é sagrada e ponto final” dita pelo presidente num evento público, em Ribeirão Preto, em maio de 2019, contrariando, inclusive, o que estabelece a Constituição Federal, quando determina que o direito de propriedade não é absoluto, mas deve atender ao interesse social. A insistência na permissividade para posse e porte de armas, ou mesmo a esdrúxula ideia de desativar os controladores de velocidade nas vias públicas, assim como a proposta de redução das áreas das reservas indígenas, também são manifestações que maximizam a liberdade de alguns, mas que restringem necessariamente a liberdade de muitos.

Liberdade pressupõe a possibilidade de fazer escolhas. Interessante é que foi em nome da liberdade que a legislação trabalhista foi alterada fazendo prevalecer o acordado sobre o legislado, o que, diante das nossas profundas assimetrias sociais, acaba submetendo a vontade do trabalhador à vontade do patrão. Que escolhas terão os trabalhadores, quando a sua aposentadoria virar apenas um produto comprado do mercado financeiro, como está proposto no projeto de reforma da previdência social? Que escolhas tem um pequeno empreendedor quando seu concorrente poderoso pode revender seus produtos com prejuízo? Que escolhas têm os contribuintes quando seus concorrentes sonegam seus tributos?

O que está em curso é um processo para libertar o poder econômico de toda e qualquer forma de controle social e para controlar a sociedade e as pessoas para melhor atender os interesses do poder econômico.

Basta rever a história recente, no entanto, para perceber que foi justamente a limitação da liberdade das atividades econômicas que permitiu, por exemplo, a libertação dos escravos, a regulação da jornada de trabalho, a criação do salário mínimo, o fim do trabalho infantil, etc. O tempo da escravidão, do trabalho infantil, das jornadas de 16 a 20 horas, da total ausência de direitos, do direito de poluir e de degradar livremente o meio ambiente, de assediar e de discriminar já acabou. Conseguimos, finalmente, construir uma sociedade minimamente civilizada. A sociedade evoluiu quando passou a restringir a liberdade de exploração de uns pelos outros.

E não foi por acaso que, justamente, no dia 1º de Maio de 2019, Dia Internacional do Trabalhador, o presidente tenha afirmado publicamente que tem o compromisso de garantir a “plena liberdade da atividade econômica no país”, soando quase como uma provocação aos trabalhadores ou uma ameaça aos direitos conquistados em mais de 100 anos de lutas sociais. Declarou ainda, no dia 12 de maio, que os “sindicatos são a coisa que mais atrapalha o Brasil”.

Precisamos da liberdade para exercer os direitos, para defender as conquistas e para garantir a própria liberdade. A liberdade é um direito de todos, mas é preciso usá-la com moderação.

Edição: Marcelo Ferreira