Coluna

A razão neoliberal e o governo anticonstitucional

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A “razão de ser e de agir” do governo de Bolsonaro está submetida e atende a interesses e comandados por uma nova ordem mundial
A “razão de ser e de agir” do governo de Bolsonaro está submetida e atende a interesses e comandados por uma nova ordem mundial - Marcos Corrêa/PR
Esse estado de exceção deve ser denunciado e combatido diuturnamente

Por Jean Keiji Uema*

A continuidade dos ataques à democracia leva-nos à conceituação do governo como “anticonstitucional”. Representa uma ofensa central, global e intencional da Constituição de 1988 e do ordenamento jurídico constituído.

A violação ao conjunto das Leis no Brasil envolve a adoção de uma “técnica de governo” que, sob o pretexto da necessidade premente de uma “nova política”, da “defesa da família”, “do combate à corrupção e à criminalidade”, da “liberdade econômica”, ou de qualquer outro discurso ideológico, instaura, de forma sistemática, uma prática de governo de desrespeito aos direitos e garantias fundamentais, ao meio ambiente, às competências dos outros poderes, notadamente do Poder Legislativo. 

O governo age deliberadamente à margem e contra a Lei. A norma jurídica constitucional e democrática deixa de ser o “elemento de conexão entre a vontade geral e a vontade estatal” (Georghio Tomelin, O Estado Jurislador). 

O governo atua para desmontar o que já se conquistou e ampliar o fosso entre as promessas civilizatórias ainda não cumpridas da Constituição e a realidade perversa da nossa condição política, social e econômica.  

Na verdade, a “razão de ser e de agir” do governo autoritário de Bolsonaro está submetida e atende a interesses e racionalidades comandados por uma nova ordem mundial que não se coadunam com o projeto de sociedade previsto em 1988 para o Brasil.   

Instado por essa nova “razão do mundo”, defendida por Pierre Dardot e Christian Laval, em a Nova Razão Mudial, fundada na regra universal da concorrência, o projeto neoliberal de Bolsonaro nos leva ao cinismo da convivência social, ao individualismo extremo, à competição em todas as dimensões da vida, à exploração ilimitada do ser humano e do meio ambiente. 

Um projeto que atende exclusivamente aos interesses do capital internacional e institui a lógica do neoliberalismo em toda a economia e na sociedade: privatização e internacionalização da produção e das riquezas (petróleo, água, minérios, flora e fauna) e das nossas maiores estatais (Petrobras, Embraer, Eletrobras, Correios e bancos públicos), atividades e serviços públicos (vide privatização da saúde, educação e dos benefícios da previdência), desregulamentação do governo (agências) com liberação integral e sem restrições das atividades, ainda que nocivas ou prejudiciais (agrotóxicos, armas, trabalho, trânsito, empreendimentos).  

Ao mesmo tempo, esse governo neoliberal é particularizado no Brasil por uma radicalidade reacionária e conservadora mais profunda, pois potencializada pela tradição antidemocrática e autoritária da vida brasileira. 

Esse conservadorismo político no neoliberalismo, como demonstram Dardot e Laval, não é uma característica privativa do Brasil, mas as exclusões social e econômica históricas, o autoritarismo, o escravagismo, o machismo, o preconceito e outros deficits civilizatórios completam o caldo de cultura que ajudam a caracterizar e insuflar o governo Bolsonaro e aprofundar a violência institucionalizada do Estado.

Ainda que a doutrina neoliberal e sua implementação econômica precedam a Bolsonaro, pois se anunciara no golpe de 2016, com o documento A Ponte para o Futuro e fora iniciada no governo Temer, com a Emenda do teto de gastos – EC 95, reforma trabalhista e a apresentação da reforma previdenciária, é com Bolsonaro que se tornou plena a adoção da “governamentalidade neoliberal”, que não possui veleidades constitucionais e tem a única vantagem de não carregar consigo qualquer hipocrisia democrática. Passou-se, com Bolsonaro, ao explícito e assumido vale-tudo.  

Supera-se, pela ação governamental, qualquer direito, garantia, instituição ou processo que ameace os interesses do capital e a lógica competitiva que lhe é fundante: 

- direitos indígenas não podem atrapalhar a exploração mineral;

- a preservação ambiental não pode impedir a expansão do agronegócio;

- a saúde da população não pode ser empecilho para a liberação do cultivo intoxicado por veneno chamados de agrotóxicos;

- o direto de estudar está condicionado à renda pessoal, à capacidade individual, com sucateamento indecoroso e desavergonhado das universidades públicas, submetidas à lógica do capital (future-se);

- a ineficácia da proteção, o aumento da violência e o perigo constante para a vida humana não podem ser desculpas para impedir a liberação indiscriminada do armamento individual, na lógica do salve-se quem puder;

- mortes e acidentes de trânsito não justificam radares de velocidade e a pontuação na carteira de motorista por infrações, gerando um ambiente de extrema violência nas ruas e estradas;

- direitos previdenciários e assistenciais constitucionalmente previstos, assim como qualquer outro, são rechaçados sem nenhum tipo de constrangimento institucional;

-  em nome de convicções ideológicas e interesses econômicos internacionais entrega-se o patrimônio e a riqueza nacionais, sem observância sequer de preceitos constitucionais e legais.

E por ai vai...

Esse estado de exceção, como conceitua Giorgio Agambem, deve ser denunciado diuturnamente e combatido em uma ampla aliança com todos os setores da sociedade que defendem a ordem constitucional vigente. Ou permaneceremos na barbárie. 

*Jean Keiji Uema. Mestre em Direito Constitucional pela PUC/SP, Analista Judiciário do Supremo Tribunal Federal, atualmente cedido para o Senado Federal, onde atua como coordenador da assessoria legislativa da Bancada do Partido dos Trabalhadores.

Edição: Daniela Stefano