Protocolo

Indígenas exigem ser ouvidos sobre projetos na Amazônia: "O Estado tem o dever"

Yanomami e ye'kwanas, dos estados de Roraima e Amazonas, pedem preservação dos princípios da Convenção 169, da OIT

Brasil de Fato | Brasília (DF) |

Ouça o áudio:

Lideranças indígenas durante entrega de protocolo de consulta no Ministério da Educação (MEC), em Brasília (DF)
Lideranças indígenas durante entrega de protocolo de consulta no Ministério da Educação (MEC), em Brasília (DF) - Divulgação

Comunidades indígenas que reúnem yanomami e ye'kwanas*, etnias presentes nos estados de Roraima e Amazonas, elaboraram um protocolo de consulta que dispõe sobre como os respectivos povos querem ser consultados a respeito de projetos que possam causar impacto em suas vidas.

Continua após publicidade

O material, produzido ao longo de quatro anos, está em fase de distribuição para diferentes órgãos públicos e já foi protocolado em instituições como Ministério Público Federal (MPF), Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), Ministério do Meio Ambiente (MMA), Ministério da Educação (MEC), Ibama, Funai, Ministério da Defesa, Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) e Presidência da República.

A produção do documento se insere no contexto de avanço da atuação de grupos econômicos sobre terras indígenas, como é o caso de mineradoras, madeireiras e empresas ligadas ao agronegócio. De acordo com Dário Yanomami, vice-presidente da Hutukara Associação Yanomami, localizada em Roraima, o protocolo é uma forma de lembrar à sociedade não só sobre a necessidade de consulta aos povos, mas também sobre os procedimentos a serem adotados em cada situação.  

 “Isso significa que o governo brasileiro deve reconhecer o protocolo de consulta, [entender] o que os yanomami pensam e como eles funcionam. Se algum projeto quer minerar em território nosso, por exemplo, o protocolo lembra o direito de consulta. Isso [é algo que] o governo brasileiro se comprometeu a fazer. O Estado tem o dever de consultar os povos indígenas antes de [alguém] entrar nos seus territórios. É para eles respeitarem nossas decisões e nossos pensamentos através desse protocolo”, afirma o líder, em referência à Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT).

Assinado pelo Brasil, o tratado foi incorporado ao ordenamento jurídico do país em 2002, após a aprovação do Projeto de Decreto Legislativo (PDL) 34/1993, que sancionou o texto internacional. A Convenção oficializa, em seus artigos 14 e 15, o direito das comunidades de serem ouvidas e também de participarem ativamente dos processos de uso, gestão e conservação dos territórios, incluindo o controle de acesso a esses locais.

“Essa é uma preocupação muito antiga dos indígenas. Nós estamos aqui há 519 anos, mas o povo brasileiro, por meio dos órgãos públicos, do governo federal, tem desrespeitado e violado os nossos direitos. Então, temos que lembrar da consulta”, pontua o vice-presidente da Hutukara.

Desde sua ratificação pelo Brasil, a Convenção 169 é utilizada no sistema de Justiça como uma das referências para a garantia dos direitos de povos indígenas e tribais, o que ajudou a consolidar a jurisprudência em torno do tema, apesar das dificuldades historicamente enfrentadas pelas comunidades.

Com a chegada de Jair Bolsonaro (PSL) à Presidência da República, os yanomami e ye'kwanas, assim como outras etnias, temem o risco de uma fragilização crescente das normativas de proteção aos povos tradicionais. Em março deste ano, por exemplo, o governo chegou a sinalizar a possibilidade de o Brasil se retirar do acordo da OIT, o que colocaria as comunidades numa zona de maior insegurança no que tange à garantia de direitos.

Governança

Os protocolos de consulta são um meio de formalização das normas de representação política de cada povo. Em geral, tais documentos destrincham o funcionamento operacional das comunidades, apontando, por exemplo, a existência de conselhos internos, as normas de atuação do cacique, a forma como se dá o acompanhamento dos processos decisórios, entre outros aspectos. Por conta disso, eles são utilizados como instrumentos de governança e de tradução da realidade organizacional de uma comunidade.

Lucas Grisólia, da Coordenação Geral de Gestão Ambiental (CGGAN) da Fundação Nacional do Índio (Funai), explica que os protocolos têm valor fundamental para o diálogo entre povos tradicionais e atores externos.  

“É para empreendedores, para o Estado brasileiro ou para a sociedade que dialoga com um povo entender como é o processo de governança de um território, de tomada de decisão, para que se evite, por exemplo, que um empreendedor de algum empreendimento que esteja no entorno diga que o povo foi consultado, quando, na verdade, ele só falou com o cacique de uma aldeia”, afirma.

Kamuu Dan Wapichana, servidor da Funai que esteve entre a equipe que recebeu o protocolo de consulta dos yanomami e ye'kwanas, o documento é importante porque prepara o poder público para lidar com as comunidades não só no contexto de obras públicas e privadas, mas também em caso de eventualidades. Ele acrescenta que a organização política dos povos precisa ser preservada mesmo diante das diferenças que mantém com a estrutura burocrática das instituições não indígenas.   

“Cada um tem a sua especificidade, seus costumes, tradições, sua língua, sua cosmovisão do território. Então, cada um vai fazer da maneira como acha conveniente. Os povos indígenas que já têm esse conhecimento vão dizer o que eles querem [por meio do protocolo]”, ressalta.  

Plano de gestão

As comunidades yanomami e ye'kwanas também produziram um Plano de Gestão Territorial e Ambiental (PGTA) da Terra Indígena Yanomami, situada entre os estados de Roraima e Amazonas. O material traz um planejamento das ações dos indígenas em relação ao uso da terra, abordando detalhes da administração dos recursos naturais pelos moradores da área. Assim como o protocolo de consulta, o documento serve de referência para o trato das questões que dizem respeito ao território e também está sendo distribuído por lideranças para órgãos públicos.

O Brasil não tem estatísticas oficiais sobre a produção desse tipo de documento, mas um levantamento informal feito pela CCGAN/Funai indica que cerca de 130 comunidades já produziram um PGTA de suas áreas tradicionais. O número representa pouco mais de 20% do total de 600 territórios indígenas do Brasil.

*A grafia como essas etnias se identificam foi preservada na reportagem.

Edição: Daniel Giovanaz