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Prato vazio: a fome que não é "fake" no Brasil

Estado do Rio de Janeiro é onde o empobrecimento tem ocorrido de forma mais acelerada

Brasil de Fato | Rio de Janeiro (RJ) |

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Municípios da baixada fluminense figuram entre as localidades com alto índice de insegurança alimentar no estado
Municípios da baixada fluminense figuram entre as localidades com alto índice de insegurança alimentar no estado - Foto: William West/AFP

“É triste ver um filho pedir um biscoito e não ter dinheiro para comprar”. A fala é de Marta Benedito, 44 anos. Moradora do bairro de Capivari, de Duque de Caxias, na Baixada Fluminense, Marta está desempregada e conta com a solidariedade de pessoas próximas e de projetos sociais para sobreviver. A diarista que mora em uma casa de dois cômodos com o filho de oito anos chega a passar o mês com R$ 30. 

O caso de Marta não é isolado e retrata a situação de pobreza extrema, ou seja, pessoas que vivem com menos de US$ 1,90 por dia, o que significa R$ 140 por mês. No Brasil, segundo dados da Síntese de Indicadores Sociais (SIS) divulgados em dezembro de 2018 pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), mais de 15 milhões de brasileiros estão em situação de extrema pobreza atualmente. 

O pesquisador do Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase) e consultor da ActionAid, Francisco Menezes, explica que a condição de extrema pobreza está diretamente associada à fome. De acordo com Menezes, o estado do Rio de Janeiro é uma mostra exacerbada da vulnerabilidade social que o país tem vivido nos últimos anos. 

“O Rio de Janeiro é quase que uma mostra mais extrema do que vem vivendo o Brasil, de acelerado empobrecimento e, mais do que isso, temos que observar que o crescimento da extrema pobreza se baseia numa linha de extrema pobreza monetária. Até 2015 a pobreza e a extrema pobreza vinham declinando no estado do Rio. A partir de 2015, quando se abre a crise política e econômica de forma mais acentuada, você tem um crescimento mais acelerado”, ressalta.  

Segundo os dados levantados de 2001 até 2017 por Menezes a partir da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) e Pnad Contínua, entre 2015 e 2017, o número de pessoas que passou a ingressar na condição de pobreza extrema no estado do Rio aumentou em 422 mil. Para o pesquisador, o agravamento da crise ocorreu também devido à condução adotada da operação Lava Jato no estado do Rio de Janeiro. 

“Essa corrupção inegavelmente existiu, mas temos que falar de uma coisa que não é falada: a forma como a Lava Jato enfrentou a questão da Petrobras e, se formos medir o desemprego que isso gerou, seja diretamente na própria empresa, seja nas empresas subsidiárias, ou nas terceirizadas que trabalhavam os projetos aqui no estado, a dimensão é muito maior, a destruição da Petrobras empreendida pela Lava Jato, a forma como ela gestou esse processo trouxe perdas para o Brasil todo, mas para o estado do Rio foram extremamente severas”, explica.  

Prato vazio  

Na última sexta-feira (19), o presidente Jair Bolsonaro (PSL) declarou durante um encontro com jornalistas estrangeiros no Palácio do Planalto que “falar que se passa fome no Brasil é uma grande mentira”. Após repercussão negativa, Bolsonaro recuou e admitiu que “alguns passam fome”.  

O “alguns” declarado pelo chefe do Palácio do Planalto tem histórias que se assemelham a da diarista Marta, contada no início da reportagem, e contabilizam, segundo dados do Relatório do Panorama da Segurança Alimentar e Nutricional na América Latina e Caribe 2018, das Organização das Nações Unidas (ONU), 5,2 milhões de brasileiros entre 2015 e 2017. O estudo apontou o crescimento da fome no Brasil se comparado com os dois últimos triênios. 

Daniel Souza, presidente do conselho da Ação da Cidadania, considera uma irresponsabilidade a fala de Bolsonaro, principalmente pela possibilidade de o país voltar ao Mapa Mundial da Fome da ONU para a Alimentação e a Agricultura (FAO) cinco anos após ter saído. 

“Claramente o Brasil que saiu, em 2014, do Mapa da Fome da ONU está em velocidade assustadora podendo voltar para esse mapa. O que a gente vê é que os dois últimos governos, seja o Temer ou o atual, simplesmente não estão preocupados com o Brasil voltar para essa estatística e, principalmente, notamos que não tem uma política forte que trabalhe no combate à fome. Em várias áreas, seja na questão alimentar, no Bolsa Família, de diversas ações políticas que eram feitas antigamente, isso tudo foi cancelado ou afrouxado. Um dos primeiros atos do presidente Bolsonaro em janeiro foi a extinção do CONSEA, Conselho de Segurança Alimentar e Nutricional”, detalha Souza. 

A Ação da Cidadania é responsável por uma das maiores mobilizações solidárias da sociedade civil, o “Natal sem Fome”. A primeira edição do projeto ocorreu em 1994. Durante dez anos a iniciativa ficou suspensa, retornando em 2017 após o agravamento da crise econômica e do desemprego no país. 

Entrega de alimentos da campanha Natal sem Fome 2018 na cidade de Borborema, na Paraíba (Foto: Ação da Cidadania)

 

A organização atua em 21 estados. No Rio de Janeiro, a Ação possui 261 comitês, ou seja, lideranças comunitárias que desenvolvem algum trabalho social em seus territórios. Segundo o levantamento realizado pela instituição, os municípios de Duque de Caxias, Belford Roxo, Nova Iguaçu e os bairros de Campo Grande e Santa Cruz, no município do Rio, estão entre os locais com alto índice de insegurança alimentar, situação de quem não tem garantia de acesso a quantidades suficientes de comida saudável e nutritiva para sobreviver. 

Direito à Alimentação 

O direito humano à alimentação adequada está contemplado no artigo 25 da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948. No Brasil, passou a constar no artigo 6º da Constituição Federal em 2010. 

A ampliação do debate relacionado à alimentação enquanto um direito tem sido conduzida pelos movimentos populares que atuam em questões agrárias no país. Para Humberto Palmeira, da coordenação do Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA), o desafio atual é aproximar o tema da população de baixa renda. Segundo Palmeira, a criação de um sistema de distribuição de alimentos sobre o controle popular, ou seja, com os agricultores que produzem os alimentos e os consumidores que estão nas cidades é uma forma de estreitar a relação e garantir o debate e alimentos saudáveis a preços acessíveis. 

“Esse sistema que estamos construindo está vinculado a algumas redes de feira que organizamos, ao que chamamos de cesta camponesa, que é um sistema de feira online e entregas diretas em escolas e bairros. Está sendo construída no morro da Babilônia uma experiência bacana de abastecimento com a população e estamos discutindo com outras lideranças urbanas na Maré [Conjunto de Favelas da Maré] e organizando do ponto de vista logístico para darmos um salto no próximo período e chegarmos em algumas favelas que achamos importante fazer esse debate  sobre alimentação”, ressalta. 

Dica

Para saber mais sobre a insegurança alimentar no país, assista ao filme "História da Fome no Brasil", da MPC Filmes: https://www.youtube.com/watch?v=P-we1V2JLDk&feature=youtu.be 

Edição: Eduardo Miranda